Agradeço-vos por terdes tomado conta dela respondeu Francesco que, crendo que a mulher procurava uma recompensa, levou a mão à bolsa.

Ela deteve-o com um gesto e com um breve:

Obrigada, mas não se trata disso!

De que se trata, então?

Do que se vai passar amanhã. Dame Bertille disse-me que contáveis partir para o vosso país levando esta pobre pequena. De facto, como se chama ela?

Francesco e o padre Charruet olharam um para o outro, perplexos. Nem um, nem outro, tinham pensado naquilo... Umas lágrimas de vergonha subiram aos olhos do ancião.

Nós não... sabemos. Nem sequer sabemos se foi baptizada... Uma criança... encontrada...

Léonarde atirou-lhe um sorriso trocista, desta vez um verdadeiro sorriso, cheio de graça e até de malícia, o que nela era inesperado.

Um santo homem como vós não devia mentir, padre. Algo me diz que o encontrastes no Asilo da Caridade, este pequeno anjo... e que, em boa justiça, se deveria chamar Marie... ou Jeanne! Vamos, não façais essa cara! Eu sou curiosa, mas também me sei calar. E o que se passou esta manhã na praça Morimont foi uma coisa bem triste. Aquelas infelizes crianças...

Como é que adivinhastes? perguntou Francesco.

Segui o processo. Oh! não por curiosidade malvada, mas por compaixão. Desejei tanto que, ao menos, lhes deixassem a vida. E vi muitas vezes messire Charruet junto deles. Daí ao bebé foi um passo.

Bruscamente, Léonarde, cuja voz tinha falhado, tirou um grande lenço da algibeira do avental e assoou-se vigorosamente.

Deixemo-los repousar em paz e vamos ao que interessa! Precisais de uma ama-de-leite, não é verdade, messire?

Com efeito. Senão, terei que arranjar uma cabra.

Creio que tenho o que procurais. Não muito longe daqui, uma pobre rapariga da minha terra foi violada por um soldado. Ela veio esconder a vergonha na cidade e eu tratei dela. O filho dela nasceu antes de ontem, mas morreu mal saiu do ventre da mãe.

Ela aceitaria amamentar a pequena? E partir para tão longe?

Por isso respondo eu. Mas com uma condição: eu vou com ela. A estupefacção fez arregalar os olhos dos dois homens:

Quereis abandonar esta casa onde vos apreciam, creio interpretou Beltrami sem sequer saber para onde ides e quem eu sou? Mas, perche... mas, porquê?

Espero ser apreciada para onde quer que vá disse Léonarde sem se embaraçar. Além disso, sei julgar um homem de bem. Uma outra razão: se levardes Jeanette, quero poder velar por ela, porque a pobre rapariga já sofreu bastante. Estou muito ligada a ela, mas... (e o tom da mulher mudou, fez-se grave, com uma curiosa nota de emoção.. mas talvez menos do que ao bebé que ainda há pouco me puseram nos braços e que dorme no meu quarto. Quando a vi senti-me extasiada, maravilhada. Foi como que um dom do céu, uma resposta à angústia inexplicável que eu senti quando a mãe dela entrou nesta cidade no meio dos arqueiros, acorrentada como uma criminosa.

Francesco olhou para Léonarde com uma curiosidade nova. Na verdade, aquela mulher parecia-lhe cada vez mais espantosa:

O incesto não é um crime aos vossos olhos, donna Léonarde?

Não mais do que aos vossos, aparentemente disse ela com audácia. Quanto a mim, só Deus pode julgar aquilo que não é, no fim de contas, senão um excesso de amor. Só Ele tem a balança para pesar os corações. O único que merecia a morte era Regnault du Hamel: por excesso de ódio! Mas eu não vim aqui para fazer um discurso acrescentou Léonarde, reencontrando a sua brusquidão habitual. Vou buscar Jeannette?

Fico-vos muito reconhecido. Mas, primeiro, ide buscar a criança... Ela está a dormir, já vo-lo disse. Não tem importância. E em caminho pedi a dome Bertille e a mestre Huguet que venham ao meu quarto... O jovem virou-se para o velho padre: De que precisais para celebrar um baptismo?

Quereis?... No fim de contas, por que não? Água pura, sal, uma toalha branca, um padrinho e uma madrinha...

Eu serei o padrinho e donna Léonarde a madrinha... se ela quiser. Mestre Huguet e a sua mulher serão as testemunhas...

Por trás dos vidros, os olhos azuis iluminaram-se.

Vou imediatamente. E depois, vou buscar Jeanette...

Alguns instantes mais tarde, a pequenita votada ainda há pouco à vergonha e à morte recebia o baptismo das mãos de Antoine Charruet

e os nomes de Fiora Maria, filha adoptiva de Francesco Maria Beltrami,

substituindo-se ao pai e mãe desconhecidos, sendo o padrinho o mesmo Beltrami e a madrinha Léonarde Mercet.

A testemunha abriu para a circunstância uma das suas melhores garrafas de vinho de Beaune e se se mostrou surpreendido com a partida próxima daquela parente da sua mulher, não mostrou uma dor excessiva. Dame Bertille, essa, verteu três lágrimas, mas pensou que, se a sua prima estava a enlouquecer, que fosse longe de um albergue cujo nome sempre fora irrepreensível. E se um e outro acharam estranho todo aquele rebuliço em torno de uma criança encontrada ao canto de uma rua, abstiveram-se de qualquer manifestação em virtude da regra intangível de

todo o bom comerciante, que diz que o cliente tem sempre razão. Sobretudo um cliente tão rico como aquele florentino...

No dia seguinte, de madrugada, uma liteira um pouco usada, mas ainda bastante apresentável que o senhor Huguet negociara ferozmente durante a noite com um seu parente cónego em Saint-Bénigne e que dame Bertille encheu de almofadas, transportava o bebé

Fiora, a sua madrinha e Jeanette, sua ama-de-leite, uma jovem Borgonhesa de rosto redondo, corpo redondo, seios redondos e olhos arregalados por passar subitamente de uma vida quase miserável para uma prosperidade inesperada. Duas mulas sólidas iam atreladas aos varais. I Francesco Beltrami e Marino, armados até aos dentes, escoltavam o veículo, cujas cortinas de couro castanho se fecharam mal saiu do pátio do albergue. Dirigiram-se para a porta de Ouche, enquanto os últimos criados do florentino, com o carregamento de tecidos finos, se dirigiam para a porta Guillaume, para lá da qual se estendia a estrada de Paris.

No momento em que a liteira atravessou a praça Morimont, Francesco desviou o olhar do cadafalso despojado do seu pano negro, mas onde se erguia ainda e sempre a cruz, a roda e a forca, evocatórias de suplícios. O aspecto daquela praça permaneceria para sempre gravada na sua memória tal qual a vira na véspera, servindo de pano de fundo fúnebre a um rosto resplandecente, um rosto inscrito no mais secreto do seu coração, traço a traço, pelo implacável cinzel do amor. E foi com uma espécie de serenidade que vislumbrou pela última vez o campo de estrume onde dormiam Marie e o seu irmão.

Efectivamente, antes de o dia despontar, Francesco fora bater à porta do carrasco. Àquele ancião severo entregara algum ouro para que, numa noite bem escura, fosse tirar os amantes malditos da sua ignóbil tumba e lhes concedesse o repouso na terra cristã que o padre Antoine Charruet lhe indicaria...

O Sol de Inverno nasceu, vermelho, grande, banhando a paisagem nevada com uma luz púrpura. De pé, um pouco para lá da ponte levadiça da porta de Ouche, o velho padre viu afastar-se pela estrada de Beaune o pequeno cortejo daquele homem generoso, que acabava de dar a todos uma tão grande lição de humanidade. Levantando subitamente o braço, traçou no ar frio o sinal da cruz e depois regressou à cidade. Quando tivesse cumprido com Arny Signart, o executor, o último desejo do florentino, regressaria a Brévailles para levar, em segredo, algum apaziguamento à profunda dor de uma mãe e, com isso, a sua alma simples rejubilava antecipadamente. Entrou na primeira igreja que encontrou e lançou-se numa acção de graças, para agradecer a Deus misericordioso o ter permitido que Francesco Beltrami entrasse em Dijon à mesma hora em que Marie de Brévailles caminhava para a morte. Pelo menos a criança, nascida em tão terríveis circunstâncias, escapara à crueldade dos homens e poderia ter a sorte de conhecer alguns anos de felicidade.

Nem por um instante o ancião teve vontade de ir ver o que acontecera a messire Regnault du Hamel. Esse estava nas mãos de Deus e a Penitência que lhe fora infligida pelo mercador florentino fora inteiramente merecida.

Com efeito, só no dia seguinte um camponês, que passava perto do velho hospício, ouviu uns gemidos e descobriu o conselheiro do chanceler meio morto de frio. A liteira que transportava a pequena Fiora, aninhada no regaço de uma Léonarde desabrochada pela primeira vez na vida, já tinha percorrido uma boa parte do caminho...

Primeira parte

POR UMA NOITE DE AMOR

Florença, 1475

CAPÍTULO I

A GIOSTRA

Este não! Nem este! E muito menos este: já me viram com ele 20 vezes. Oh! não! Este velho horror, não: fico com cem anos e com este pareço um bebé! Procura outros!...

De pé no meio do seu quarto, em camisa e de pés nus, de mãos nas ancas e a massa negra dos seus cabelos caindo-lhe livremente pelas costas, Fiora, de olhar tempestuoso, passava em revista os vestidos que Khatoun, a sua jovem escrava tártara, tirava um após outro, com gestos descuidados, das grandes arcas de cedro, pintadas e douradas, que serviam de guarda-roupa. Os cetins irisados, os veludos rosa, azuis, brancos, negros ou castanhos, as musselinas bordadas, os tafetás e os cedais sussurrantes, os samitos matizados, enfim, tudo o que a arte da seda florentina e os tecidos orientais podiam oferecer, tanto à garridice, como ao adorno de uma bela mulher, enchiam o quarto. Saíam das cassoni, descreviam no ar uma curva graciosa e vinham, depois, cair aos pés de Fiora para formarem sobre o azul de um grande tapete persa um maciço colorido e cintilante, que aumentava de volume a cada instante sem conseguir alegrar a sua jovem proprietária.