Um duelo! exclamou Estouteville. Lembrai-vos, Mortimer, que estamos numa capela!
Eminência, não sei se isso conta muito aqui. Não ouvi dizer que o duque de Milão foi, no ano passado, assassinado ao sair de uma igreja? Parece que, aparentemente, são esses os costumes neste país!
Chega! uivou o Papa cujo rosto se tornou cor de tijolo. Acabemos com isto. Dona Fiora, daqui a uma hora, este... oficial deixará Roma com a carta que Nós vamos escrever para o Rei de França e com um salvo-conduto assinado pela Nossa mão. Estais pronta a cumprir, nestas condições, a vossa parte do contrato?
Sem responder, Fiora aproximou-se do escocês, ergueu-se na ponta dos pés e pousou-lhe um beijo na face.
Obrigada, amigo Mortimer, obrigada pelo que quisestes fazer. Não vos preocupeis mais comigo, peço-vos.
Pedis-me o impossível.
- Não. Peço-vos que veleis pelo meu filho até que eu possa voltar a vê-lo, coisa que vai ser, doravante, o meu único objectivo.
E ides casar com aquele...
Shhh! Dei a minha palavra e cumpri-la-ei. Que Deus vos guarde!
Não digo nada ao Rei Luís?
Dir-lhe-eis que lhe agradeço do fundo do meu coração tudo o que fez por mim, quando eu acabava de rejeitar a sua protecção por causa da execução do meu marido. Não... não posso impedir-me de ter por ele uma grande amizade...
Sem acrescentar mais nada, ela dirigiu-se para o altar e tomou o seu lugar ao lado de Cario Pazzi, que cessara de cantarolar. O homem virara a cabeça para ela e, por entre as pálpebras que mantinha meio fechadas, ela pensou ver um brilho azul.
Soprando e resmungando, Sisto IV colocou-se em frente de ambos, segurou nas suas mãos e começou a resmonear as palavras sacramentais, das quais ninguém compreendia patavina. Visivelmente, o Papa tinha pressa de terminar e estava a despachar a cerimónia. Fiora não o escutava. Respondeu um ”sim” quase inaudível quando ele lhe perguntou se era da sua vontade, mas quando ele meteu a sua mão na de Cario, ela sentiu nitidamente que os dedos do rapaz apertavam docemente os seus. Ela ergueu o olhar, mas ele já tinha retomado o seu ar ausente e parecia contemplar atentamente um dos anjos gordos e de cabelos encaracolados que tocavam alaúde por trás do altar.
Para dar um ar solene ao acontecimento, Fiora e o seu novo marido foram conduzidos em cortejo e à luz de inúmeros archotes, através do Borgo, até à casa de Francesco Pazzi, onde iam morar enquanto esperavam que o Papa cumprisse a promessa feita à jovem. Não era verdadeiramente um palácio: era mais uma casa grande, que se parecia mais com o cofre de um banqueiro do que com uma habitação, mas o interior era suficientemente luxuoso para contentar o insaciável apetite de glória e de fausto de Hieronyma, que desempenhava dentro dela o papel de dona-de-casa.
No entanto, foi Francesco Pazzi que fez as honras da casa à sua nova sobrinha. Parecia extraordinariamente alegre, de repente, o que era pouco usual numa natureza tão sombria e vingativa como a sua. Afastando Cario, que nem pareceu aperceber-se, ofereceu a mão a Fiora para que ela transpusesse a soleira da sua casa e conduziu-a até uma grande sala onde estava preparada uma rica refeição. Junto dos vinhos mais doces encontrava-se todo o tipo de pastelaria e doçaria susceptível de tentar o apetite de uma jovem.
Hieronyma, que, segundo parecia, não estava ao corrente, olhou para a grande mesa com uma estupefacção que rapidamente se transformou em cólera:
O que é isto? Eu não ordenei nada disto!
Não. Fui eu e tu conceder-me-ás, espero, o direito de dar ordens na minha própria casa!
Mas porquê? Porquê?
Esta noite recebo aquela que é, certamente, a mulher mais bonita de Florença, aquela que será, amanhã, a Rainha... e que é minha sobrinha. Devemos festejar condignamente um acontecimento tão alegre.
Ele próprio encheu uma taça de malvasia e, mergulhando o seu olhar no de Fiora, molhou os lábios no vinho antes de lho oferecer, para mostrar que não tinha que temer qualquer veneno. Em seguida encheu uma para si próprio e ergueu-a:
Bebo à tua beleza, Fiora, e à tua chegada à minha casa que será, doravante, a tua e na qual eu próprio serei teu amigo e... teu protector acrescentou ele com um olhar na direcção de Hieronyma, que franzia o sobrolho perante aquela situação que não previra:
O que é que te deu? Eu pensava que a odiavas?
Eu odiava o pai dela, mas, pode-se odiar uma flor? Esta não passava de uma promessa quando abandonei Florença, onde a beleza de Simonetta brilhava sobre todas as coisas, Ora, eu não pude ter Simonetta.
E pensas ter esta? Ela não acaba de casar contigo! Francesco virou-se para o seu sobrinho que, como se não tivesse nada com isso, petiscava dos pratos enquanto provava, com visível satisfação, vinho de Espanha.
Achas que ele, na verdade, acaba de casar com alguém? Recordando-se do estranho brilho azul e da pressão ligeira de uma mão, Fiora pensou que era tempo de se meter na conversa. Até então, contentara-se em dar o seu justo valor à semidisputa que opunha os seus inimigos. Explorar a cobiça que Pazzi nem sequer se dava ao cuidado de disfarçar talvez fosse uma boa estratégia e depois de ter bebido a taça que ele lhe oferecera, a jovem sorriu-lhe com uma graça que fez brilhar os olhos do homem.
Obrigada por me acolheres assim, meu tio. Sinto-me feliz por constatar que conto, pelo menos, com um amigo nesta casa e estou certa que o futuro nos reserva momentos felizes, mas não devo negligenciar aquele que se tornou, esta noite, meu marido. É com ele, se me permites, que vou partilhar este vinho de Chipre e este bolo de amêndoa.
Evidentemente! Não podemos esquecer-nos da tradição! Ouviste, Cario? Vem aqui para o pé de nós!
O marido obedeceu docilmente, aceitou a parte do bolo que Fiora lhe oferecia e esvaziou a grande taça de casamento em prata cinzelada de onde ela acabava de beber.
Obrigada disse ele com uma voz de rapazinho bem-educado Estava muito bom. Posso ir deitar-me, agora?
É claro que podes, meu pequeno! disse Hieronyma com voz untuosa. Nós vamos conduzir-te a ele com a tua esposa. Olha para ela! Espero que te agrade? Ela não é virgem, claro, mas não te podes mostrar difícil...
Eu vou-me deitar com ela?
Vais e terás prazer com ela tantas vezes quantas quiseres... Ela é tua, sabes, só aia...
Chega! grunhiu Francesco. Ele nunca se aproximou de uma rapariga e eu não vejo a utilidade dessa comédia. Só a bênção nupcial é que é importante.
Sem dúvida, mas Cario merece uma recompensa e não há razão nenhuma para o punir. Tu quere-la, não queres, Carlitto, esta bela rapariga? Vai preparar-te! Eu própria a levo ao vosso quarto e a dispo.
Sim...sim, Carlo quer! disse o rapaz, batendo palmas com um riso idiota que fez empalidecer Fiora. Teria, na verdade de suportar aquele aborto, que passava a língua pela boca espessa como um gato em frente de um bolo de creme?
Recebi a noite passada, como presente da condessa Riario, esta jovem que esteve, em tempos, ao meu serviço disse ela designando Khatoun, que ficara à entrada da sala onde continuava imóvel como uma estátua. Ela sabe muito bem despir-me.
A noite de núpcias pertence às damas da família protestou Hieronyma.
Então, façam isso as duas! suspirou Pazzi, que beijou a mão de Fiora com um olhar que dizia muito. Teria gostado, sem dúvida, de se encarregar ele mesmo daquela tarefa agradável.
Recusando o braço que Hieronyma lhe oferecia com um sorriso mau, Fiora ia abandonar a sala seguida de Khatoun quando Pazzi, agarrando num archote, se lhe juntou:
Eu próprio te escolto para ficar contigo um pouco mais. Amanhã partimos para tratarmos de um assunto importante, Hieronyma e eu, mas ver-nos-emos em breve, quer eu regresse, quer, mais provavelmente, eu te mande buscar com Cario. Até lá, estarás aqui como em tua casa.
Chegado à porta da câmara nupcial, ele desejou-lhe de novo boas-noites com fortes suspiros que a teriam divertido se a sua situação não fosse tão penosa. Quando Hieronyma quis entrar com ela, Fiora repeliu-a.
Não, tu não vais mais longe! Trouxeste-me até onde querias, deve chegar-te. Vai-te embora!
Mas...
Eu disse: Vai-te embora! Não abuses, Hieronyma e, sobretudo, não penses que o meu ódio por ti desapareceu.
Como a mulher, furiosa, quisesse entrar à força, Francesco postou-se diante dela:
Faz o que ela diz! Desçamos juntos, Hieronyma, temos de falar!
Esta teve de ceder. Quando Khatoun fechou a porta do grande quarto iluminado por archotes, Fiora não pôde reter um suspiro de alívio, mas não disse nada. Com efeito, duas servas acabavam, uma de ajeitar o grande leito de colunas guarnecidas de pesadas cortinas de tapeçaria, a outra de colocar num vaso um enorme ramo de peónias e lilases que exalavam um belo perfume. Fiora fez-lhes sinal para saírem e elas assim fizeram após uma reverência.
Mal a porta se fechou, Fiora correu para a janela, que abriu para se debruçar para o exterior. A abertura dava para um pátio estreito, um poço, no qual o luar, reflectido nas lajes do chão, dava ideia da profundidade.
Que estás a ver? inquietou-se Khatoun.
Queria ver se havia uma saída.
Queres fugir? Isso parece-me difícil.
Tudo depende do género de saída que procuramos. Achas que vou partilhar o leito com aquela... aquela coisa? Permitir-lhe que me toque? Eu tive de aceitar este casamento grotesco: mas não me peçam mais nada.
E que queres fazer? Atirar-te da janela abaixo?
Sem hesitar, se ele tentar aproximar-se.
Sem responder, Khatoun levantou a barra do seu vestido e tirou um punhal longo e delgado que trazia fixo à perna pela jarreteira e ofereceu-o à jovem.
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