Onde tinha ele ouvido isso?

Vá-se lá saber. Uma criada despedida, um criado subornado ou talvez uma testemunha daqueles longos passeios que as duas infelizes crianças davam juntas, muitas vezes. Mas, a partir daí, Regnault du Hamel não poupou a sua mulher a injúrias e a maus tratos. Espancada, desprezada, desonrada, Marie resistiu o melhor que pôde, mas, quando du Hamel atingiu o cúmulo da maldade ao levar-lhe a filha, a coragem abandonou-a. A algumas léguas da sua prisão estava a casa da sua infância e o tecto que abrigara a sua demasiado curta felicidade. Uma noite, aproveitando uma breve ausência do seu carrasco, Marie conseguiu fugir com a ajuda de uma jovem criada, que tivera piedade dela. Correu sem parar até casa dos seus pais, ávida por um refúgio, no qual o seu corpo, martirizado e coberto de vis nódoas negras, pudesse encontrar aconchego. Ignorava que Jean, inquieto há meses pela falta de notícias da sua irmã, acabava de chegar. E o drama desencadeou-se. Ao reencontrarem-se, os dois jovens reencontraram também, intacto e até, talvez, reforçado, aquele sentimento monstruoso que os empurrava um para o outro e os Brévailles tiveram medo. Com súplicas e depois com ameaças, tentaram persuadir Marie a regressar a casa do seu marido. Madeleine de Brévailles estava com o coração despedaçado perante os sofrimentos da sua filha, mas du Hamel era seu marido: tinha sobre ela todos os direitos e ninguém podia fazer nada.

Jean, esse, lutou pela irmã. Foi preciso retê-lo à força, para não correr a Autun e matar o odioso marido. De qualquer Maneira, opôs-se fortemente a que Marie regressasse à casa conjugal e os pais deixaram de saber o que fazer: Marie ameaçava matar-se se a enviassem de volta. Foi nesse momento que chegou uma carta de Regnault. Uma carta extremamente violenta e agressiva. A terrível personagem acusava formalmente Marie de relações incestuosas com o seu irmão e anunciava que ia apresentar queixa na justiça ducal. Jean e Marie amedrontaram-se. Desejando colocar a maior distância possível entre eles e o seu inimigo e temendo atrair graves problemas aos seus pais, fugiram. A sabedoria teria exigido que eles fossem cada um para seu lado: ele para junto do conde de Charolais, que abandonara sem autorização e ela para se fechar num qualquer convento afastado. Mas não tiveram coragem de se separar, nem de resistir à sua paixão. Foram para Paris, onde, confiantes no tamanho daquela cidade, se instalaram num albergue vizinho do Louvre. Ali viveram sob nome falso como marido e mulher. Lamento dizer que conheceram ali, na sua inconsciência, seis meses de uma felicidade indizível...

Nunca se deve lamentar a felicidade disse Francesco com gravidade. É uma coisa muito rara!

Mesmo quando o preço é assim tão caro?

Se vos referis à morte deles, creio que vos enganais. Eu vi-os.

Pareciam ir para o Paraíso. Sabiam que mais nada os poderia separar. Iam para a eternidade...

Sem dúvida suspirou o padre Charruet mas o que ignorais

é que essa felicidade não tardou a dar fruto. Essa notícia fê-los medir o abismo que se abria entre ambos e o seu universo habitual. Com a coragem de tal tipo de almas, não recuaram perante as consequências e sentiram-se, pelo contrário, mais unidos no seu crime como nunca. Pensaram então em fugir para Inglaterra para poderem viver livremente, mas o dinheiro começava a faltar-lhes... e depois, sem que se apercebessem, o destino apertava as suas malhas. Acreditavam-se bem escondidos na grande Paris e ignoravam que, com ouro, tudo se consegue. Regnault du Hamel, depois da queixa depositada na justiça ducal, gastara muito dinheiro a despeito da sua avareza. Pagos por ele, alguns espiões descobriram a pista dos fugitivos e arranjaram cumplicidades. Não se podia, com efeito, prendê-los em pleno dia, porque não estavam na Borgonha. Du Hamel pagou o que foi preciso e uma noite um bando de homens mascarados invadiu o albergue, pegou nos dois jovens e atirou-os para uma barca, que subiu o Sena até um ponto onde esperavam uns cavalos. Depois de uma viagem terrível, no decurso da qual Marie, grávida, pensou morrer cem vezes, as infelizes crianças foram trazidas para aqui, onde as esperava, não apenas du Hamel triunfante, mas também a prisão... Com efeito, aquele homem não queria apenas a morte dos culpados, queria também o aviltamento público, queria vê-los acorrentados juntos numa fogueira, no meio de uma multidão brutalmente alegre e insultuosa... E, de facto, eles foram condenados. O marido arranjou mais testemunhas do que as necessárias, um punhado de miseráveis que, contra um pouco de ouro, juraram que tinham visto cem vezes Jean e Marie entregarem-se um ao outro... Aliás, Marie estava à espera de um bebé. Corajosamente, na esperança de salvar o seu irmão, ela afirmou que se tinha entregado a um amor de passagem, mas isso não serviu de nada. A sentença foi apenas adiada até ao nascimento da criança.

«Então, eu supliquei a Pierre de Brévailles que fosse ter com o senhor duque, pedindo que, pelo menos, lhes poupassem a vida e que os encerrassem em conventos. Mas ele recusou brutalmente. O seu orgulho fora ferido, julgava-se aviltado, desonrado e creio bem que passara a odiá-los. Dame Madeleine, a sua mulher, juntou as suas súplicas às minhas, mas também sem resultado. Então, partimos os dois para Bruxelas. A diligência recusada pelo pai era aproveitada pela mãe com todo o seu amor intacto. Em Lille, ao sair da capela, atirou-se aos pés do senhor duque, que lhe virou as costas sem sequer a ouvir. Aquele velho bode, que sempre ofendeu Deus com a sua luxúria desenfreada, talvez tivesse tido piedade de Marie se ela tivesse sido sua amante. Mas só mostrou desprezo por aquela mãe desesperada - lançou o padre numa súbita explosão de cólera que fez sobressaltar o seu ouvinte.

- Que dissestes, padre?... Subitamente corado até à coroa de cabelos brancos, o padre Charruet teve um tímido sorriso:

- Nada! Perdoai-me, meu filho! Deixei-me levar por um resto da cólera que senti perante as lágrimas de dame Madeleine, abandonada de joelhos no meio de uma galeria sumptuosa e sob os olhares trocistas dos cortesãos. Levantei-a do chão e saímos juntos, mas ela quis ainda tentar outra coisa.- Jean tinha servido, durante muito tempo, o jovem conde de Charolais, que o tratara amigavelmente. Talvez aquele jovem príncipe, que diziam de costumes puros, se deixasse tocar pela piedade? Jean dizia, muitas vezes, que o seu senhor lhe queria bem...

- E então?

- Dessa vez, fomos recebidos, mas a esperança só durou um instante. O conde Carlos tem horror ao deboche que reina na corte do seu pai e esforça-se por fazer reinar no seu séquito a dignidade e a decência. Além disso, é um príncipe orgulhoso e Jean abandonou o seu serviço sem lhe pedir autorização. Encontrámo-lo demasiado severo: «Os culpados de semelhante crime não merecem perdão nem misericórdia, porque pecaram ao mesmo tempo contra o Senhor Nosso Deus e contra a natureza. A justiça deve seguir o seu curso...» As lágrimas de uma mãe desesperada não encontraram o caminho daquele coração couraçado e tudo o que obtivemos foi que a sentença fosse mudada: a abominável fogueira daria lugar à decapitação pela espada, única morte digna de um fidalgo. E agora, já sabeis tanto como eu...

- Ainda falta qualquer coisa, padre. A jovem estava grávida, disseste-lo. Ela conseguiu trazer a criança ao mundo?

- Conseguiu. Na prisão, há cinco dias, Marie deu à luz uma menina, que foi levada logo no dia seguinte para o hospital da Caridade, para onde vão todas as crianças abandonadas.

- Abandonadas? - insurgiu-se Francesco - mas, essa pobre pequena não tem avós? Os Brévailles não podem tomar conta dela? Parece-me a mim que ela tem duplamente o sangue deles?

- Por nada deste mundo messire Pierre quer essa prova sob o seu tecto e dame Madeleine, que foi duramente repreendida aquando do seu regresso da Flandres, não ousou afrontar a cólera do seu marido. O que ela tenta conseguir, de momento, é que lhe confiem a criança que Marie deu a Regnault du Hamel.

- Então e a outra pequena? Que vai ser dela?

O velho padre afastou as duas mãos, no meio das quais o vazio traduzia a sua impotência:

- Não sei. No entanto, antes de morrer, Marie suplicou-me que tomasse conta da sua filha. Não sei qual vai ser o seu destino. As senhoras do asilo acolheram-na com alguma repugnância.

- Como assim?

- Um filho do incesto é objecto de horror, produto de uma coisa diabólica. Nenhuma ama-de-leite quis encarregar-se dela. Dão-lhe leite de cabra; morrerá dentro em breve, se já não morreu. Eu podia encarregar-me dela, mas onde arranjar uma mulher que me ajude? Moro em Brévailles e não tenho outra casa...

Francesco deixou explodir a sua indignação:

- As pessoas daqui parecem-me muito pouco cristãs. A criança foi baptizada?

O padre Charruet fez sinal que não:

- Eu queria fazê-lo; mas não me deixaram aproximar e...

- Isso é o que vamos ver! Conduzi-me a esse asilo onde as crianças inspiram repugnância!

- Que quereis fazer?

- Ides ver! Eh lá, Marino! Manda atrelar dois cavalos, ou antes três, e prepara-te para nos acompanhares.

- É uma loucura! Em breve será noite, as portas vão fechar-se e o hospital está à entrada da estrada de Beaune - disse o padre.

- É precisamente por isso que devemos apressar-nos!

Um instante mais tarde, os três homens retomavam a direcção da porta de Ouche. Com efeito, o Hospital da Caridade, dedicado ao Espírito Santo, erguia a sua construção mesmo ao lado do rio Ouche, perto do antigo hospício dos empestados. Era um velho edifício, fundado em 1204 pelo duque Eudes III para os peregrinos, os pobres doentes e as crianças abandonadas. Umas religiosas do Espírito Santo partilhavam a obra com algumas religiosas agostinhas, que se ocupavam em particular das crianças.