Ides arrepender-vos por vos preocupardes dessa maneira comigo. Não imaginais, sem dúvida, que vos trago qualquer mensagem do vosso sire?

De facto confessou Fiora. Mas, se não é o caso, não sois menos bem-vindo. Será que depois de Senlis já não somos amigos?

Espero que sim e foi por isso que, a caminho do meu exílio, não me pude impedir de passar um momento junto de vós. Uma maneira como outra qualquer de me consolar.

A caminho do vosso exílio? Estais zangado com o Rei?

Zangado é de mais. Digamos que indisposto e que ele me quer longe por um certo tempo. Mandou-me a Poitiers.

A Poitiers? E que ides vós fazer a Poitiers?

Não sei bem. Desembrulhar não sei que história provincial com os almotacés da cidade, uma miséria para um homem como eu. É verdade que o indispus com as minhas censuras.

Censurastes o Rei, vós?

Eu. E o pior é que não me arrependo e estou pronto a recomeçar.

Mas, porquê?

Porque pergunto a mim próprio se ele não enlouqueceu! Por favor, Madonna, dai-me mais um pouco de vinho de Bourgueil! Preciso muito, porque tenho coisas amargas a dizer. Não reconheço o nosso sire. Tão sensato, tão prudente, tão preocupado

1 Ver Fiora e Carlos, o Temerário.


com a vida dos outros... e eis que se comporta exactamente como o defunto duque Carlos.

Quereis dizer que ele massacra os que lhe resistem?

Mais ou menos isso. No entanto, ia tudo tão bem. O Rei começou por intimar à ordem René da Lorena, para que se mantivesse tranquilo e trouxesse as suas tropas até ele. Depois, comprou Sigismond de Áustria para que ficasse no seu Tirol e fez o mesmo com os Suíços, para que se contentem com o que ganharam. E depois, logo a seguir à vossa chegada, partimos para o Somme. Então...!

E Commynes, com a prolixidade e o luxo de pormenores de um homem para quem a política é uma segunda natureza, contou à sua anfitriã como Luís XI penetrara na Picardia e em Artois com o falacioso pretexto de proteger os bens de Maria de Borgonha que, aliás, era sua afilhada como um bom padrinho em socorro da sua órfã. Numerosas cidades, como Abbeville, Doullens, Montdidier, Roye, Corbie, Bapaume, etc., tinham-se deixado tomar sem grandes dificuldades e sem grandes queixas; mas outras, mais bem guardadas, talvez, pelos seus governadores borgonheses, tinham recusado render-se e tinham pedido ajuda a Maria. Souberam, então, quanto pesa a cólera do Rei de França: assaltos, pilhagens, execução de notáveis, expulsão dos seus habitantes e destruição, no todo ou em parte, das cidades culpadas. Já não era a Aranha Universal tecendo pacientemente a sua teia do fundo do seu gabinete, era Átila conduzindo as suas tropas à matança. Arras, meio destruída, foi esvaziada dos seus habitantes, substituídos por gente pobre, que, também ela, tinha perdido tudo.

Foi aí concluiu Commynes que interveio a divergência entre o Rei e eu. Censurei-o por esses excessos tão pouco conformes com a sua natureza e ele censurou-me por eu ser demasiado flamengo e sentir simpatia pelos seus inimigos. É por isso que me vedes na estrada de Poitiers com, como única consolação, o pensamento de que vou poder saudar Hélène, a minha bela mulher, na sua cidadela de Thouars.

É verdade que não a vedes muitas vezes. É normal uma mulher viver fechada nas suas terras com a família enquanto o marido vive na corte do soberano? murmurou Fiora, sonhadora.

Parece que não a iríeis ver se o pudésseis evitar? Acho-vos gente bem estranha, vós todos, Franceses e Borgonheses! Entre nós, marido e mulher vivem junto um do outro até que a morte os separe. E não me digais que isso é uma vida burguesa: Monsenhor Lourenço e Dona Clarissa, sua mulher, se não estão sempre sob o mesmo tecto, moram, pelo menos, na mesma cidade. Aqui, o Rei vive em Plessis e a Rainha em Amboise; a vossa mulher vive em Thouars e vós junto do Rei e...

À medida que falava, Fiora ia ficando excitada. O marfim pálido do seu rosto enrubesceu um pouco, ao mesmo tempo que uma lágrima lhe cintilava nos seus grandes olhos cinzentos. E a sua voz quente deixava perceber uma ligeira falha. Commynes contemplou-a por um instante sem dizer nada, deleitando-se com o espectáculo da sua beleza que parecia caminhar na direcção da perfeição, como uma rosa prestes a desabrochar. A jovem estava sentada numa cadeira alta de carvalho esculpido, delicadamente estofada com almofadas de brocado de um verde-prateado que punham reflexos de águas profundas no vestido de tecido suave e ”esbranquiçado”, bordado com delicadas folhas de salgueiro e pálidas violetas que formavam grinaldas em redor das mangas, no profundo decote que uma gargantilha de musselina tornava mais modesto e na barra da saia. Os seus belos cabelos, simplesmente entrançados com uma fita, formavam uma espessa trança que deslizava ao longo do seu pescoço gracioso, dando-lhe o ar de uma rapariguinha.

Com aqueles adornos simples, estava mais deslumbrante do que nunca. No entanto, o olho vivo do senhor de Argenton parecia reparar que, sob as largas pregas aveludadas presas sob os seios por um grande cinto de prata, o corpo parecia estar ligeiramente arredondado. Viu-a, então, com outros olhos: já não era unicamente um ser de uma sedução excepcional e de uma coragem pouco comum, era também uma mulher fragilizada por uma futura maternidade, que não sabia grande coisa, sem dúvida, acerca do homem que amava; uma mulher que tinha, sobretudo, uma grande dificuldade para se adaptar àquela forma de vida separada, que a vida da corte e as exigências da guerra impunham. Em Itália, a guerra era assunto de mercenários: o príncipe que fosse capaz de escolher os melhores e mais numerosos tinha grandes hipóteses de a ganhar. As gentes de Florença, assim como as outras, pagavam para ficar em suas casas, desobrigadas de se matarem umas às outras de tempos a tempos, mas quando um perigo qualquer se aproximava das muralhas, era toda a população que se batia, as mulheres ao lado dos homens. Fiora não compreendia por que razão o serviço de um suserano qualquer havia de a condenar à solidão.

Docemente, ele pegou numa das belas mãos que repousavam nos joelhos da jovem, colocou-a entre as suas e terminou a frase que deixara em suspenso.

... e vós próprios, ainda mais separados, já que o vosso marido serve a duquesa Marie enquanto vós estais ligada a França.

Pelas minhas amizades e pelos meus interesses, já que a pouca fortuna que me resta se encontra neste país e, enfim, porque não tenho qualquer razão que me leve a combater o Rei Luís, que foi bom para mim.

Mas esperais uma criança e o vosso dilema é, ainda, mais doloroso. Que posso fazer para vos ajudar, minha amiga?

Ela corou e as lágrimas que não conseguiu reter deslizaram-lhe pelas faces.

Vós, que sabeis sempre tudo, podeis dizer-me onde ele está? Deixei-o há quatro meses e, desde então, não tenho quaisquer notícias.

Gostaria de vos fazer a vontade, mas é difícil, mesmo para mim. Maria de Borgonha e a duquesa viúva são mantidas sob grande vigilância pelos de Gand no seu palácio de Coudenbergh, mais reféns do que soberanas e os nossos espiões não têm meio de saber o que se passa. No entanto, posso dizer-vos que se monsenhor de Selongey estava até há pouco junto delas, parece que desapareceu.

Desapareceu?

Não entendais isso no mau sentido, Madonna. Penso que ele já não está em Gand e que Madame Maria o encarregou de uma missão, talvez no Condado de França, mais provavelmente na Borgonha, onde, parece, a notícia da morte do Temerário não provocou grandes lágrimas. Ele deve ter ido reaquecer esse entusiasmo enfraquecido.

Por outras palavras: está em perigo! Meu Deus!

Acalmai-vos, peço-vos. O que eu disse não passa de suposição. A duquesa pode, também, tê-lo enviado junto do noivo para lhe pedir que se apresse. Repito-vos: não sabemos nada. O que posso prometer-vos é que vos darei notícias assim que as receber.

Credes que tereis algumas em Poitiers?

Lá estais vós a malhar em ferro frio! disse Commynes rindo. Mas podeis estar certa que tenho, aqui e ali, alguns informadores e que, de qualquer maneira, não ficarei muito tempo em Poitiers... Vou-me aborrecer sem o nosso sire... mas ele ainda se vai aborrecer mais!

Léonarde, que entrava para anunciar a refeição, encontrou os dois a rir, o que a tranquilizou. Commynes, apesar de se ter tornado francês, guardava algo de borgonhês que a inquietava vagamente, mas no decurso da refeição esqueceu-o. O senhor de Argenton continuava a ser um conviva amável, alegre e eloquente. Embalado por um salmão do Loire com limão seguido de umas salsichas de galo e de um suculento fricassé de galinha-do-mato e perdiz com cogumelos, tudo regado com belos vinhos do Loire que Étienne Lê Puellier trazia piedosamente da adega da casa, foi brilhante e estrondoso de bom humor. Fiora ria e Léonarde, feliz por isso, concedia todas as atenções ao visitante de passagem.

No dia seguinte, Commynes retomou o caminho do seu exílio, deixando para trás uma Fiora cheia de esperança. Com efeito, pouco desejosa de servir o império alemão, a alta nobreza borgonhesa começava a olhar com olhos meigos para as mãos carregadas de presentes que o Rei Luís lhe estendia. As reuniões sucediam-se, ainda por cima porque o Rei pagara alguns dos resgates que os nobres prisioneiros do último combate deviam pagar ao duque da Lorena. E, no momento de a deixar, Commynes murmurara:

Até o grande bastardo Antoine, o irmão preferido e o melhor capitão do defunto duque está a pensar em se virar para nós. O vosso marido não poderá continuar a brincar durante muito tempo aos irredutíveis. Um dia fará como os outros: escolherá a França.

Não podia ter-lhe dito nada mais reconfortante. Se o grande bastardo achava que a Borgonha se devia virar para o seio francês, ainda por cima porque as suas armas tinham a flor-de-lis, arrastaria consigo aqueles que tinham estima e amizade por ele. Philippe era desses. Talvez continuasse amuado durante mais algum tempo. O importante era que não cometesse nenhuma acção irreparável e Fiora recordava-se demasiado bem de ter conseguido, à justa, evitar-lhe o cadafalso por ter tentado assassinar o Rei Luís. Evidentemente, se ele escolhera seguir a duquesa Maria para a Alemanha, era possível que não regressasse tão cedo.