Os caminhos não são seguros nos tempos que correm suspirou Riario hipocritamente. Acontece que não recebemos ninguém... e que tu tens sorte, amigo, por teres chegado inteiro.

O conde aproximou-se do corpo estendido, sobre o qual se debaiçou:

Tens a certeza de que não foste enviado pelo rei? Apetece-me atormentar-te um pouco mais, apenas para saber se não tens ainda alguma coisa para me dizer!

Já sou suficientemente grande para me enviar a mim mesmo! grunhiu Mortimer, forçando o seu tom de camponês. Lá em casa nós gostamos da nossa patroa e eu quis ver o que vocês tinham feito dela! Mas... nunca pensei que havia de a encontrar numa cave destas!... prisioneira, a bem dizer!

A bem dizer, não. Eu sou mesmo prisioneira, meu bom Gaucher. O Papa pôs a minha cabeça a prémio e não vou sair daqui viva! Fui apanhada esta noite, mas há meses que andam à minha procura!

Chega! rangeu Riario. Eu não vos dei autorização de falardes... sobretudo para dizerdes tolices! O Santo Padre é demasiado bom, meu rapaz, para mandar executar esta bela dama. O que ele quer, como ela é viúva, é dar-lhe um marido, um marido florentino, jovem, nobre...

E odioso! cortou Fiora, indignada. Nunca casarei com ele, estais a ouvir-me? Podeis arrastar-me até diante de um padre, mas ninguém me obrigará a dizer ”sim”. E agora, libertai esse rapaz, contra o qual não tendes nada!

Não tenho nada? Nada!... Pelo contrário, penso, talvez, que ainda nos virá a ser útil! Zamba acrescentou ele para o gigante negro põe mais algumas garras de ferro a aquecer!

Não ides continuar a atormentá-lo? exclamou Fiora. Que há-de ele dizer-vos mais?

Nada, sem dúvida, mas vós, vós podeis dizer muitas coisas! Basta uma pequena palavra: esse ”sim” que vos recusais a dizer com tanta teimosia!

Depois, mudando de tom:

Ou jurais que casareis, ou, à fé de Riario, esfolo este homem vivo diante dos vossos olhos!

Sois louco? exclamou Fiora, estupefacta.

Não creio, mas eu sei o que quero, o que o Santo Padre quer e saberemos forçar-vos porque, uma vez casada com Cario Pazzi, não nos preocuparemos mais convosco.

Não ides aceitar isso? gemeu Mortimer. Não têm o direito de vos forçar...

Temos. Temos o direito do mais forte! Decidi, Dona Fiora, mas depressa! Vede como estes ferros estão de um belo vermelho! Zamba está impaciente por começar. O que ele gosta mais é de arrancar a pele a um homem! Vamos, Zamba, ajuda um pouco a senhora condessa!

Com uma luva de couro, o carrasco pegou num dos ferros que estavam metidos nas chamas de uma braseira. Fiora gritou como se o ferro incandescente tivesse entrado na sua própria pele.

Não!...

Em seguida, mais baixo:

Se eu jurar, libertais-lo?

Imediatamente.

Que garantias tenho? Quem me diz que uma vez na posse da minha palavra não mandais degolar o meu pobre Gaucher?

Mas... a minha palavra!

Perdoai-me, mas a vossa palavra não me inspira grande confiança. Proponho o seguinte: ele assistirá ao casamento e com ele o cardeal d’Estouteville. Depois, será entregue ao cardeal, que o enviará ele mesmo... e em segurança, para França. Senão, juro por Deus, que me está a ouvir, que responderei ”não” enquanto me restarem forças e podereis matar-nos aos dois! E tomai cuidado para não ofenderdes o Rei Luís durante muito mais tempo!

O quê, declara-nos guerra?

Não, mas será preciso, então, desconfiar de todos aqueles que se aproximarem de vós. Ele sabe melhor do que vós servir-se do ouro e é tão rico quanto poderoso. Pode comprar qualquer consciência, qualquer amigo e pagar a dez, cem, mil assassinos. Ele abateu o duque de Borgonha, que era um príncipe a sério. Portanto, honrai a vossa palavra, ou tende cuidado!

Com os olhos arregalados pelo estupor, Riario olhava para aquela mulher que lhe fazia frente, ameaçadora, terrível, vingativa. Ele adivinhou obscuramente que ela era da raça das feras reais e que entre elas e ele próprio, príncipe de pacotilha, haveria sempre um abismo intransponível. Supersticioso, pensou ver brilhar nos olhos dela a chama sombria das profetisas antigas e sentiu um arrepio ao longo da espinha.

Liberta-o! ordenou ele ao albanês que, mudo e aparentemente tão insensível quanto uma estátua, assistira à cena.

Em seguida, virando-se para a jovem:

Aceitais casar?

Nas condições que acabo de impor, sim!

Muito bem. Vamos mandar este homem para a prisão, onde ficará até ao casamento. O que acontecerá em breve. E agora, vinde.

Não ides fazer isso? exclamou Mortimer cujo carrasco lhe friccionava os punhos e os tornozelos com a solicitude de um bom criado de quarto.

Não tenho escolha disse Fiora suavemente. Deixar que vos matassem seria uma coisa estúpida, porque o meu filho terá necessidade de... todos aqueles que me pertencem. Além disso, voltaremos a ver-nos... talvez mais tarde!

A capitulação valeu a Fiora terminar a noite num dos quartos destinados ao séquito do Papa e não numa das masmorras que povoavam as entranhas da fortaleza. As instalações eram espartanas, mas, pelo menos, tinha à sua disposição uma cama verdadeira, utensílios de toilette, água e sabão. Terrivelmente cansada, contentou-se em estender-se por cima da colcha sem mesmo se dar ao trabalho de se despir.

Mas não dormiu muito, já que os últimos acontecimentos da noite lhe tinham tirado o sono de que o seu corpo tanto necessitava. O seu ombro ferido doía-lhe, mas não tinha nada para mudar o penso, já que a ligeira bagagem que Anna lhe dera ficara na liteira de Catarina. Só lhe restava a bolsa de Dona Juana, sempre pendurada do seu cinto. Vasculhando no seu interior para tirar o lenço, os seus dedos voltaram a encontrar o pequeno frasco vestido de chumbo que a judia lá tinha metido. A jovem tirou-o e olhou para ele por um momento. Anna dera-lho para que ele fosse o instrumento da sua vingança contra Hieronyma, para que esta fosse eliminada para sempre. Agora, Fiora pensava que talvez ele pudesse servir para a sua libertação, o último socorro à beira do abismo para onde iria cair e onde se perderia para sempre. Para salvar Mortimer, entregara-se aos seus piores inimigos, mas, por outro lado, o escocês correra grandes riscos para a salvar. Não seria indigno da sua parte deixar-se morrer diante dos seus olhos e daquela maneira abominável? Além disso, sabia agora que, em França, não a tinham esquecido. O Rei dera-se ao cuidado de enviar duas delegações, além de Mortimer. Era encorajante, mas toda a força de que ele dispunha estava demasiado longe e os seus mensageiros deviam ter tido um destino trágico. Luís XI receberia, um dia qualquer, uma missiva hipócrita, anunciando-lhe um ou vários acidentes estúpidos. Um dia qualquer, uma vez ela casada com Cario Pazzi.

Uma única coisa a impediu de desarrolhar o frasco e beber o seu conteúdo de uma só vez: não era um veneno rápido. Anna especificara que a sua ”inimiga morreria no prazo de uma semana sem que ninguém conseguisse saber de que doença”. Com um suspiro, Fiora voltou a colocar o objecto no seu lugar. Haveria de encontrar, mais tarde ou mais cedo, uma faca qualquer ao alcance da mão, ou, melhor ainda, uma muralha alta de onde se precipitar, um rio onde se afogar... Porque, decididamente, não fora feita para ser feliz e já que a maldição que presidira ao seu nascimento continuava a fazer das suas, seria bem melhor para toda a gente e sobretudo para o seu filho, que essa fatalidade desaparecesse com ela.

Coisa extraordinária, uma vez tomada aquela fúnebre decisão, sentiu-se melhor, quase livre. Os batimentos desordenados do seu coração apaziguaram-se, o carrocel infernal que lhe girava no cérebro deteve-se e ela, finalmente, adormeceu.

O som dos sinos, tocando todos ao mesmo tempo, acordou-a. A jovem viu que o Sol já ia alto e compreendeu que estava alguém junto dela quando o seu olhar caiu sobre uns dedos negros que seguravam umas contas de âmbar. O homem olhou para o rosto que, subitamente, se iluminou com um grande sorriso:

Dormiste bem? Domingo sente-se feliz por te ver de novo. Estava preocupado contigo.

Porquê? Por ter conseguido escapar ao teu patrão?

Não, mas até um servidor fiel pode sentir amizade pelo ser que é confiado à sua guarda.

Como é que estás aqui?

Ordens, claro. Domingo tem de te preparar para a audiência que o Santo Padre te vai conceder ao fim do dia.

Não me lembro de ter pedido uma audiência. Mas, diz-me: que quer dizer este carrilhão? Até estou surda...

Não és a única, mas, esta manhã, a nobre condessa Riario deu à luz uma filha a quem vai ser dado o nome de Bianca. O Santo Padre está feliz e, por conseguinte, Roma está em festa. Não percebo porquê acrescentou o núbio abanando gravemente a cabeça envolta num turbante. Uma rapariga! Tanto barulho por uma rapariga! Mas, regressemos à tua pessoa! Não estás com boa cara, sabes?

Não me admira! Fui ferida e ainda estou fraca. Além disso, não tenho nada para tratar o ferimento.

Deixa, que Domingo trata disso! Para já, tiremos esses farrapos negros que te dão um ar de insecto maligno!

Ela deixou-se despir sem protestar. Tinham conhecido ambos, na carraca, uma longa intimidade e Fiora habituara-se a não ver um homem naquele bom servidor que, aliás, já não era. O delgado ferimento inflamara um pouco. Domingo limpou-o com aguardente cuja queimadura marejou de lágrimas os olhos da jovem e depois colocou-lhe um penso limpo. Feito aquilo, deixou-a fazer a sua toillete, anunciando que ia buscar-lhe comida. Antes de sair, estendera sobre uma arca roupa branca bordada, meias de seda, um vestido de veludo verde com um bordado de seda branco como a saia de baixo e umas chinelas a condizer. Uma grande capa do mesmo veludo e uma grande coifa dourada destinada a prender a cabeleira completavam aquela toillete que nenhuma mulher teria vestido com prazer, e Fiora só lhe concedeu um olhar distraído. Teria preferido o fato de camponês, que a teria protegido ao longo do caminho de Florença!