Léonarde deixara correr o rio envenenado, evitando interrompê-la: Fiora precisava daquele conforto. Só quando, esgotada, ela se deixou cair de borco no leito para chorar todas as lágrimas é que a velha solteirona, com uma grande doçura, tentou chamá-la à razão: as leis da Borgonha, tal como as de França, diziam que a mulher, guardiã do lar e produtora das crianças, ficava em casa enquanto o marido se ocupava dos seus negócios e ia onde o dever o chamava. Não era normal viver sempre na estrada, entregue à sorte dos maus encontros... e o repouso tinha os seus encantos.

Se é assim, vou repousar respondeu Fiora mas em minha casa e não num castelo onde serei uma intrusa. Já é tempo de Philippe provar que me ama, porque, depois do nosso casamento, não se tem portado nada bem!

Sois injusta. Ele foi a Florença para vos ver. E, mais tarde, não se bateu ele por vós, por duas vezes? Se bem compreendi, não lhe destes grandes hipóteses quando o abandonastes naquele quarto, em Nancy?

Achais? A mim, parece-me que, pelo contrário, lhe dei bastantes e que ele as agarrou, já que não me impediu de partir.

Que hipóteses é que lhe destes?

As de recuperar a liberdade. Disse-lhe que iria a Roma junto do Papa para anular o nosso casamento se ele não fosse ter comigo a França!

Léonarde, então, não pudera reter um suspiro de desolação:

Será possível que, por orgulho, façais tanto mal a vós própria, quando acabais de vos reencontrar? Nunca se deve obrigar um homem a escolher entre o coração e o dever. E se ele... nunca mais voltar?

Pelo silêncio que Fiora manteve durante alguns instantes, Léonarde compreendeu que acabava de tocar num ponto sensível. Nos olhos cinzentos da jovem ela leu a angústia, mas apenas por um instante: as faíscas do rancor retomaram os seus direitos. Fiora andava de um lado para o outro no quarto estreito do albergue, que ambas partilhavam, como uma fera enjaulada, procurando, talvez, qualquer coisa para partir, quando, bruscamente, se deteve diante da velha governanta:

. Julgarei o valor do seu amor pelo que fizer. E, Léonarde, pergunto a mim própria se, com um homem como ele, não o prenderei mais a mim deixando-o fugir.

É uma ideia!

E não é nada tola! Creio que começo a compreender os homens. Aceitar ficar confinada à casa à espera deles com as crianças, graças às quais eles se certificam da nossa tranquilidade é, talvez, o melhor meio de enfraquecer o amor. Por se tornar demasiado quotidiano, perde o brilho.

O amor-paixão, talvez! Mas fica a ternura e a doce teia tecida pelos dias passados um com o outro. Tenho medo que vos esperem longas noites solitárias.

Sê-lo-iam menos em Selongey, enquanto Philippe galopa na garupa do cavalo daquela duquesa? Tenho vontade de ir para casa, mesmo para casa. Há muito tempo que não sei o que é isso.

O assunto, por aquela noite, ficou encerrado e não voltaram a falar dele. Léonarde acabara por achar que uma retirada para uma solidão campestre faria bem à jovem demasiado impulsiva e incutir-lhe-ia, talvez, um pouco mais de sabedoria e reacções menos irracionais. Ela própria ficou seduzida, aliás, por aquela casa que o Rei dava à sua jovem amiga e onde tudo estava disposto para uma vida agradável.

O solar chamava-se La Rabaudière, mas há muito tempo que as gentes dos arredores o apelidavam de Casa das Pervincas por causa das grandes manchas azuis que, na Primavera, iluminavam o bosque e invadiam o jardim se não se tratasse dele; agarravam-se ao terraço que, do lado do rio, sublinhava as janelas da grande sala. As suas centenas de flores azuis-escuras e as suas folhas de um belo bronze claro faziam cantar as paredes da cor da aurora. Quanto ao jardim, que abria para um pomar, tinha grandes maciços de buxo transbordando de goivos vermelhos cujos aifos, um pouco loucos, rodeavam roseiras, groselheiras, alecrim e cássis, que cresciam à vontade de cada lado da alameda que conduzia ao lanço de escadas de pedra que ia dar ao terraço.

O interior tinha tanto encanto como o exterior e parecia uma continuação do jardim. Para além da grande tapeçaria florida que era a glória da grande sala, não havia tapetes pesados naquela casa dos bosques, antes brocados brilhantes, telas bordadas com animais familiares e pequenas flores de todas as cores que vestiam os leitos e as almofadas quadradas dispostas um pouco por toda a parte para o conforto dos corpos fatigados e o repouso dos pés. Os móveis eram simples mas de um gosto irrepreensível. Cheiravam a cera de abelha e suportavam soberbos estanhos e objectos, dos quais alguns conseguiram da parte de Fiora um sorriso terno, como umas belas taças de vidro vermelho de Veneza e umas maiólicas verdes que deviam ter visto a luz do dia sob o céu da Romanha. Quanto às numerosas arcas e aparadores dispersos pelas diferentes divisões, encerravam suficiente louça e roupa para satisfazer qualquer dona-de-casa, mesmo uma tão exigente como Léonarde. Por fim, a cozinha, rutilante de cobres e abundantemente provida de presuntos, tranças de cebolas, alhos e ramos de ervas secas pendurados nas traves, acabou por conquistar o coração da velha solteirona que, pela primeira vez desde há muito tempo, reencontrava a impressão deliciosa de regressar a casa após uma longa ausência.

Um casal de idade madura, Étienne Lê Puellier e a sua mulher Péronnelle, tinham sido escolhidos, muito antes da chegada de Fiora, para velar pela manutenção da pequena propriedade. A sua casa nas margens do Cher fora levada por uma grande cheia um ano antes e Luís XI, que conhecia Étienne desde a infância e os recolhera em Plessis, prometera arranjar-lhes uma casa mais bonita do que a primeira se aceitassem tratar de La Rabaudière. O que eles tinham feito com grande alegria, porque eram pessoas para se atirarem para o fogo a um simples sinal do seu ”bom sire. Moravam, nas águas-furtadas da casa, num belo quarto cuja janela, coroada com uma empena com a flor-de-lis, abria para o brilhante manto de ardósias que cobria a casa. Como bons originários de Tours, sólidos e amáveis, amavam o trabalho e teriam sido as duas pessoas mais felizes do mundo se o Céu lhes tivesse concedido um filho, mas as orações, as novenas e as frequentes visitas à tumba do grande São Martinho, glória da cidade vizinha de Tours, tinham-se revelado inúteis e aos quarenta e cinco anos bem vividos Péronelle sabia que não tinha grande coisa a esperar da mãe natureza. Consolava-se regalando o seu Étienne com os tesouros de uma cozinha cuja qualidade era comparável à do mestre Jacques Pastourel, que reinava nas cozinhas reais e muitas vezes o Rei, de regresso de uma das suas caçadas, instalava-se à sua mesa.

Péronelle era redonda como uma maçã, com um rosto de linhas doces cuja beleza residia nos dois grandes olhos da cor exacta da pervincas que tinham dado o nome à casa e Étienne tivera de se impor mais de uma vez para impedir os galãs de lançarem piropos àqueles olhos. E saíra sempre vencedor, porque era tão quadrado quanto ela era redonda, e o uso alternado da cana-de-pesca, da enxada e do machado tinha-o dotado de músculos com os quais era preciso contar.

Longe de os entristecer, a chegada de Fiora e de Léonarde provocou-lhes uma mistura de prazer e alívio. Não sabiam ao certo a quem o Rei dera a Casa das Pervincas. Tinham-lhes dito, apenas, que se tratava de uma jovem a quem Luís XI queria muito. E o casal temia que se tratasse de uma favorita qualquer, tanto mais insuportável quanto não teria saído, certamente, da coxa de Júpiter e que a idade do Rei teria tornado arrogante. Que Luís XI tivesse arranjado uma amante quando jurara não tocar em mais nenhuma mulher senão na sua o que devia acontecer de vez em quando, já que a Rainha Carlota, vivendo todo o ano no castelo de Amboise, a umas boas seis léguas de Plessis já era suficientemente preocupante para aquelas duas boas almas.

A beleza da recém-chegada, a sua gentileza e o rosto respeitável de Léonarde tiraram-lhes desde logo, de cima dos ombros, a maior das suas preocupações e Douglas Mortimer, que eles conheciam bem e que o Rei encarregara de acompanhar a nova proprietária, tirou-lhes as restantes: Dona Fiora era a filha de um antigo amigo do Rei Luís e este decidira tomá-la sob a sua protecção após as numerosas infelicidades de que fora vítima. O mais grave era, talvez, ter casado, em tempos, com um senhor borgonhês demasiado amigo do defunto Temerário para aceitar tornar-se francês e que, a despeito das orações a jovem, decidira pegar de novo em armas e partir à aventura.

Assim, Dona Fiora, desolada, decidira refugiar-se junto do seu velho amigo cuja confiança recusava trair.

Um discurso bastante raro da parte do escocês, que, geralmente, não pronunciava mais de três palavras por hora e que tinha impressionado fortemente Étienne, muito mais falador do que ele, e provocado algumas lágrimas na sensível Péronnelle. Posto o que o casal adoptou Fiora e fez os impossíveis para que esta sentisse a felicidade que era viver na região de Tours. Com tanto mais entusiasmo quanto o acordo entre Péronnelle e Léonarde fora imediato a despeito de alguma diferença de idades. Muito piedosas tanto uma como outra, souberam entender-se na arte da lida da casa porque, se bem que Léonarde tivesse reinado em tempos num palácio florentino e numa villa sumptuosa, era capaz de pôr um freio na supremacia dos seus talentos e admirar de boa-fé a especialidade em que Péronnelle era mestra, isto é, a arte culinária. Por seu lado, Péronnelle dera o justo valor ao tacto da velha solteirona, entregara-lhe as chaves das arcas e dos armários e tirava proveito dos conhecimentos trazidos do outro lado dos Alpes pela sua companheira. Por outro lado, não se cansava de a ouvir evocar as maravilhas da fabulosa villa de Florença, casa que ela nunca teria oportunidade de visitar. Não era raro ver, na cozinha, Léonarde a fiar enquanto descrevia à sua nova amiga, ocupada a mexer um molho, os sons, as cores e os odores dos mercados das sextas-feiras. Outras vezes produzia-se o contrário e Péronnelle iniciava Léonarde nos usos e costumes da região de Tours, assim como nos mexericos e histórias que percorriam a cidade e o campo, porque tinha uma espécie de dom, que era o de estar sempre ao corrente do que se passava nos arredores.