As portas já devem estar abertas. Sentes-te com forças para continuar?

É preciso. É verdade que não há nada a temer durante a missa, mas quanto mais cedo Lourenço for prevenido, melhor.

Estou de acordo, ainda por cima porque a missa não me inspira grande confiança...

És louco?

Não, mas tenho recordações. Na minha vida, forcei as portas de demasiados conventos e violei suficientes freiras para saber o que vale o temor a Deus quando o poder está em jogo. Mas ainda temos uma meia légua para percorrer antes de chegarmos às portas de Florença... e vai ser preciso fazê-la a pé.

Apesar dos esforços de Fiora para obter uma montada qualquer, tiveram de se resignar, mal-grado a fadiga, a continuar pelos seus próprios meios. Mas, ao ver a multidão que, vinda de todos os lados, começava a caminhar na direcção da cidade, Fiora achou que teria sido impossível ir mais depressa, a menos que esmagassem pessoas. De todos os lados, os camponeses caminhavam na direcção de Florença, como para uma nova Jerusalém, para tentarem ver o enviado do Santo Papa. Aquela afluência tinha muito a ver com o mau tempo, que cessara bruscamente. O Sol, um verdadeiro sol pascal, dourava toda a região, na qual os campanários, um após outro, acordavam as suas vozes de bronze para proclamar a toda a face daquela terra de traições, de guerras, de assassínios, de trevas e medo, que o Filho do Homem acabava de ressuscitar, trazendo com ele a esperança da vida eterna...

No decurso da noite anterior, Fiora abandonara definitivamente a túnica brasonada, que atirara para um ribeiro após tê-la atado solidamente a uma grande pedra, mas o gibão de pele de gamo, entretanto desapertado para melhor respirar, parecia-lhe pesado e trocara com alegria as botas altas por um par de tamancos. O fluxo entusiasta que esvaziara as aldeias levou os dois viajantes até às muralhas de Florença que Fiora, esquecendo a fadiga e a angústia, viu subir para si com uma alegria impossível de conter. Há tanto tempo que esperava por aquele momento, bendito entre todos, que lhe permitia rever a cidade bem-amada da sua doce infância! E Florença acolhia-a com o carrilhão de todos os seus sinos e com a alegria tumultuosa das suas ruas engalanadas.

À medida que avançavam pelas ruas, o fluxo tornava-se mais denso, mais violento, até.

Não conseguimos sair daqui murmurou Rocco, que não gostava de se sentir apertado. Vamos na direcção do palácio dos Médicis? perguntou ele enquanto a vaga se contraía para transpor a Ponte Vecchio por entre a dupla fila de lojas com as portas fechadas.

Sim e não. Primeiro vamos ao Duomo. O palácio fica um pouco mais longe...

Usando os cotovelos e os punhos das suas espadas, conseguiram ganhar terreno e desembocaram na praça que Fiora conhecia por ali ter visto desmoronar-se o seu universo no dia terrível do funeral do seu pai. Mas aperceberam-se, então, de que era impossível ir mais longe. Cordões de soldados guardavam as entradas de todas as ruas.

Eu venho de Roma e trago uma mensagem para monsenhor Lourenço disse Fiora a um dos sargentos. Deixai-me passar! Tenho de ir ao palácio...

Mais tarde, meu rapaz! Ainda não ouviste os sinos? A missa começou e monsenhor Lourenço está a assistir a ela com o irmão e os amigos... Espera! acrescentou ele, apiedado pelo rosto

Ver Fiora e Lourenço, o Magnífico


magro, cheio de poeira e visivelmente fatigado. Vou fazer com que entres na igreja. Se te esgueirares, talvez consigas chegar até ele.

Levada pelo punho sólido do soldado, Fiora viu-se, em breve, sob o portal do Duomo, cujas portas monumentais, totalmente abertas, deixavam sair sons harmoniosos. Rocco seguia-a, colado aos seus calcanhares:

Como vês, filho, a igreja está cheia. Arranja-te como puderes! disse o sargento. Eu regresso ao meu posto antes que a multidão me impeça de o fazer.

Aproximar-se do altar, junto do qual deviam estar os irmãos Médícis, a sua família e os seus amigos, parecia difícil, porque havia gente, até, na nave central habitualmente vazia para marcar a fronteira entre os homens e as mulheres. Mas Fiora conhecia aquela igreja desde a sua infância e começou a deslizar pela nave lateral, murmurando aos que a impediam de passar e agitando a carta de Catarina:

Mensagem para monsenhor Lourenço! Mensagem para monsenhor Lourenço!

Fazia um calor de rachar. A multidão que se amontoava entre as paredes de Santa Maria del Fiore era tão densa que reproduzia naquela imensa nave de mármore o calor que começava a encher a cidade, secando, enfim, os ribeiros e as poças lamacentas que as chuvas incessantes da Semana Santa tinham engrossado. O odor do incenso, tão generosamente queimado que as suas espessas volutas subiam até ao alto da imensa cúpula, misturava-se com o mais insípido das centenas de velas que ardiam em redor do altar e com o aroma das flores que compunham um tapete e que morriam lentamente. Na nave amontoava-se uma assistência brilhante, toda de cetim e veludo, dourada, constelada de pedrarias e mais próxima da corte frívola de um príncipe terrestre do que de uma assembleia de cristãos devotos reunida para celebrar o Santo Sacrifício. As pessoas cumprimentavam-se, falavam, passavam umas às outras, em voz baixa, o último mexerico ou mais recente poema. Examinavam-se umas às outras. Criticavam toilettes e penteados. Por detrás daquela multidão enfeitada, o povo fazia os possíveis para conseguir ver, no coro, os dois senhores da cidade. Lourenço, todo vestido de negro, mas usando no barrete um diamante que valia um reino e Giuliano, todo de púrpura e ouro, belo e radiante como uma estátua de Apoio e alegre como um pajem em férias.

Quando, por fim, os viu, Fiora sentiu o seu coração cantar de alegria. Estavam vivos, bem vivos e quando o ofício terminasse poderia entregar-lhes a mensagem. Deus permitira que, a despeito da sua jornada impossível, não chegasse demasiado tarde! E era tão bom rever, enfim, aqueles rostos que lhe tinham sido tão queridos... e que ainda eram.

No coro, uma outra personagem disputava com eles, naquele dia, a curiosidade do povo. Essa personagem mostrava-se delgada e pálida, muito jovem sob as rendas e a pesada púrpura cardinalícia, um jovem príncipe da Igreja de dezoito anos que parecia ter crescido demasiado depressa. O menor dos seus gestos acendia centelhas na sua mitra dourada coberta de pedras preciosas e nos sóis bordados a ouro das suas luvas escarlates. A bem dizer, Rafaele Riario não parecia muito à-vontade, mas todos atribuíam essa atitude à timidez, conveniente e até comovedora num jovem carregado com uma tal grandeza. As mulheres achavam-no encantador por causa dos seus olhos lânguidos e do frequente rubor que subia às maçãs-do-rosto, mas os homens, perante a sua evidente fragilidade, enchiam o peito e sentiam-se confirmados na sua superioridade de machos; contentes consigo próprios, etíquetavam-no com uma satisfação desdenhosa: um badameco.

Uma parte do clero e os padres do seu séquito rodeavam a espécie de trono onde o tinham sentado e onde ele estava meio adormecido a despeito dos clamores do órgão e dos cânticos de um coro cujas gargantas pareciam particularmente vigorosas. De facto, no meio daquela gente toda, só os Médicis e alguns dos amigos agrupados por trás deles Fiora reconheceu o grande nariz de Angelo Poliziano, as lunetas de Marsile Ficino e os olhos sonhadores de Botticelli pareciam seguir a missa de Páscoa.

No altar, o padre e os seus acólitos continuavam a seguir o lento e solene ritual da missa. Primeiro a Consagração, depois a Elevação. Uma campainha foi agitada com uma energia pouco habitual. Os cânticos morreram, as conversações cessaram, apenas o órgão continuou a tocar em surdina. Como um campo de flores dobrado por um vento súbito, homens e mulheres ajoelharam-se. Diante da mesa santa, cintilante de luzes, o oficiante, erguendo muito alto a hóstia que um reflexo de vitral pintou de vermelho, pareceu ficar maior na sua casula de ouro frisado. Os sinos recomeçaram a tocar e desencadeou-se um tumulto terrível. Fiora ficou lívida.

Não é possível? Aqui não...

Vamos! disse Rocco, desembainhando a espada.

Ela seguiu-o, tendo também desembainhado a sua por mimetismo e forçaram ambos um caminho através da multidão uivante, que se desorientava e perdia a cabeça. Os dois chegaram, assim, ao coro.

Lutava-se em frente do altar, nos degraus do qual o padre, espantado, deixara cair o cálice. O vaso sagrado ressaltou até um grande corpo vermelho e dourado estendido sem vida nas lajes de mármore negro, no meio de uma poça de sangue que aumentava cada vez mais: Giuliano de Médícis, o belo, o alegre, o encantador Giuliano estava, sem dúvida, morto, mas, apesar disso, um homem vestido de burel, em cima do seu corpo, continuava a enchê-lo de golpes de punhal. Rocco atirou-se a ele com fúria e golpeou. Tocado na coxa, o assassino ergueu-se e quis saltar sobre o agressor, mas um violento empurrão para a frente da multidão aterrorizada, afastou o assassino e impeliu o cadáver pelos degraus do coro abaixo, para onde Fiora se precipitou. Entretanto, Rocco, subitamente travado por uma mulher aos gritos que se lhe pendurou no pescoço, via, sem poder fazer nada, desaparecer o assassino na barafunda como uma serpente no buraco de uma rocha.

Ao mesmo tempo que Fiora, recusando a evidência, procurava desesperadamente socorrer o jovem que amara, alguém se ajoelhou junto do corpo e ela viu uma longa mão seca tocar no pescoço do cadáver.

Está para lá de qualquer socorro disse Demétrios Lascaris. Os conjurados fizeram um bom trabalho. Eu tinha reparado, nas primeiras filas, numas figuras de que não estava a gostar nada...

Tu? murmurou Fiora, estupefacta. Mas, que fazes tu aqui?

Podia fazer-te a mesma pergunta... Vem! Não podemos ficar aqui.