Subitamente, o céu pareceu mais cinzento a Francesco, como se acabasse de perder uma parte da sua luz e o frio tornou-se mais áspero. O jovem virou-se para o velho padre, que apertava friorentamente o seu manto negro em redor dos ombros magros:

Gostava de falar convosco, padre. A minha gente espera-me na Cruz de Ouro. Vinde comigo, temos os dois uma grande necessidade de recuperar as nossas forças.

O velho homem quis recusar, mas não tinha forças para contrariar o florentino, uma vez decidido a qualquer coisa. A despeito dos protestos, viu-se sentado em cima do cavalo daquele amigo caído do céu, que segurou nas rédeas e se dirigiu a passo para a cidade, para onde já regressavam, também, os soldados e a carroça. Mas, ao passarem por Regnault du Hamel, que parecia esperar a sua partida, o jovem escarrou-lhe violentamente aos pés. Nunca sentira tanta vontade de matar... nem semelhante asco por um ser humano. No entanto, uma hora antes, nunca tinha visto aquele homem. Fora preciso aquele encontro, na volta do caminho, com um rosto de anjo caminhando para o martírio, para que o seu próprio universo se tornasse num pesadelo, onde, de Maneira inexplicável, se viu perfeitamente à-vontade. Aquela gente tinha invadido, com o seu amor e sofrimento, a sua existência agradável de epicurista e diletante um pouco egoísta. E nem sequer sabia os seus nomes...

Eles chamavam-se Jean e Marie de Brévailles e eu chamo-me Antoine Charruet, sou abade da aldeia e capelão da família. Como vos disse ainda há pouco, vi-os nascer e eram-me tão queridos como se fossem meus próprios filhos. A infância deles desenrolou-se no castelo paternal, uma bela e rica mansão que domina as águas perigosas do Doubs. Os pais deles, Pierre de Brévailles e Madeleine de la Vigne vivem nele como proprietários rurais e como fiéis súbditos do nosso duque Filipe que Deus guarde, se bem que não ouça sempre os apelos de misericórdia...

O padre benzeu-se e depois, pegando na sua taça, bebeu algumas gotas de vinho. Ele e Francesco tinham acabado a refeição que o florentino mandara servir no seu quarto, onde um bom fogo fazia com que ali reinasse um calor agradável. O rosto do ancião, tão pálido ainda há pouco, ganhara cor, mas a sua mão tremia e era visível que as lágrimas não estavam longe.

Preferis repousar um pouco, padre? perguntou docemente Francesco. Receio que este relato vos seja ainda mais penoso.

Não. Não, pelo contrário, faz-me bem falar deles... tentar... explicálos a alguém que tenha compaixão... Os Brévailles tinham ao todo quatro filhos, dois rapazes e duas raparigas. Jean, o mais velho, era três anos mais velho do que Marie, mas desde tenra infância que era possível ver que uma profunda afeição, exclusiva e tenaz os unia. Os pais, assim como eu, não se preocupavam, limitando-se a sorrir. Chamavam-nos «gémeos», porque se pareciam de Maneira espantosa e porque, entre todos os irmãos, eram de uma beleza extraordinária, como pudestes ver, messire. Foi um capricho da natureza e nós víamos nisso a razão para a preferência de Jean por Marie e de Marie por Jean. Os Brévailles sentiam-se orgulhosos da sua beleza e citavam como exemplo a ternura mútua, sem que por um instante pensassem que esse amor se tornasse, com os anos, menos puro. Aliás, que pais teriam semelhante ideia?

É difícil de imaginar, sem dúvida, mas há exemplos. Falou-se de um conde de Armagnac e da irmã...

Quando se pertence a uma grande família, talvez se pense que se está acima das regras da moral e da opinião pública! Entre os Brévailles, que vêm de uma boa nobreza, não seria possível permitir um tal escândalo. Quando Jean fez 13 anos, o chanceler da Borgonha, mestre Nicolas Rollin, que é amigo da família, conseguiu que ele entrasse como pajem para o serviço do senhor conde de Charolais, filho do duque Filipe, a fim de ali aprender ao mesmo tempo o Manejo das armas e as Maneiras da Corte. Messire de Brévailles, que tinha renunciado às armas depois do cerco de Compiègne, onde foi gravemente ferido, ficou muito feliz com aquela circunstância, que ia permitir ao seu filho aprender a nobre arte da cavalaria sob as ordens de um príncipe fervoroso discípulo de tal arte. E Jean partiu para Lille.

«Não é possível descrever o que foi o desespero de Marie. O seu desgosto pela partida do irmão foi tão violento que a sua mãe temeu, por um instante, pela sua razão e a criança adoeceu por um período de vários meses antes de recuperar a saúde.

»A ausência de Jean durou quatro anos. De pajem passou a escudeiro de monsenhor Carlos e quando em 1455 regressou a casa para passar o Natal com os seus, todos puderam ver que trazia uma expressão extremamente altiva. Quanto a Marie, que aprendera o canto, a dança, a música e a economia doméstica, a sua beleza florescera com um tal brilho, que os pedidos de casamento começaram a afluir. Ela recusava-os todos, dizendo que não pretendia abandonar a casa dos seus pais, onde se sentia plenamente feliz.

”Quando Jean regressou, as coisas começaram a tornar-se graves. Pela minha parte, tive um pressentimento, face à atitude daquelas duas crianças. A partir do momento em que se reencontraram, nunca mais se separaram um do outro. Sentavam-se sempre um ao pé do outro de mãos dadas. Multiplicavam as ocasiões para se isolarem e davam juntos, grandes passeios a cavalo. Uma noite... aconteceu o drama... e lamento dizer que fui eu o culpado.

Antoine Charruet afastou-se da mesa e foi sentar-se perto do fogo, para o qual estendeu as mãos magras que tinham recomeçado a tremer.

Nessa noite, Jean tinha ensinado a Marie uma dança da corte muito graciosa, sem dúvida, mas na qual as figuras, plenas de languidez, não eram para ser dançadas entre um irmão e uma irmã. Além disso, eu tinha reparado nalguma perturbação, um certo frémito, quando os olhos de ambos se encontravam, ou quando as suas mãos se tocavam. Tudo aquilo fez com que me mantivesse acordado durante toda a noite. Sentia crescer o meu nervosismo e acabei por compreender que não conseguia conciliar o sono enquanto não falasse com Jean. Era preciso convencê-lo a regressar para junto de monsenhor Charolais logo na manhã seguinte. Peguei, portanto, na minha vela e dirigi-me ao seu quarto, que se situava numa das torres, quer dizer, afastado dos da família.

Ao chegar, vi que um pouco de luz se filtrava por baixo da porta e fiquei contente, porque evitava ter de o acordar. Muito suavemente, abri a porta, pensando surpreendê-lo a ler, ou a escrever. Infelizmente, o que vi era ao mesmo tempo terrível e de uma beleza fascinante: no grande leito de cortinas vermelhas, à luz doce de uma vela, Jean e Marie amavam-se...

«Não sei o que teríeis feito no meu lugar. Eu devia, sem dúvida, ter entrado pelo quarto dentro e arrancado Marie àquele leito e àqueles braços, nos quais ela parecia gozar uma felicidade indizível. Mas não pude. Por um instante, contemplei-os, perdidos naquele amor que os enaltecia... e depois fechei a porta docemente, muito docemente e voltei para o meu quarto, onde rezei durante toda a noite. Aliás, o mal estava feito e umas horas a mais ou a menos não teriam mudado nada.

»De madrugada, fui ter com Jean, que, desta vez, estava só. Disse-lhe o que tinha visto e ordenei-lhe, em nome do Senhor, que abandonasse imediatamente aquela casa, que ele não tivera pejo em macular. Ele não protestou. Disse apenas: «Nós amamo-nos e nada nem ninguém no-lo impedirá». No entanto, aceitou partir. Se tivesse recusado, eu teria sido obrigado a prevenir o seu pai e ele sabia-o.

»A Marie, mergulhada em lágrimas por aquela partida tão brutal, não disse nada, mas fui ter com os pais dela e dei-lhes a entender que era tempo de casar a sua filha. Para minha surpresa, encontrei-os decididos a isso. Eles também não tinham gostado da dança de corte... E, dessa vez Marie não teria o direito de recusar o marido que lhe iriam oferecer.

»A infelicidade quis que, entretanto, eu fosse obrigado a ausentar-me por algumas semanas, mas parti tranquilo, persuadido de que no meu regresso as coisas já teriam reencontrado o seu curso normal. Na minha ideia, pensava que um marido jovem, belo e apaixonado faria esquecer a recordação de Jean. Acabara por me persuadir que a cena de que fora testemunha não passara de uma loucura passageira, uma criancice grave. Eles eram tão jovens, os dois!

«Quando regressei, Marie estava noiva e, contrariamente ao que esperava, fiquei consternado. Por não sei que aberração, Pierre de Brévailles, a despeito dos pedidos da sua mulher, decidira escolher Regnault du Hamel. Vós viste-lo, não preciso, portanto, de vo-lo descrever. Limito-me a dizer-vos que, como conselheiro e tenente da chancelaria com assento em Autun, bastante rico e com grandes e poderosas relações, era um genro desejável. Além disso, tomava Marie sem dote, o que contara na decisão de Brévailles. As suas finanças, soube-o então, não iam muito bem... Face a tudo isto, o amor não tinha grande peso.

«Nunca celebrei um casamento tão dramático. Foi preciso, literalmente, arrastar para o altar uma Marie desfigurada pelas lágrimas, ao ponto de eu quase me recusar a celebrar. Mas du Hamel tinha um primo, cónego em Saint-Benigne de Dijon, que se prontificou a substituir-me. Abençoei, pois, aquele casamento e transportarei essa culpa comigo até à minha última hora.

”Porque, mal Marie entrou na casa de Autun, onde residia o seu marido, a sua vida transformou-se num inferno. Du Hamel mostrava-se de uma avareza sórdida e de um ciúme maníaco. Marie, submetida a uma incessante espionagem, vivia fechada, mal alimentada e privada de tudo ° que pode tornar agradável a vida de uma jovem. O nascimento de uma rapariga, nove meses mais tarde, não melhorou as coisas. O marido queria um filho e responsabilizou a mulher por aquilo que ele considerava uma ofensa. Além disso, mais grave ainda, deu ouvidos a certos mexericos acerca da natureza real dos sentimentos que Marie alimentava pelo seu irmão.