Tinha, portanto, que se resignar: Anna, ao levar-lhe o pequeno-almoço, fizera-lhe mil recomendações acerca dos cuidados de que o seu ferimento ainda necessitava. Num saco colocara-lhe linho, ligaduras, um frasco de aguardente para limpeza e dois boiões de unguento. Em seguida examinara a sua paciente e, sobretudo, o ferimento em vias de boa cicatrização, sobre o qual estava colocado um penso espesso.

Parto esta noite, então? perguntou Fiora.

Partes. Uma hora antes do nascer do dia, levar-te-ei até à porta del Popolo, onde esperarás o momento de a transpor. Encontrei um macho e um fato de camponês. Com um pouco de sorte chegarás a Florença sem grandes dificuldades. O meu pai regressa amanhã e eu terei de estar aqui para o receber.

Mas uma sorte caprichosa decidira que Fiora não encontraria, nessa noite, o caminho interrompido e não veria nascer a aurora junto da porta del Popolo. Os sinos das inumeráveis igrejas e conventos acabavam de tocar para o último ofício e os criados tinham já aceso os potes de fogo nas suas jaulas de ferro à entrada dos palácios quando uma liteira fechada, escoltada por quatro cavaleiros, penetrou na rua e transpôs a abóbada que dava para o pátio.

Espantada, porque não esperava qualquer visita, Anna abriu uma janela estreita que dava para as traseiras da casa e debruçou-se. Em seguida, empunhando um archote, precipitou-se pela escada abaixo.

É Khatoun! exclamou ela. E a condessa Riario vem com ela. Não te mexas! Tenho de saber ao que vêm!

Fiora não teve tempo de fazer a si própria quaisquer perguntas. Num frufru de tafetá castanho-avermelhado, de peles fulvas e rendas cor de neve, Dona Catarina, espalhando uma torrente de palavras, já invadia a escadaria e irrompia na sala onde se encontrava Fiora. A sua gravidez quase no fim fazia-a quase tão larga como alta, mas o seu rosto continuava fresco como uma rosa e não perdera nada da sua combatividade:

Venho buscar-vos! clamou ela um pouco ofegante, antes de se deixar cair nas almofadas de um dos divãs, o que lhe colocou o ventre ao pé do queixo. E, graças a Deus, chego a tempo!

A tempo de quê, Madonna?

De vos impedir de fazer essa loucura de partir de madrugada, sozinha e, certamente, ainda não recomposta, pelo que Anna me diz.

Não tenho outra hipótese. O rabino Nathan regressa amanhã e a minha presença não lhe agradará nada. E não lho posso reprovar. Ele tem de manter a protecção do... Santo Padre!

A jovem condessa sorriu, o que fez brilhar o seu rosto e franzir as sardas:

Dir-se-ia que a palavra custou a sair! Não lhe queirais demasiado mal! Ele teria sido um bom homem, no fundo, se o seu séquito familiar não o levasse a excessos lamentáveis! Mas nós vamos ter muito tempo para conversar. Preparai-vos, ides comigo!

Perdoai-me, Dona Catarina, mas... para onde?

Para minha casa, claro! Não fiqueis com esse ar de espanto! O meu marido partiu a meio do dia para uma propriedade que o tio acaba de lhe oferecer em Segni. Isso dá-nos alguns dias para. primeiro, repousardes um pouco mais. Depois, sou eu que vos vou dar os meios para chegardes a Florença. Não procureis mais, foi Khatoun que me informou. Como eu sei que ela foi criada no palácio Beltrami, porque não me escondeu nada da sua vida passada, não tive dificuldade em adivinhar quem poderia ser essa amiga doente que ela visitava todos os dias.

E quereis ajudar-me a ir para Florença, vós, a condessa Riario?

Não. Por minha fé, Catarina Sforza! Os meus pais e os Médícis mantêm excelentes relações e vós lembrais-vos, talvez, da visita que fizemos a Florença, com grande aparato, há alguns anos?

Nunca mais a esqueci! Vossa Graça era ainda uma menina... O cortejo do duque de Milão foi magnífico.

E... Giuliano de Médicis ainda mais! Confesso que fiquei, naquele momento, apaixonada por ele... e um pouco, também, por Lourenço, tão feio mas tão fascinante! Ora, o acaso fez-me descobrir que o conde Riario... o meu marido, fomenta contra eles uma conjura com aquele macaco vilão que dá pelo nome de Francesco Pazzi e com o vosso amigo Montesecco!

Montesecco? Vi-o ontem, nesta rua. Saía do palácio Cenci e interessou-se muito pelas casas deste lado.

Isso não tem nada de espantoso. É possível que os Cenci estejam, também, nessa conspiração. Em que termos estais vós com os Médicis?

Lourenço salvou-me a vida, ajudou-me a fugir, protegeu-me no exílio e sei que nunca deixou de velar pelos meus interesses. Foi por isso que a ida para a sua cidade me pareceu o único caminho para poder, depois, regressar a França e juntar-me ao meu filho.

Foi por isso que decidi ajudar-vos a fugir de Roma. Tenho de enviar alguém de confiança a Florença, alguém suficientemente afastado de mim para que o meu papel neste assunto nunca seja conhecido, porque, senão, a minha vida não tem preço. Por sorte, vós estais aqui e, entre ambas, talvez consigamos evitar um grande mal.

Tão grande quanto isso?

Julgai! O meu marido e os seus amigos querem assassinar os Médicis... E isso dentro de pouco tempo... Mas, estamos a perder tempo! Apressai-vos, peço-vos!

Fiora ainda não estava decidida. Não gostava da ideia de ficar, mesmo por um dia ou dois, no palácio Riario, onde temia estar a meter-se na boca do lobo. Por outro lado, o que ali se tramava era francamente abominável e contrário aos seus próprios interesses. Se os Médicis fossem abatidos e se os Riario se tornassem senhores de Florença, todas as suas esperanças se desvaneceriam.

Se se sabe que fui para vossa casa disse ela não achais que o vosso marido ligará as duas coisas no caso de fazermos com que os seus projectos falhem?

Já vos disse que ele não está cá! E os criados vieram comigo de Milão: são-me totalmente devotados. Apressai-vos, peço-vos! Se quereis salvar-vos, ao mesmo tempo que preservais a vida dos vossos amigos, não tendes escolha. Dir-vos-ei mais coisas na minha liteira.

Finalmente, Fiora rendeu-se. O fato de camponês que Ana preparara não lhe podia ser de qualquer utilidade e ela decidiu vestir de novo as roupas de Dona juana, que tinham a vantagem de ser de uma grande discrição. A judia completou-as com um véu negro igual ao que Fiora usava por ocasião da sua fuga e que ficara atado à balaustrada do palácio Bórgia. Depois, no momento de lhe entregar a bolsa, aproveitou o momento em que Catarina se interessava por uma estatueta antiga colocada num nicho para mostrar a Fiora, na cova da sua mão, um minúsculo frasco metido num estojo de chumbo e cuidadosamente rolhado, que ela fez deslizar para dentro da bolsa de veludo, ao mesmo tempo que murmurava:

Se a tua inimiga beber isto, no vinho ou noutra bebida qualquer, morrerá no espaço de uma semana sem que ninguém consiga saber de que doença. Que Jeová fique contigo!

Fiora hesitou um momento em aceitar aquilo. O veneno era, aos seus olhos, uma arma indigna, mas não queria desagradar à sua anfitriã. Procurou a medalha de ouro que pertencera a Juana e quis dar-lha, mas Anna recusou:

Não. Tu não me deves nada, porque mereceste a hospitalidade. Dá isso a alguém que precise mais.

As duas mulheres beijaram-se sob o olhar impaciente de Catarina. Khatoun, a quem ela ordenara que ficasse em baixo, acabava de subir, por sua vez, inquieta por ver o tempo a passar e temendo, talvez, que Fiora não se deixasse convencer.

Depressa! Temos de ir. Podes confiar, sabes?

Eu confio. Para Dona Catarina ter vindo aqui em pessoa e em plena noite, quando devia estar no seu leito onde vai dar à luz, é porque o seu interesse por mim é grande.

Confortavelmente guarnecida de colchões de penas e almofadas espessas, protegida por cortinas de veludo castanho forradas de cetim branco e protegida das intempéries por guarda-ventos de couro brasonados, a liteira que esperava Dona Catarina possuía todas as qualidades necessárias para percorrer, agradavelmente, os mais longos trajectos. As três mulheres subiram para ela. A jovem condessa com uma satisfação que dizia muito da sua fadiga. Ela estendeu-se ao comprido na confusão sedosa, ao mesmo tempo que Khatoun tirava de um pequeno cofre um frasco de licor, do qual verteu algumas gotas para duas taças. Estendeu uma a Fiora e deu a beber a outra à sua senhora, cujos traços acabavam de se crispar e que tinha fechado os olhos.

Devíeis ter-me deixado vir sozinha, Madonna! reprovou-a ela docemente. Teria sido mais prudente. De qualquer maneira, a vossa liteira é respeitada até nos locais mais perigosos.

Catarina reabriu os olhos, pegou na taça, bebeu o resto de um trago e endireitou-se um pouco:

Eu tinha de vir. Dona Fiora não te teria, talvez, seguido sem a minha insistência. E temos de falar.

Os vossos guardas não ouvem? murmurou Fiora, que bebera com prazer o excelente vinho de Chipre que lhe tinham oferecido.

A liteira está bem fechada. Além disso, o barulho das rodas e o passo dos cavalos são suficientes. Além de que não vamos gritar. Estamos suficientemente perto uma da outra para que nem o cocheiro oiça. A razão pela qual o meu marido montou esta conspiração...

Eu conheço-a há muito tempo cortou Fiora. Nós sabemos todos, em Florença, que o Papa quer que o vosso marido se torne senhor da cidade.

Sim, mas o problema tornou-se mais grave desde que nós possuímos Imola, o que quer dizer que somos vizinhos. Com os Médícis mortos, Girolamo, o meu marido, deixaria de se preocupar com eles e o seu poder estender-se-ia até ao mar. Quanto a Francesco Pazzi...

Quanto a esse, também estamos ao corrente. Exilado, ele perdeu uma parte da sua fortuna e, apesar de se ter tornado banqueiro do Papa, sempre sonhou em regressar a Florença.

Onde ainda mora a cabeça da família e alguns dos seus membros.