Incontestavelmente, Péronnelle era faladora e, por esse motivo, recordava um pouco a Léonarde a gorda Colomba, que era ao mesmo tempo a sua melhor amiga e a sua melhor fonte de informações em Florença. Mas o débito tumultuoso da governanta dos Albizzi era muito diferente do de madame Le Puellier. Esta era uma contadora nata, que sabia dar sal e pimenta à mais banal das disputas entre dois camponeses no mercado do bairro de Notre-Dame Ia Riche. Além disso, a sua linguagem, despojada de qualquer vulgaridade, tinha uma certa pureza e elegância, e Léonarde não se fez rogada, cumprimentando-a por isso.
Isso deve-se disse Péronnelle ao facto de eu ter nascido nesta região. Nós, os de Tours, somos conhecidos em todo o reino como os que melhor falam a nossa língua. Mas não me pergunteis de onde nos vem isso, seria incapaz de vos responder. No entanto, penso que é um pouco por essa razão que o nosso bom sire, o Rei Luís, gosta tanto de estar, não apenas com os grande burgueses de Tours, mas também com as pessoas mais humildes, como o meu Étienne e eu.
Léonarde adquiriu um novo respeito pela sua companheira, assim como um pouco mais de amizade por aquela doce região onde era tão bom viver. Cada vez gostava mais dela e acabou por temer os dois acontecimentos susceptíveis de perturbar a sua beatitude: a chegada súbita de Philippe para levar a sua mulher de boa vontade ou à força para a sua fortaleza borgonhesa e a realização da ameaça proferida por Fiora: partir para Roma para pedir ao Papa a anulação do seu casamento. O facto de a jovem parecer gostar da sua nova casa e nunca pronunciar o nome do seu marido não a tranquilizava nada: conhecia demasiado bem a sua impulsividade e a sua necessidade de estar sempre em movimento, inerente à sua natureza.
Assim, quando, certa manhã do mês de Março, Fiora, ao levantar-se, e recusando a sua malga de sopas de leite, declarou que estava enjoada e desmaiou graciosamente entre os pés de Léonarde e de Péronnelle, as duas mulheres olharam uma para a outra com os olhos brilhantes como velas e caíram nos braços uma da outra antes, sequer, de lhe prestar socorro.
Um bebé! clamou Péronnelle. A nossa querida senhora está à espera de um bebé! Louvados sejam Nosso Senhor e Nossa Senhora, que abençoaram esta casa!
Por seu lado, Léonarde chorou de alegria e uma vez a futura mãe instalada confortavelmente no seu leito, correu ao priorado de Saint-Côme para ali depositar uma esmola e queimar algumas velas. A demente viagem a Roma ficava fora de questão, já que a união entre Philippe e Fiora ia dar fruto.
A notícia, quando recobrou a consciência, deixou Fiora estupefacta. O pensamento de que Philippe, durante as noites apaixonadas de Nancy, lhe tivesse feito um filho, nunca lhe tinha passado pela cabeça. O seu amor por ele estava escondido no fundo do seu coração, sob uma camada de rancor e ciúme tão espessa, que lhe acontecia esquecê-lo. E eis que nascia um ramo desse amor sufocado, um ramo que ia germinar durante a Primavera que se anunciava e o Verão que se seguiria, para florir quando amadurecessem as uvas. E que os laços que a uniam a Philippe se iam tornar demasiado fortes, tão fortes que só a sua vida os cortaria.
O mal-estar que se apoderara dela abandonou logo de seguida, como uma vaga que se retira. A casa estava tranquila, quente e silenciosa, à excepção dos pequenos sons que vinham da cozinha onde Péronnelle tocava, com as suas caçarolas de cobre, uma música triunfal. Então, Fiora levantou-se e, sem sequer se dar ao trabalho de calçar as pantufas, foi até uma alta e estreita janela de Veneza, muito semelhante à que o seu pai mandara vir para ela e que era a maior riqueza do seu quarto. Ali, deixou cair a camisa e examinou o seu corpo com a ideia de que, talvez, encontraria uma mudança qualquer, mas a sua cintura continuava fina, o ventre liso e os seios exactamente os mesmos da véspera.
Ainda é muito cedo disse Léonarde, que acabava de entrar e a surpreendera nessa posição. Se fizemos bem as contas, estais grávida há dois meses, meu cordeirinho. Espero que estejais contente?
Era evidente que estava e era uma sensação deliciosa após dois meses de retiro para dentro de si própria. Saber que começava a germinar uma vida dentro de si tirava-lhe o sentimento acabrunhante de não ter, neste mundo, qualquer utilidade, nenhum preço real, já que o homem que, numa noite de Inverno, lhe jurara protegê-la, amá-la, defendê-la, mantê-la no seu leito e no seu quarto até que a morte os separasse, preferira a guerra e o serviço de uma princesa que se dizia ia tornar-se alemã. Doravante, Fiora tinha uma razão para viver e um objectivo: dar à luz o mais belo bebé do mundo e depois, mesmo que o seu pai nunca mais regressasse, educá-lo, fazer dele um homem forte e sábio, para quem as armas e o furor dos combates não representariam o bem supremo; um homem que saberia parar para cheirar uma flor, para admirar a beleza de uma paisagem ou de uma obra de arte, ou, simplesmente, para falar com um amigo, a um canto de uma rua, de coisas úteis para o Estado, ou das últimas descobertas do espírito humano. Um homem, enfim, que se parecesse mais com Francesco Beltrami do que com o seu próprio pai.
Era, sem dúvida, ilógico e até aberrante, mas a ideia de que o seu filho pudesse vir a ser um grande fanfarrão unicamente ligado à força e à brutalidade deixava-a horrorizada. Vira demasiada guerra durante demasiado tempo e demasiado perto de si para lhe achar qualquer encanto.
E se for uma rapariga? - perguntou Léonarde, que continuava a ser a confidente dos pensamentos da jovem.
Ainda não tinha pensado nisso. Para mim, o bebé de Philippe só pode ser um rapaz. Aliás, é preciso que seja um rapaz! Não ides, certamente, concluir que não seria capaz de amar uma rapariga? Pelo contrário, porque ela seria mais minha. Mas é preciso, uma vez ou outra, dar um jovem macho aos senhores. E estou persuadida de que devo dar continuidade aos Selongey.
Não acrescentou, mas isso era a sua esperança secreta, que o encanto de um filho talvez conseguisse fazer com que Philippe compreendesse a sã compreensão da vida familiar. Preparou-se, desde então, para o grande acontecimento, escutando sensatamente os conselhos que Léonarde e Péronnelle lhe prodigalizavam. Esta última começou a torturar o cérebro em busca de iguarias que não produzissem qualquer repugnância à futura mãe, tentando, mesmo, o seu apetite. As suculentas e pesadas salsichas, de que Tours se orgulhava com razão, foram banidas em prol de uma alimentação mais ligeira. Fiora passou a comer lacticínios, queijos frescos, bolos leves, galinhas que se desfaziam na boca e o melhor peixe que Étienne ia pescar no Loire. Também teve, enquanto duraram os enjoos, chás de cidreira e de menta e quando a Primavera cobriu as encostas de primaveras e fez explodir nas árvores frutíferas do pomar enormes ramos brancos e cor-de-rosa, passados os primeiros tempos difíceis, sentiu-se como não se sentia há muito tempo e tomou parte nos preparativos do nascimento: a confecção do enxoval.
A vida, na Casa das Pervincas, era muito calma, retirada e até solitária. Fiora regozijava-se porque, por um momento, receara que a vizinhança imediata do castelo real fosse uma fonte de agitação, senão de invasão. O que seria o caso, sem dúvida, se Luís XI estivesse em Plessis, mas, praticamente no dia seguinte à chegada das viajantes, ele abandonara a sua casa predilecta com a maior parte da sua corte para se juntar aos seus exércitos do Norte.
O Rei não tencionava, com efeito, confiar a ninguém a recolha da herança do Temerário e, de facto, dera ao seu inimigo poucas hipóteses de escapar à armadilha de Nancy: no preciso momento em que o gelo do lago Saint-Jean se fechava sobre o corpo agonizante do último dos grandes duques do Ocidente, já os exércitos do Rei de França tomavam posição nas fronteiras da Lorena, perto de Toul, perto de Metz, assim como no Somme e há muito tempo que só esperavam um sinal para mergulhar na Borgonha, cujas fronteiras já tinham ultrapassado. De seguida, a guerra desencadeava-se em Artois e na Picardia, ao mesmo tempo que as poderosas cidades flamengas, mais aliviadas do que desgostosas com uma morte que as libertava de uma tutela cujo peso recusavam, davam a saber a Maria de Borgonha que o tempo dos seus privilégios tinha terminado e que era, no seu palácio de Gand, mais prisioneira do que soberana. Para lho provarem, fizeram rolar as cabeças do último chanceler da Borgonha, Hugonnet e do senhor de Humbercourt, que era um dos mais sólidos conselheiros de Maria.
Não sabendo para que lado se virar, a infortunada herdeira escrevera, no fim do mês de Março daquele ano de 1477, ao filho do Imperador Frederico, considerado por ela como seu noivo, uma carta desesperada, chamando-o em seu socorro. Mais ou menos no momento em que Philippe de Selongey se introduzia em Dijon, a capital do ducado, da qual esperava, levando-a à rebelião, fazer o centro da resistência.
Na sua propriedade de Tours, protegida pela floresta e pelo rio, Fiora ignorava todos esses acontecimentos. Teve uma ideia quando, em Abril, recebeu a visita inopinada do senhor de Argenton, Philippe de Commynes, que na qualidade de primeiro conselheiro do Rei ela pensava estar a seu lado na guerra.
Philippe de Commynes mostrara ser seu amigo em condições difíceis e ela acolheu-o com o prazer devido a uma pessoa de quem se gosta, oferecendo-lhe repouso a um canto da chaminé onde ardia uma pilha de toros odoríferos e uma taça do vinho que todas as casas acolhedoras ofereciam a um viajante. Enquanto isso, Léonarde prevenia, sob as suas ordens, Péronnelle, para que esta regressasse à boa cozinha. Commynes era comilão, Fiora sabia-o, e possuía um bom apetite flamengo, que era preciso contentar. Porém, todas essas atenções arrancaram apenas ao conselheiro real um grande suspiro:
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