Por que sacrificar-te? A confessa pensa que serás viúva em breve e ainda bem. A partida dos dois, amanhã de manhã, facilita as coisas. Com Cario morto, metemo-lo neste leito e, amanhã, diremos para o deixarem dormir. Enquanto isso, iremos ao palácio Riario, de onde, disfarçada de rapaz, poderás fugir para Florença.
Por que eu e não nós? Pensava que não me querias deixar?
É verdade, mas não sei montar a cavalo e atrasar-te-ia. Só tu podes prevenir monsenhor Lourenço do que se trama contra ele. Aliás, se conseguires, Francesco Pazzi e a dama Hieronyma terão todas as hipóteses de nunca mais regressar a Roma. Em seguida, irei ter contigo e iremos as duas para junto do bebé Philippe! concluiu ela alegremente, como se acabasse de traçar o plano de uma partida agradável para o campo e não de um assassínio seguido de fuga.
Fiora abanou a cabeça, pouco convencida:
Acreditas, realmente, que seria prudente regressar ao palácio Riario? Que faremos do conde Girolamo?
Ele não vai estar lá.
Já ouvi essa frase antes e tu viste como tudo terminou!
Desta vez, não haverá nenhuma armadilha. Amanhã, ele vai conduzir a filha recém-nascida, com grande cerimónia, ao palácio Latrão para ali receber o baptismo das mãos do Papa. Eu sei a hora... E agora, deixa-me meter-te na cama! O teu marido não tarda aí e eu vou dormir diante da porta. Só tens que me chamar quando a coisa estiver feita.
Vivamente, ela foi meter o punhal sob as almofadas de seda branca franjadas a ouro e depois começou a despir Fiora antes de a ajudar a enfiar uma camisa de fina seda. Era tempo, porque se ouviram passos na galeria. Fiora correu a meter-se debaixo dos lençóis, que puxou para si a tempo de ver a porta abrir-se para dar passagem a Francesco Pazzi, que segurava um archote e rebocava Cario pela mão, como uma criança.
O recém-casado estava embalado num roupão de brocado com grandes flores púrpuras e douradas, que acentuava ainda mais a sua tez amarela. O frufru de seda branca por baixo mostrava que também vestia uma camisa. O rapaz apertava as duas coisas contra o peito, Pazzi conduziu-o até ao leito e ficou ali um instante sem dizer uma palavra, contemplando Fiora com olhos que brilhavam como velas. Também devia ter bebido, porque estava muito vermelho e a força da sua respiração chegava ao fundo do leito. A jovem viu aqueles mesmos olhos virarem-se para Cario, ao mesmo tempo que, com a mão livre, Francesco procurava o punho da adaga presa ao seu cinto. Ela sentiu a vontade de matar que ardia naquele homem devido ao poder do vinho e pensou que ele ia, talvez, evitar-lhe um gesto que lhe fazia horror, mas que a entregaria a ele sem grandes possibilidades de se defender. Matar Pazzi na sua própria casa equivaleria a desencadear sobre ela própria, não apenas a fúria de Hieronyma, mas também a de todos os servidores da casa.
Não durou mais do que um instante. A lâmina não saiu da sua bainha bordada. Com um gesto furioso, Pazzi assentou um murro no dorso do seu sobrinho e depois, girando nos calcanhares, foi buscar Khatoun pelo braço e levou-a para fora do quarto, cuja porta fechou com um barulho terrível. Fiora e o seu novo marido estavam sós, face-a-face...
O rapaz não reagiu, como se Pazzi tivesse socado um saco de farinha. Dobrara-se em dois, simplesmente, endireitando-se depois e ficando ali um momento, sem se mexer, ao ponto de Fiora perguntar a si própria se não teria adormecido. Mas ela compreendeu que ele estava a ouvir afastarem-se os passos ligeiramente hesitantes do seu tio: quando tudo ficou em silêncio, Cario abandonou a sua imobilidade. Em passo vivo, foi até à porta, abriu-a, espreitou, murmurou qualquer coisa que Fiora não entendeu, pegou na chave que ficara do lado de fora, meteu-a no lado de dentro e, por fim, deu-lhe duas voltas, o que inquietou Fiora. Lentamente, ela meteu a mão sob a almofada, na direcção do punhal.
Pronto! disse Cario tranquilamente. Mais ninguém nos virá incomodar.
Apoiado a uma coluna do leito, os olhos bem abertos mostrando as pupilas azuis por onde passava uma chama de contentamento, perdera por completo o ar adormecido e olhava para a jovem, gozando a sua surpresa. Endireitara-se um pouco e, se continuava feio, inspirava muito menos aquela piedade misturada com uma certa repugnância discreta reservada, geralmente, para os atrasados mentais.
Como Fiora continuou sem dizer nada, ele emitiu uma espécie de cacarejo e desatou a rir:
Não façais essa cara, minha querida esposa! O facto de vos revelar o meu segredo deveria tranquilizar-vos quanto às minhas intenções. Posso, se isto não vos chega, afirmar-vos que as crianças nascidas do nosso casamento não nos custarão um tostão a alimentar e que ides poder dormir tranquila nesse grande leito que vos mete tanto medo.
Representais? articulou, por fim, a jovem. Mas, para quê?
Para sobreviver. Há anos que estou habituado a isto e a minha desgraça física foi, para mim, uma ajuda: sou tão feio que acharam muito natural que eu fosse, também, idiota.
Para sobreviver, dizeis? Mas, quem é que vos ameaça?
Os Pazzi em geral, com excepção do meu avô Jacopo, que sempre me defendeu. Devo dizer-vos que, depois dele, sou eu, após a morte dos meus pais, o mais rico da família e foi por isso que o meu tio Francesco me trouxe para Roma com ele quando teve de abandonar Florença. Eu era o seu cofre-forte ambulante, ou uma coisa assim. Obteve a minha tutela, o que lhe permitiu estabelecer em Roma um novo banco porque é um homem hábil, mas tem todo o interesse em que eu permaneça vivo, porque, morto, todos os meus bens lhe seriam retirados pelo meu avô. E ninguém se atreve a desagradar ao patriarca.
Como é possível eu nunca ter ouvido falar de vós quando vivia em Florença?
Porque me escondiam, com mais cuidado ainda do que com o meu horrível primo Pietro. Dois monstros na família é de mais! Eu morava em Trespiano, uma villa herdada pela minha mãe, onde me deixavam tranquilo com a minha ama e o velho padre que me ensinou o que podia. Tenho livros, lá, pássaros, árvores.
Éreis obrigado a desempenhar esse papel horrível... e sem dúvida esgotante?
Era, porque, se tivessem suspeitado de que era mais ou menos inteligente e, portanto, capaz de gerir os meus próprios bens, estaria morto há muito a despeito do patriarca. Houve, em tempos, em Roma, um homem chamado Claudius Ahenobarbus. Ele conseguiu escapar aos assassinatos incessantes, perpetrados na sua família, fazendo-se passar por cretino, e chegou mesmo ao trono imperial... ”,
Alimentais ambições assim tão altas? perguntou Fiora, que não pôde impedir um sorriso.
Oh não! Absolutamente! Tudo o que eu desejo é regressar a Trespiano. Aliás, pode ser que esse desejo se realize proximamente, mas em condições que me assustam. Se o meu tio Francesco e a abominável Hieronyma conseguirem levar a cabo o plano que idealizaram, Girolamo Riario não lhes poderá recusar nada e eu serei, muito provavelmente, assassinado. Vós também, aliás, porque só vos casaram para recuperar a vossa fortuna!
Mas... e o vosso avô?
Morrerá no tumulto que suscitará a tomada do poder por parte de Riario.
Estais ao corrente? Mas, como é possível saberdes isso tudo?
Ninguém desconfia de um pobre de espírito. Até falam abertamente diante dele. Eu sei tudo sobre a conspiração contra os Médicis organizada pelos Pazzi, por Riario e Montesecco, esse mata-mouros grande como uma noite de angústia e quase tão feio como eu. Lourenço e Giuliano morrerão no fim-de-semana no decurso da visita que lhes vai fazer o novo cardeal, Rafaele Riario, que deixou Roma ontem.
Sabeis se eles decidiram uma data?
Não, mas poderá ser no Domingo de Páscoa, durante as festas. O pior é que eles conseguiram reunir a família toda, incluindo o meu avô, que, no entanto, era hostil, ao princípio, ao que ele achava uma loucura. E eu não posso fazer nada. No entanto, gostaria de os salvar.
Salvar quem? Os Médicis? Vós, um Pazzi? Nesse caso, não os odiais?
Giuliano pouco me importa, é uma bela cabeça oca, mas gosto muito de Lourenço. É muito feio...
É por isso que gostais dele?
Por favor, não penseis que sou mesquinho a esse ponto! disse Cario, tristemente. Ele é feio, repito-o, mas que inteligência! E que encanto! Além disso, tentou ajudar-me. Tinha um médico grego do qual se diziam coisas espantosas.
Demétrios Lascaris! murmurou Fiora, perturbada.
Conhecei-lo? Lourenço queria que ele me tratasse, mas a minha querida família opôs-se. Oh sim! Eu gostava de poder impedir este crime, mas sou prisioneiro da minha personagem: não tenho dinheiro nem qualquer meio à minha disposição, não tenho um criado fiel e nem sequer sei montar a cavalo! Só consigo montar uma mula... desde que ela não vá muito depressa!
Mas eu sei!
Saltando da cama, Fiora enfiou um roupão pousado sobre uma cadeira, pegou em Cario pela mão e fê-lo sentar-se junto dela na arca que estava diante do leito. Uma esperança louca fazia-lhe bater o coração com toda a força.
Ajudai-me, amanhã, a sair desta casa. Irei a Florença e farei com que os projectos deles falhem!
Como posso ajudar-vos? Já vo-lo disse: não tenho nada para vos dar. Quando eles partirem, amanhã, levarão os cavalos todos e os mais fortes dos nossos servos.
Alguém me dará o que for necessário. Depois da partida deles, sei que a condessa Riario vai pedir que eu a vá visitar. Conduzi-me a casa dela numa visita de cerimónia... ela fará o resto.
Quereis dizer que... a mulher de Girolamo quer que salvemos os Médicis?
Ela ama Giuliano, mas, claro, terá de tomar grandes precauções...
Bruscamente, Cario pousou uma mão nas de Fiora e levou um dedo à boca. Em seguida, debruçando-se sobre o ouvido da jovem, murmurou:
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