Subitamente, os olhos do bandido brilharam com um fogo mais vivo, ao mesmo tempo que a sua voz se enchia de uma espécie de nostalgia:

Pilhámos Piacenza juntos e tu nunca hás-de ver semelhante saque, meu rapaz, nem nada que se pareça! Estripámos os homens, violámos as mulheres todas dos dez aos sessenta, escaqueirámos tudo e, para acabar, deitámos fogo a tudo. A cidade parecia um inferno a arder, enquanto atirávamos com as raparigas para os ribeiros que iam cheios de vinho, de sangue e de tripas. Fazia um calor de rachar, mas bebemos tudo o que nos apeteceu. E depois, no fim, ficámos ricos: prata, belos tecidos, víveres e ouro, foi o que Sforza deu aos seus homens! Também tivemos freiras... e até fradecos, para aqueles que gostam. Ah!... seria preciso ir até bem longe para encontrar um chefe como ele! Os de agora só pensam em vestir-se de seda e evitar os golpes. Têm a pele tenra... Sforza, esse, usava couro, o bom e velho couro esmaltado, como a minha couraça, mas, no entanto, a Rainha de Nápoles não se importou de o ter na cama dela e Milão deu-lhe a mais bela das princesas...

Fiora escutara, sem impaciência e sem se comover, o bandido a desfiar as suas recordações: já vira a guerra bem de perto para lhe conhecer os horrores.

Eu sou tão fiel a Dona Catarina como tu eras ao seu avô e posso assegurar-te que ela é digna dele. Escuta! Fica com a minha bolsa, mas deixa-me partir com o meu cavalo! Juro-te que, uma vez a missão cumprida, trago-to com mais dois, se quiseres...

Por que não vinte? Os que estarão debaixo dos rabos dos soldados que te acompanharão? Tomas-me por imbecil, miúdo? Eu já não acredito na palavra das pessoas e tão certo como eu chamar-me Rocco da Magione, ainda não nasceu aquele que me há-de ficar seja com o que for... Especialmente um maricas que nem sequer barba tem. Uma verdadeira rapariga palavra de honra acrescentou ele passando um dedo pela face de Fiora, que quase lho mordeu, mas a jovem decidiu jogar a sua cartada!

Mas, eu sou uma rapariga disse ela docemente. E Rocco retirou o dedo como se o tivesse queimado. O que é que estás a dizer? É fácil de verificar. Tira-me o gorro! O bandido tirou o gorro de feltro, revelando a rede que mantinha apertados os cabelos da jovem. Esta agitou a cabeça e um rio de seda negra caiu-lhe sobre os ombros sob o olhar estupefacto de Rocco. É verdade! Mas, quem és tu? Eu digo-te, mas, primeiro, responde-me. Já que vigias esta estrada, não viste passar a noite passada uns cavaleiros escoltando uma liteira?

A noite passada, não: esta madrugada. Uma caravana bem esquisita, acredita-me, e vontade não me faltou de pôr os meus homens todos a cavalo, mas eles vinham bem armados demais para os modestos bandidos que nós somos.

É pena! gemeu Fiora. Se os tivesses atacado, terias, sem dúvida, evitado uma grande infelicidade...

Mais devagar! A infelicidade teria sido minha e destes bravos rapazes que se puseram sob a minha bandeira. Mas, regressemos ao princípio: quem és tu?

O meu nome é Fiora Beltrami e sou amiga de Dona Catarina. Para completar o quadro, acrescento que sou, também, a inimiga jurada do rústico marido dela... Oh, chega! Estou aqui a fazer de imbecil, a discutir com um ladrão de estrada enquanto que, se calhar, amanhã, os Médicis vão morrer!

A jovem quis levantar-se, mas Rocco impediu-a e atirou com ela para a palha. Ao mesmo tempo, o homem lançara um verdadeiro rugido:

O que é que tu disseste? Que história é essa de mortes?

Demora um certo tempo a explicar. Basta que saibas que, se estou com pressa, é porque a condessa e eu queremos salvá-los. Os que viste passar ontem são os assassinos!

Seguiu-se um silêncio durante o qual Rocco tirou do cinto uma longa faca muito pouco tranquilizadora, mas o homem limitou-se a cortar a corda que ligava os punhos da prisioneira. Em seguida, reflectindo, deu uns passos de um lado para o outro.

Se eu te ajudar, achas que posso esperar uma boa recompensa? disse ele cofiando a barba.

Pela memória do meu pai, assassinado por aqueles Pazzi que viste passar, juro-te. Mas, por que razão farias algo pelos Médicis?

O Magnífico salvou-me a vida em Volteira. Eu tinha morto uma rapariga que Vitelli reservava para si e ele quis enforcar-me. Lourenço cortou a corda e devolveu-me a liberdade. São coisas que um homem honrado não esquece. Mas, chega de conversa: teremos muito tempo para isso durante a viagem. Eu vou contigo! Será a melhor maneira de vigiar o meu cavalo.

Os dois em cima dele? Será, certamente, a melhor maneira de fazer com que ele morra e então iremos os dois a pé. Já te disse que devemos apressar-nos!

Ele, ao menos, não nos leva durante uma meia légua? Eu sei onde podemos arranjar um se tivermos ouro acrescentou ele acariciando a bolsa que atara à cintura com uns cordões. Mas, agora, vem comer um bocado de carneiro, que ainda se queima... mas penteia-te. Prefiro que continues a ser um rapaz.

Como Rocco dissera, Fiora devorou um pedaço de carneiro que estava assado no ponto, fazendo-o descer com uma taça de vinho carrascão, ao mesmo tempo que o chefe, sempre a comer, arengava aos seus homens mais ou menos uma dezena:

Eu vou acompanhar este rapaz, porque ele me propôs um negócio interessante, mas regresso em breve. Orlando acrescentou ele apontando para uma espécie de gigante cabeludo que devia possuir a força de dois ursos tu vais comandar na minha ausência, que não deve durar mais de uma semana, mas, entretanto, mantende-vos quietos e não chameis as atenções sobre vós. Deixo-vos uma parte do ouro deste rapaz, mas vou trazer-vos roupas decentes.

Porquê? grunhiu Orlando. Vamos deixar de ser bandidos?

Seremos o que sempre fomos: soldados. Quando eu regressar, iremos a Urbino. Dizem que o duque Frederico de Montefeltro, está a recrutar uma condotta para uma nova guerra e há muito que as nossas espadas enferrujam. De acordo?

Todos estavam de acordo menos Fiora, que se inclinou para Rocco:

Tens a certeza que estás a ser lógico? Montefeltro é um dos condottieri ao serviço do Papa e esse exército pode estar a dirigir-se para Florença.

Eu sei, mas digamos que é... o último recurso! Veremos o que acontece. Se os Médícis ganharem, colocar-nos-emos ao serviço deles. Senão... é preciso viver, que queres?

Não havia mais nada a acrescentar. Fiora acabou tranquilamente a sua refeição enquanto Rocco procedia à repartição equitativa das moedas de ouro. Graças à precaução que tivera de distribuir algumas pelas botas e pelos diversos locais da sua roupa, o facto de ter perdido a bolsa não atormentava Fiora, mas reclamou a escarcela que as contivera. Restavam poucas coisas: um lenço e o pequeno frasco que Anna lhe dera. Rocco olhou para ele por um instante.

O que é que há aí dentro?

A possibilidade de escapar a uma morte penosa no caso de ser... apanhada.

Rocco abanou a cabeça, meteu de novo o objecto na bolsa e estendeu-a a Fiora, que começava a bater os pés de impaciência. Tanto tempo perdido! Além disso, sentia-se um pouco inquieta com o efeito que produziria na estrada de Florença na companhia daquele homem andrajoso que dava a entender demasiado aquilo que era...

Mas quando Rocco, que se afastara por um momento, regressou, ela ficou mais tranquila. O homem trocara o seu gibão sujíssimo por um outro de espesso pano cinzento, não muito limpo, sem dúvida, mas mais apresentável. Umas botas, um cinturão de couro castanho e uma capa da mesma cor rematavam a transformação que a longa espada e a adaga, felizmente, completaram.

Tiveste medo que te envergonhasse, hem? disse ele aplicando uma cotovelada em Fiora. E agora, a caminho.

Saíram da gruta e ele montou o cavalo. Fiora montou na garupa e, saudados pelos votos do bando, dirigiram-se para a estrada no passo medido que a dupla carga exigia para não esgotar o animal.

A noite estava negra, fria e era preciso conhecer o caminho, mas Rocco sabia para onde ia e, um momento depois, Fiora viu-se dotada com uma nova montada comprada da maneira mais regular do mundo a um fazendeiro que parecia conhecer bem o bandido e, até, ter relações mais do que cordiais com ele.

Nós roubamos os viajantes explicou Rocco não os vizinhos! Se assim fosse, a vida não seria possível. Este nunca teve queixa de mim, antes pelo contrário.

O companheiro da jovem não forçara a camaradagem ao ponto de lhe devolver o cavalo. Ficara com ele e Fiora teve de dar-se por satisfeita. A sua nova montada era mais um animal de trabalho do que um cavalo de sela. Além disso, dava provas de uma independência de espírito e de uma originalidade que o levava a contornar o menor montículo de terra ou até a recuar se o obstáculo lhe parecia demasiado fatigante de ultrapassar. Rocco, que se divertia desavergonhadamente com o furor crescente de Fiora, acabou por levar o animal pela brida para poder seguir em frente. Fiora consolou-se ao pensar que em Siena o seu companheiro e ela poderiam arranjar cavalos frescos. Mas estava escrito no grande livro do destino que ainda não chegara ao fim das suas penas.

Na piazza del Campo, o albergue da Fontana acolheu os viajantes com a consideração devida a tão nobres visitantes, mas o seu proprietário, mestre Guido Matteotti, ofereceu-lhes uma imagem de desolação quando lhe pediram cavalos frescos.

Onde quereis que eu os vá arranjar, meus Senhores? Não tenho nenhum! Nem sequer um pequenino. Tudo o que vos poderia oferecer é um burro, mas é muito teimoso. E a minha filha gosta muito dele!

Que queres tu que façamos com um burro? barafustou Rocco. Sabes quem somos? O meu jovem senhor, que pertence à nobre casa do conde Riario, é um mensageiro enviado por Sua Santidade e, acredita-me, a sua mensagem é urgente.