Chorai! Gemei o mais alto que puderdes!

Carlo apontou para a porta que alguém tentava abrir muito suavemente. Hieronyma, sem dúvida, porque Pazzi devia estar demasiado embriagado para tomar tantas precauções. Fiora desatou a gemer e a soluçar. Parou e depois recomeçou, suplicando que a deixassem em paz, tudo tão natural que arrancou a Cario uma risada silenciosa. Por instantes, ouviu-se um grito débil, como se a tivessem magoado e em seguida recomeçaram os soluços, as queixas e as súplicas. Cario, pelo seu lado, emitia grunhidos de uma ferocidade convincente. Aquilo durou uns bons minutos para grande alegria dos protagonistas, que se divertiram francamente com aquele jogo. Então, após um último grito, Fiora calou-se, como se Cario a tivesse espancado de modo a fazê-la desmaiar. Este resmungou ainda duas ou três palavras indistintas e depois foi o silêncio... um silêncio que lhe permitiu ouvir, nitidamente, o som de passos prudentes afastando-se e o frufru de um vestido de seda.

Uf! suspirou Cario. Escapámos de boa!

Nós estávamos a falar em voz baixa, mas, mesmo assim, ainda bem que tendes bons ouvidos.

Já me prestaram grandes serviços! E agora, creio que devíeis dormir. Deveis ter necessidade.

E vós?

Eu vou-me instalar nesta poltrona com algumas almofadas.

A dita poltrona era dura como a justiça e só havia duas almofadas e, mesmo essas, muito pequenas. Fiora hesitou um momento e depois propôs:

Por que não vos estendeis na cama ao pé de mim? Nós, agora, somos amigos e vós prometestes...

Essa promessa, podeis acreditar, não me custa nada a cumprir. Vós sois extremamente bela, minha querida Fiora, mas eu só gosto de rapazes!

A surpresa colocou nos olhos de Fiora dois pontos de interrogação que provocaram em Cario, no entanto, um sorriso amargo:

Este gosto nunca chocou ninguém, nem sequer os meus parceiros, a quem o meu tio paga generosamente na condição formal de se mostrarem discretos.

Aquela estranha declaração causou tanta alegria a Fiora que, espontaneamente, abraçou Cario fraternalmente:

Decididamente, sois um marido que me agrada muito, Cario e nunca agradecerei o suficiente aos céus por nos ter unido. Doravante, serei vossa irmã, uma irmã que fará tudo para vos ajudar.

Uma lágrima brilhou nos olhos azuis do rapaz que, por sua vez, pousou um beijo prudente na face da jovem. Depois, com um ”boa-noite”, cada um deles se deitou no seu lado da cama.

Um momento mais tarde, os dois esposos, virando as costas um ao outro, dormiam um sono merecido onde entrava uma boa dose de alívio, tanto num, como noutro.

Terceira parte

PÁSCOA SANGRENTA

CAPÍTULO XI

A ESTRADA DE FLORENÇA

O fim do dia aproximava-se quando Fiora, irreconhecível num fato masculino, transpôs, por fim, aquela porta del Popolo na qual, desde há tantos dias, se cristalizavam os seus desejos e esperanças. Tudo se passara como num sonho, mas com a precisão de um bailado bem ensaiado: a partida matinal de Pazzi e de Hieronyma, que bateram à porta do quarto do jovem casal para um ”até à vista”, mas aos quais o marido respondera com injúrias e a cólera de um homem arrancado demasiado cedo ao seu sono. Depois, a correria de ambos à janela, para se certificarem de que os Pazzi tinham abandonado o palácio do Borgo, após o que Fiora regressou ao seu leito enquanto Cario ia, enfim, abrir a porta do quarto, reclamando com grandes gritos o seu pequeno-almoço e o seu criado. Em seguida, chegara o emissário da condessa Riario, pedindo a primeira visita da nova Dona Fiora del Pazzi, visita que Cario aceitou com um grunhido e clamando que também iria. Após o que, tendo partido em duas mulas com um pequeno séquito quatro criados e Khatoun para o palácio de Santo Apolinário, Fiora, abrigada sob um véu espesso que era suposto esconder os vestígios das sevícias sofridas durante a noite de núpcias e Cario, com cara de poucos amigos, cavalgavam à cabeça sem cessarem de fazer cem loucuras, que fizeram sorrir alguns passantes e um encolher de ombros a outros.

Chegado a casa de Catarina, que, de facto, estava só, Cario pediu de beber e conduziram-no, com uma reverência, aos aposentos de Girolamo, ao mesmo tempo que Fiora e Khatoun eram levadas ao quarto da jovem condessa.

Um quarto sumptuoso, na verdade, todo decorado de brocado azulado e tecidos prateados, atafulhado com uma infinidade de arcas pintadas, de cadeiras e mesas, no meio das quais se destacava um enorme leito forrado com o mesmo tecido prateado e coroado de tufos de penas azuis e brancas. Catarina, mergulhada em rendas preciosas, recebeu os seus visitantes com a devida cerimónia e despediu, depois, as mulheres ao seu serviço, ficando apenas com Rosário, a sua camarista preferida, em quem tinha toda a confiança. Uma hora mais tarde, Khatoun, mais alta devido a uns sapatos de salto alto venezianos, usando o vestido de Fiora e envolta no famoso véu, abandonava o palácio na companhia de Cario, que esvaziara a maior parte das vezes para dentro de ânforas de laranjas um certo número de frascos. Entretanto, escondida na alcova por trás do leito de Catarina, Fiora vestia o fato de burel castanho e a túnica com as armas dos Sforza, uma víbora, e as dos Riario, uma rosa, que tinham sido preparados para ela juntamente com umas botas altas de couro macio, uma ampla capa de cavalo e um alto gorro emplumado, sob o qual os seus cabelos, apertados numa rede, desapareciam por completo. ”

Quando ficou pronta, Catarina entregou-lhe uma bolsa de ouro cujo conteúdo Fiora distribuiu pelas diversas partes do seu fato e uma carta assinada com um simples C.

É para Lourenço precisou ela. Não quero que os Médícis pensem que sou cúmplice dos Pazzi... e do meu marido. Quando estiverdes para lá de Siena, tirai a túnica e enterrai-a, ou escondei-a num arbusto espesso. Tomai cuidado para não vos encontrardes com quem partiu esta manhã. Encontrareis na bolsa um itinerário que vos deve evitar esse mau encontro. E agora, beijai-me e que Deus vos guarde! Enviar-vos-ei Khatoun, que deve regressar esta noite, assim que for possível.

Com uma emoção profunda, Fiora pousara os lábios no belo rosto daquela jovem que, mal-grado um casamento detestado, conseguia permanecer fiel a si própria e ao nome que tencionava usar durante toda a sua vida. Fizera-o sem segundas intenções e sem inquietação: a despeito da idade, Catarina Sforza era capaz de se livrar das piores situações, porque possuía a inteligência

1 O que provaria superabundantemente ao longo dos quarenta e seis anos da sua existência


viva que faltava tanto ao seu marido e, sobretudo, uma enorme coragem. No último instante, ela fez um aviso a Fiora, ao mesmo tempo que Rosário colocava à cintura do falso rapaz uma espada e uma adaga:

Se a desgraça quiser, porque, a partir de amanhã, sereis perseguida, que sejais apanhada, matai-vos sem hesitar, porque não tereis outro meio de evitar uma morte que só virá depois de um sofrimento terrível.

Ficai tranquila: não me esquecerei. Não me apanharão viva. Em seguida, tudo se passou com rapidez. Por corredores secundários, Rosário conduziu Fiora às cavalariças, onde a jovem escolheu e selou ela mesma um cavalo e abriu, depois, uma pequena porta. Com uma alegria imensa, Fiora montou o cavalo que dava pelo nome de Titano, espetou-lhe os calcanhares no ventre e cavalgou na direcção do Corso.

Tendo transposto a porta onde os soldados de guarda saudaram a sua túnica com um gesto familiar, a jovem meteu o cavalo a galope só pelo prazer, durante muito tempo esquecido, de sentir o vento e a chuva, porque aquela semana Santa começara tristonha e com nuvens ameaçadoras açoitar-lhe o rosto. Por fim, era a liberdade! Os campos abriam-se na sua frente, cortados pelo traçado incerto da antiga via Flamínia, a velha estrada romana que ia de Roma à Etrúria e cujas lajes desunidas indicavam o caminho, mas que eram perigosas para as pernas dos cavalos. Por isso, Fiora preferiu utilizar o talude cheio de erva que corria ao longo de antigas sepulturas arruinadas. Após alguns minutos desse percurso infernal, cavalo e amazona passaram o Tibre caudaloso na ponte Milvio, Fiora deu rédea curta à montada para a acalmar e chegou mesmo a parar a fim de se virar para trás por um instante. A despeito do mau tempo, queria dar a si própria o prazer de observar Roma uma última vez, aquela cidade dos Césares, sacralizada pelo sangue dos mártires e que a presença do Sumo Pontífice devia ter feito nobre, pura e generosa. Mas não passava de uma imensa cloaca atafulhada de armadilhas e a fugitiva pensou que nunca agradeceria suficientemente a Deus por lhe ter permitido escapar. Ao mesmo tempo, enviou um último pensamento caloroso, mesmo uma mágoa, porque nunca mais os veria, sem dúvida, a Stefano Infessura, cuja liberdade ela sabia que ele recuperara, a Anna, a judia, que a tratara, a Dona Catarina que se fizera sua amiga contra ventos e marés e, enfim, a Antónia Colonna, a pequena irmã Serafina que deixara a prosseguir, no convento de Santo Sisto, uma espera que duraria, talvez, toda a sua vida. Porque respiravam, sem morrerem por isso, o ar daquela cidade corrompida, talvez esta fosse ainda susceptível de ser salva, mas a que preço?

A chuva lembrou a Fiora que não tinha tempo para filosofias e que, no fim de contas, era a Deus que competia decidir se Roma devia viver ou desaparecer num dilúvio de fogo como Sodoma e Gomorra... Pelas explicações precisas que lhe tinham sido dadas por Catarina por um lado, e por Carlo pelo outro, sabia que não havia razão para ter medo de cair em cima de Francesco e de Hieronyma. Primeiro, porque eles tinham, pelo menos, doze horas de avanço e, depois, porque iam em bom andamento, já que Montesecco dispusera para eles de mudas ao longo da estrada, para que tivessem sempre cavalos frescos. Enfim, porque, depois de Siena, não iriam directamente para Florença, passando antes por Poggibonsi para se juntarem, na direcção de San Miniato, ao novo núncio vindo de Pisa. Entrariam, assim, sem perigo, na cidade do Lis vermelho, misturados com o cortejo verdadeiramente principesco que escoltaria o jovem cardeal Riario.