No entanto, sentiu-se menos abatida quando, lavada, vestida e penteada, se instalou diante da refeição copiosa que Domingo lhe trouxera. Fora sempre assim nos períodos difíceis da sua vida: tinha mais apetite do que em tempos normais. Assim, sabendo a dimensão do adversário que iria defrontar naquela noite, fez as honras ao que lhe era servido.

Contrariamente ao que supunha, não foi para a sala onde fora recebida a primeira vez que o mestre-de-cerimónias Patrizi dirigiu Fiora, antes para a biblioteca. Sisto IV sentara-se lá numa espécie de cadeira de marfim e, com umas lunetas encavalitadas no nariz, lia um grosso livro escrito em grego, pousado junto dele numa grande estante e seguia as linhas com a ajuda de um pequeno ponteiro de ouro. O Papa interrompeu a leitura quando Patrizi introduziu Fiora e a levou ao longo da grande sala até uma almofada disposta aos pés do Papa e na qual a fez ajoelhar como o exigia o protocolo. Mas, de repente, Sisto IV começou a ler em voz alta:

”Tentar lutar contra os males enviados pelos deuses é dar provas de coragem, mas também de loucura; nunca ninguém poderá impedir o que deve, fatalmente, acontecer...”

Em seguida, virando a cabeça para a jovem, perguntou, tão naturalmente como se tivessem estado a conversar na véspera ou algumas horas antes:

Que pensais deste texto, Dona Fiora? É de uma grande beleza, não é verdade?

Se Vossa Santidade o diz, deve ser. Pela minha parte, não gosto muito de Eurípedes e menos ainda do seu Hércules furioso. Prefiro antes Esquilo: ”Ah! triste sorte a dos homens: a sua felicidade parece-se com um esboço; vem a desgraça, três golpes com uma esponja húmida e lá vai o desenho...” Há anos que o desenho da minha vida está meio apagado e eu não pude fazer outro.

A surpresa do Papa não era fingida. Tirando as lunetas, olhou para a jovem com uma espécie de admiração:

Lestes, portanto, os grandes autores helénicos?

E latinos, também, Vossa Santidade. Fazem parte da educação normal das florentinas de alto nascimento. Além disso, o meu pai era um letrado, ao mesmo tempo que um bibliófilo esclarecido. A sua colecção de livros era... quase tão importante como a do palácio dos Médícis.

A sério? E... que lhe aconteceu?

Que acontece às riquezas de um palácio quando ele é entregue à pilhagem e depois ao incêndio?

É uma grande pena, na verdade! Sim... uma grande pena! E nunca soubestes...

Era mais do que Fiora podia suportar com tranquilidade. Não só não fora ali para falar de literatura, como o tom de ingénua desolação do Papa lhe parecia o cúmulo da hipocrisia. A jovem levantou-se como se impelida por uma mola:

Para onde foram? É a Hieronyma Pazzi... perdão, à dama Boscoli que deveis perguntar, a essa que, para pôr as mãos na nossa fortuna, não teve pejo de mandar assassinar o meu pai e que continua a perseguir-me com o seu ódio.

Abstende-vos, minha filha, de julgamentos temerários! enunciou o Papa com severidade. É muito fácil fazer acusações!

Julgamentos temerários? Perguntai seja a quem for, que todos vos dirão o mesmo! E, no entanto, é a essa miserável que me quereis entregar de mãos e pés atados! Depois de ter querido forçar-me a casar com o monstro do filho, quer agora forçar-me a casar com o sobrinho... um outro monstro, se bem compreendi! Eu, que só presto vassalagem ao Rei de França!

Aceitastes esse casamento, ou mentiram-me?

Aceitei, sim, esta noite e sob coacção, para não ver morrer um grande e corajoso amigo meu que, com pena de mim, me veio procurar! E vós dais a mão a infâmias destas! Vós, o sucessor do Apóstolo, o representante de Cristo!

A jovem esperava cólera por cólera, mas Sisto não seguiu esse caminho. O Papa olhou para ela por um instante por cima das lunetas que tinha recolocado no nariz:

Aproximai esse tamborete e sentai-vos! Se vos mandei vir aqui foi para que possamos falar sem testemunhas. Vamos, fazei o que vos digo! Sentai-vos!

Ela obedeceu e viu-se muito perto do Papa, abrigada, como ele, sob as abas da grande estante.

Talvez a minha atitude vos surpreenda prosseguiu ele mas, hoje, sinto-me excepcionalmente feliz porque o Senhor abençoou a união do meu querido sobrinho. Talvez seja isso que faz com que me incline para... uma certa indulgência, porque há muito tempo que excitais a minha cólera. Tivemos muita dificuldade em encontrar-vos de novo... mas esse tempo decorrido permitiu-me reflectir.

Renunciastes a cortar-me a cabeça?

Que disparate! Estaríeis onde estais se fosse o caso? Mas devo dizer-vos o seguinte: o vosso casamento com Cario é importante para a minha política. É bom que Fiora Beltrami passe a ser Fiora Pazzi. É por isso que quero que a coisa se faça, não para dar prazer a Dona Hieronyma... que poderá, aliás, sofrer uma decepção, porque as coisas não se irão passar conforme o seu desejo.

Conforme o seu desejo? Posso dizer adiantadamente a Vossa Santidade o que me vai acontecer a partir do momento em que entrar na sua casa: acontecer-me-á uma desgraça.

Eu sei e foi por isso que falei de decepção, porque ela vai saber que não aceitarei nem doenças, nem acidentes, nem seja o que for, ou será entregue imediatamente ao carrasco.

Talvez, mas eu recuso-me a partilhar o mesmo tecto com ela! Nunca pensei odiar um ser humano como a odeio a ela. Jurei que a mataria!

Não partilhareis o tecto dessa dama senão por uma noite: a das vossas núpcias. No dia seguinte ela partirá para uma... viagem na companhia do seu cunhado e quando regressar já estareis a viver num pequeno palácio perto de Santa Maria in Pórtico, que eu vou dar a Cario como presente de casamento. E posso prometer-vos acrescentou ele com um sorriso fino que a vossa cabeça permanecerá no seu lugar se, por acaso, acontecer alguma... coisa deplorável à dama Boscoli! Nós... nós não temos muita simpatia por ela. É uma mulher barulhenta e vulgar.

Eu sou sensível, Santo Padre, a essa certeza que me quereis dar, mas não é menos verdade que devo casar-me com um monstro. Se ele for parecido com o defunto filho de Hieronyma, os meus dias estão tão contados como os dela.

Um monstro? Não exageremos. Cario é feio e é um pobre de espírito, mas não tem qualquer maldade. Podereis fazer dele o que quiserdes. Estou certo de que acabareis por apreciar a vida que ides ter em Roma. Tornar-vos-eis uma das primeiras damas...

Não vejo bem a que título?

O mais simples e menos contestável: porque eu quero assim. Quando vos tornardes minha vizinha, saber-se-á rapidamente que vos protejo... e confesso que me sentirei feliz, então, por podermos entreter-nos com os grandes autores e os belos textos antigos de que tanto gostamos.

Aquela declaração amável deixou Fiora sem voz. Era uma coisa estranha, na verdade. As grandes personagens deste mundo, que o Destino punha no seu caminho, amigos ou inimigos, pareciam não ter outro objectivo na vida senão instalá-la na sua vizinhança. Luís XI dera-lhe a Casa das Pervincas, o Temerário propusera oferecer-lhe, numa noite de euforia, uma posição nos seus domínios e fazê-la entrar na sua corte acabada a guerra e eis que agora o Papa queria alojá-la na colina vaticana, no palácio de Santa Maria in Portico.

Então? continuou Sisto não dizeis nada? Que pensais dos meus projectos?

Que são muito generosos, Santo Padre... e que terão de me servir. No entanto, recordo-vos que tenho um filho em França e que tenciono educá-lo eu mesma e viver com ele.

. E qual é a dificuldade? Mandai-o vir com a vossa gente e ele gozará, também, da Nossa particular protecção. Aliás, concluído o casamento, enviarei uma embaixada ao Rei de França para o tranquilizar, enfim, acerca do vosso futuro e dar-lhe parte da feliz conclusão dos nossos negócios.

Feliz? O Rei teria libertado frei Inácio e aquele cardeal cujo nome esqueci?

O pontífice desatou a rir com a alegria de um rapazinho que acaba de levar a cabo uma grande partida:

Eu hei-de conseguir recuperar, mais tarde ou mais cedo, o cardeal Balue. Meditar um pouco mais nas vicissitudes deste mundo só lhe será salutar. Quanto ao monge castelhano, disseram-me que morreu e que só podemos rezar pelo repouso da

1 Que será, mais tarde, o palácio de Lucrecia Bórgia.

2 Será libertado em 1481 e irá morrer a Roma.


sua alma. Os dois não passaram, de facto, de um... pretexto para vos fazer vir aqui. Mas, peço-vos, punhamos de lado esta política fastidiosa e...

Gostaria, no entanto, de fazer uma pergunta a Vossa Santidade, se Ela me permite?

Fazei!

Essa espantosa mudança de atitude, essa amabilidade que me é hoje oferecida, quando esperava a fúria da cólera... papal, a que a devo? Unicamente ao nascimento da pequena Bianca?

Não. É evidente que não. Devei-la a duas circunstâncias: a primeira é, naturalmente, o vosso arrependimento e é a principal, mas, por outro lado, Dona Catarina, a nossa sobrinha bem-amada, não cessou de defender a vossa causa e Nós não gostamos de lhe causar dor. Tereis nela a melhor das amigas e ela contribuirá muito para que venhais a amar Roma.

Após as suas palavras consoladoras, o Papa ofereceu aos lábios de Fiora o anel da sua mão e chamou Patrizi para que a reconduzissem ao castelo de Saint-Ange, onde não deveria ficar muito tempo. O dia seguinte, que era Domingo de Ramos, era impróprio, como todos os domingos, para uma cerimónia nupcial. O casamento teria lugar, portanto, na segunda-feira, ao fim da tarde, na capela privada do Papa, que o celebraria ele mesmo.

Aquelas cinquenta horas, Fiora passou-as na companhia de Domingo, encarregado, mais uma vez, da sua guarda. Perante a boa-disposição do pontífice, ela esperara que lhe mandassem Khatoun, mas o nascimento do bebé devia exigir os cuidados de todos no palácio de Santo Apolinário e a jovem condessa não queria, certamente, separar-se dela. No entanto, aqueles últimos momentos de cativeiro escoaram-se com grande rapidez e não apenas porque Domingo se prontificou a distraí-la jogando xadrez com ela e passeando-a pelos terraços do castelo, de onde ela pôde contemplar, à-vontade, a totalidade do panorama de Roma, mas também porque aquelas horas que se escoavam, inexoráveis, eram as últimas antes de uma mudança de existência que a aterrorizava a despeito das garantias dadas pelo Papa. Quer quisesse, quer não, ia passar a ser uma Pazzi e só a ideia de usar esse nome provocava-lhe repulsa. Pensava também em Mortimer, cativo naquele mesmo castelo de Saint-Ange e que, apesar dos seus pedidos, não lhe tinham permitido visitar. Poderia ele regressar livremente a França? Riario prometera, mas que confiança poderia ter na palavra daquele homem? Enfim, uma outra angústia afastou o sono das suas duas últimas noites: a ameaça que pesava sobre os Médicis, Fiora sabia bem o que significava a ”viagem”, no dia seguinte ao do seu casamento, de Francesco e Hieronyma. Iam preparar o seu triunfo, assistir ao último acto do drama que faria da sua família a mais rica e mais poderosa de Florença, sob a autoridade de Riario, sem dúvida, mas que concentraria nas suas garras uma parte dos bens das vítimas e a totalidade dos dos Beltrami, sem que a intransigente lei florentina se lhes pudesse opor. A ideia de que Lourenço e Giuliano iam morrer sem que ela pudesse fazer nada para o impedir era-lhe insuportável.