Que eu caia morto aos teus pés, Senhor, se não digo a verdade. Restavam-me quatro cavalos, quatro cavalos soberbos: animais altos, fortes, sólidos como uma rocha, de olhares vivos e crinas maiores do que os cabelos de uma mulher, mas levaram-mos ontem à noite! Levaram-me os quatro...

E quem é que se atreveu a isso? Não estavam reservados para o serviço do Papa e dos seus?

É evidente, mas eu já tinha visto passar uma tropa grande e não imaginava que aparecesse outra. Além disso, tinham argumentos contra os quais eu não podia fazer grande coisa!

Rocco agarrou no homenzinho pelo colarinho da camisa e começou a abaná-lo:

E quem era essa gente? Dizes, ou não?

Uma tropa de homens que vinha de Pisa. Soldados! Beberam, comeram, pilharam-me o celeiro e a cave e maltrataram-me as criadas e os moços-de-cozinha. Um verdadeiro desastre!

Estou a perder a paciência! disse Rocco. Decides-te a dizer quem eram?

E eu sei? Eram soldados, já vos disse! Iam ter com um grupo que se está a formar perto daqui sob as ordens do condottiereSanseveríno. Viram os meus cavalos e levaram-nos, muito simplesmente. Ah! Pobre de mim!

De sobrolho franzido, Fiora reflectia. A situação agravava-se. Rocco falara de um recrutamento em Urbino sob as ordens do duque Frederico e eis que uma outra condotta se formava sob as ordens de Sanseverino. Um a leste, o outro a sudoeste, parecia-se diabolicamente com uma tenaz a fechar-se sobre Florença. Decididamente, Riario preparara tudo muito bem porque, com os Médícis assassinados, poderia largar aquela matilha esfaimada na cidade e estrangulá-la antes mesmo de ela ter tempo de se mexer. Por outro lado, para além do Papa, havia também Ferrante de Nápoles, enquanto os aliados de Florença, Milão e Veneza, nem sequer imaginavam o que se preparava. Sem falar, claro, no Rei de França, cuja distância apresentava pouco perigo para os conjurados.

A jovem não dissera nada, mas Rocco devia ter seguido o seu raciocínio, porque lhe pousou no braço uma mão que pretendia ser tranquilizadora e ela agradeceu-lhe com o olhar.

Bem disse ele Juntamo-nos aos outros em Florença e esperemos que os nossos animais aguentem até lá. Pelo menos, no teu celeiro pilhado e na tua cave arrasada não ficou nada com que possas alimentar dois honestos soldados?

Mestre Guido, que esperava o pior, pareceu renascer como uma flor deixada demasiado tempo ao sol que um jardineiro rega com uma chuva fina e fresca.

Mas é claro, Vossas Senhorias, mas é claro! Vinde! Eu mesmo vos vou preparar uma boa omelete e arranjar-vos umas provisões que guardava para mim e para a minha família... Nestes tempos terríveis é preciso ser previdente...

Tens a certeza que não puseste de parte um ou dois cavalos? perguntou-lhe Rocco, meio zangado. Entretanto, trata dos nossos! Que lhes banhem as pernas em vinho e que lhes dêem ração dupla! E que nos tragam um pichel enquanto esperamos pela refeição!

Fiora e ele entraram na sala do albergue que, de facto, parecia ter estado sob a acção de um furacão e puseram de pé dois tamboretes para neles se instalarem:

Nada está perdido! murmurou o bandido para Fiora, que, com a cabeça entre as mãos, parecia a ponto de desmaiar. Só nos restam umas vinte léguas para percorrer. Estou certo de que conseguiremos chegar a tempo.

Com cavalos que nos vão deixar a meio do caminho? Teremos de continuar a pé... e eu estou morta de fadiga!

Nesse caso, repousemos! Apenas algumas horas, mas isso permitirá que os nossos animais continuem. Comamos e depois tu irás dormir um pouco num dos quartos. Enquanto isso, eu vou à cidade ver o que posso encontrar...

Nem penses! Se eu descansar, tu também descansas e, se for preciso, ato-me a ti.

A confiança reina, ao que parece? No fundo, não te posso levar a mal. Ainda há pouco não nos conhecíamos. Faremos como queres, mas, primeiro, comamos! Morro de fome!

Já? No entanto, o carneiro não foi há muito tempo?

Talvez, mas vê tu, as contrariedades abrem-me o apetite! Aliás... tens a certeza que não te restaram nenhumas moedas para pagar ao nosso estalajadeiro?

Tu ficaste-me com a bolsa, sim, ou não?

Sim... siim, claro, mas eu tenho uma espécie de sexto sentido que me faz farejar o ouro como um porco fareja a turfa. E não me disseste que o teu nome era Beltrami?

Disse, mas esse nome significa alguma coisa para ti?

A segunda fortuna de Florença? Significa qualquer coisa para qualquer filho da aventura, em Itália.

Significava! O meu pai morreu e...

Eu sei, mas estou convencido de que te resta qualquer coisa, já que uma filha de banqueiro não deve pôr os ovos todos no mesmo cesto.

A despeito da fadiga, Fiora desatou a rir.

É preciso ir a Florença para o sabermos, Rocco. Não tenhas medo: terás a recompensa que te prometi, mesmo que não seja Lourenço de Médícis a dar-ta...

Os dois companheiros abandonaram Siena ao cair do dia, mesmo antes do fecho das portas. As ruas estavam cheias de sombras silenciosas que, vestidas de luto, regressavam do ofício das Trevas. Outras velariam durante toda a noite nas igrejas vestidas de negro e despojadas de qualquer aparato para deplorar a morte de Cristo no Calvário. Os sinos, que se tinham calado durante a Sexta-feira santa, deixavam, pela ausência das suas vozes familiares, a cidade desorientada e entregue à penitência. O próprio céu participara no ambiente sinistro ao deixar cair, depois do meio-dia, uma chuva fina e desesperante. Naquela noite, a imensa catedral branca e negra, estendida como um tigre sobre a cidade, faria cair sobre ela o pesado fardo da morte de um deus...

No momento em que abandonavam a sua casa, mestre Guido fizera aos viajantes uma última recomendação:

Uma palavra ainda, Vossas Senhorias! Se quiserdes chegar a bom porto com os vossos cavalos, evitai San Casciano in Val di Pesa!

Porquê? perguntou Rocco, trocista. Há lá bandidos?

Foi o que disseram uns viajantes que vinham de lá. Parece, até, que há oito dias degolaram dois irmãos pregadores... Portanto, tende cuidado!

Obrigado pelo conselho! Assassinos e maus cristãos merecem que nos acautelemos. Felizmente, estamos mais bem armados do que dois monges errantes...

Todavia, ao mesmo tempo que, seguindo Rocco que voltara a levar a sua extravagante montada pela brida, descia as colinas argilosas onde se situava a cidade, Fiora tinha dificuldade em lutar contra o mau pressentimento que se apoderara dela após ter sabido da impossibilidade de mudar de cavalos. Os contratempos pareciam acumular-se naquela estrada por onde enveredara com tanta esperança e determinação. No entanto, ainda nada estava perdido e, se tudo corresse bem, chegaria a Florença no sábado de manhã, pouco tempo depois do cortejo do jovem núncio. Mas não conseguia afastar a angústia que lhe apertava o coração. A imunda Hieronyma e os seus comparsas iriam ganhar mais uma vez e iriam, depois de Francesco Beltrami, os dois irmãos Médicis ser imolados para apaziguar o seu frenesim de morte e a rapacidade de Riario? Deus não podia dar razão ao Papa a partir do momento em que ele ousava lançar assassinos sobre uma cidade cristã, mesmo que Florença parecesse preferir Platão aos quatro Evangelhos? Era preciso, a qualquer preço, chegar a tempo! Infelizmente, a noite estava bem negra e ela não conhecia a estrada...

CAPÍTULO XII

ASSASSINATO NA CATEDRAL

Rocco também não conhecia e esta reservou-lhes todas as armadilhas possíveis. Só na madrugada de domingo é que os dois viajantes, esgotados e reduzidos a um único cavalo, viram erguer-se num céu cor-de-rosa e, enfim, desprovido de nuvens, as paredes e as torres do convento dos Cartuxos de Galluzzo, às portas de Florença. Uma ribeira que ia cheia barrara-lhes a passagem e foram obrigados a um longo desvio. Além disso, para evitar o perigo assinalado pelo estalajadeiro de Siena, tinham acrescentado maior distância à sua jornada e tinham-se perdido. Enfim, o cavalo de Rocco, ao bater num rochedo, fizera cair o seu cavaleiro e partira uma perna. Fora necessário abatê-lo. Quanto ao de Fiora, pouco habituado a longas jornadas, mostrara sinais de fadiga que o tornaram incapaz de suportar dois cavaleiros. Rocco, galantemente, resignara-se a caminhar deixando a jovem na sela, por mais incómodo que fosse. De tempos a tempos, ela caminhava junto dele sem dizer grande coisa, porque a esperança de salvar os Médicis diminuía à medida que o tempo passava. Finalmente, ela aceitou parar no convento como propunha Rocco. Àquela hora matinal, as portas da cidade ainda não estavam abertas. Por outro lado, teriam, certamente, notícias. Se os Pazzi já tivessem desencadeado o golpe, seria preciso decidir o que fazer, porque, então, entrar na cidade seria uma loucura. Por fim, os dois viajantes tinham grande necessidade de restaurar as forças.

O sorriso do irmão porteiro devolveu a coragem a Fiora. Se Florença tivesse sido, na véspera, teatro de uma catástrofe, o monge não arvoraria, certamente, aquela expressão tranquila. Enquanto os recém-chegados se sentavam na sala de hóspedes em frente de um queijo e de um bocado de pão, ele respondeu de boa vontade às suas perguntas: a cidade estivera em festa na véspera e até altas horas da noite. O irmão encarregue das compras regressara maravilhado com o cortejo do jovem núncio e pelo grande acolhimento que lhe tinham feito as senhorias dos Médicis. Naquele Domingo de Páscoa, o grande acontecimento seria a missa a que monsenhor Riario presidiria no Duomo na presença dos nobres da cidade e de todo o povo que conseguisse entrar na catedral...

Enquanto o monge ia buscar um novo pichel de água fresca, Rocco interrogou Fiora: