Pode ser que se trate de uma coincidência disse ela por fim. Os irmãos Montesecco, Gian-Battista que tu conheces, e Léone, o capitão da guarda pontifícia, têm excelentes relações com as famílias mais turbulentas da cidade, desde que não sejam aliadas dos Colonna. Os Cenci são desses, mas, em todo o caso, a presença desse homem nos arredores da nossa casa e, sobretudo, o interesse que ele parecia mostrar pela nossa vizinhança, não é nada tranquilizadora.

Tenho que me ir embora daqui disse Fiora. Quando é que o teu pai volta?

Dentro de dois dias, segundo parece, já que não recebi notícias. Mas, como hás-de sair daqui? E não me respondas: a pé. Ainda não estás em condições disso.

Tenho um ducado e também uma corrente de ouro com uma medalha que roubei aos que me mantinham em casa de Bórgia. Só preciso de uma montada, de um fato de rapaz e de umas tantas moedas para chegar a Florença. Lá, assim espero, estarei a salvo...

Isso deve ser possível. Mas, primeiro, vem comigo. Vamos já saber.

Levando Fiora pela mão, ela conduziu-a até à adega que a jovem visitara uns momentos antes. Ali, Anna fê-la sentar-se num banco e depois acendeu na chaminé uma braseira com pinhas que se inflamaram, crepitando. Enquanto esperava que se transformassem em brasas, Anna cortou uma mecha de cabelos à sua pensionista e colocou-a em cima de uma pequena pá de ferro, que levou ao fogo. Os cabelos encarquilharam-se e pouco depois só restavam umas tantas cinzas. Em seguida, inclinou-se sobre a tina na qual se reflectiam as três chamas do candelabro aceso em cima da mesa. Compreendendo que Anna procurava uma resposta para as perguntas que ambas faziam a si próprias, Fiora prendeu a respiração, olhando com curiosidade para as pupilas da jovem a dilatarem-se, ficarem enormes, de tal modo que já não conseguia desviar o olhar. Espiou a expressão daqueles olhos negros e pensou ler neles o terror...

Subitamente, Anna afastou-se da tina abanando a cabeça com irritação:

Não vejo nada! disse ela.

Tens o poder de ver o futuro?

Tenho, mas, no que te diz respeito, não consigo ver nada. Ela pareceu aborrecida, virou-se, levantou-se e caminhou pela sala com uma agitação que assustou Fiora:

Estás certa de não ter visto nada? perguntou ela docemente. Ou preferes não me dizer? Eu pensei ler o medo no teu olhar. Peço-te, seja qual for o meu destino, prefiro estar prevenida! Já passei por muita coisa, não me assusto com facilidade.

Após alguns instantes de silêncio, Anna pôs fim às suas idas e vindas e sentou-se ao pé de Fiora:

Talvez seja por tu estares demasiado perto de mim neste momento que eu não vejo nada senão um lugar escuro como uma prisão, uma multidão em fúria... e sangue!

O meu? perguntou Fiora, empalidecendo contra a sua vontade.

Não creio. Não me perguntes porquê, mas é como que uma voz secreta... só vi... novas provações pelas quais terás de passar.

A judia pegou na mão de Fiora, apertou-a entre as suas e semicerrou os olhos:

Não... Esse sangue não é teu, mas, mesmo assim, tu sofrerás... E há uma estrada para lá disso... Não sei onde vai dar.

Largando a mão da jovem, Anna ofereceu-lhe um sorriso cansado e foi buscar o castiçal para indicar que desejava regressar ao apartamento:

Se calhar, pensas que sou maluca suspirou ela. Mas eu estou aquém da minha reputação. De qualquer maneira, por vezes, tenho visões claras, mas sei que nunca atingirei nunca a clarividência da minha mãe... que morreu por causa disso.

Achar que és maluca? Certamente que não! Eu tinha um amigo em Florença, um médico vindo de Bizâncio, que, por vezes, via o futuro. Ele não sabia de onde lhe vinha esse dom. A tua mãe era assim?

A minha mãe era mais do que isso: uma daquelas grandes profetisas que o povo de Israel conheceu e que, talvez, venha ainda a conhecer. As tribos judias de Nápoles sabiam todas que Rebeca, mulher de Nathan, o rabino rico, estava inspirada pelo Espírito e, desde a minha mais tenra idade, senti por ela essa admiração e esse temor respeitoso que votamos pelos seres que não são deste mundo. Mal ousava chamar ”minha mãe” àquela grande mulher morena, muito bela, cujos olhos tinham sempre o ar de ver através de mim e cujo rosto, sempre grave, ignorava o sorriso. Ela marcou a minha infância de modo terrível, uma infância onde estava sempre presente algo parecido com um terror sagrado.

Ela morreu? murmurou Fiora, impressionada.

Morreu... e as chamas da fogueira para onde o Santo Ofício e a crueldade do Rei Ferrante de Nápoles a fizeram subir limitaram-se a acrescentar-lhe uma auréola flamejante e terrível que ainda hoje me assombra.

Vencida, talvez, por um silêncio há muito contido, Anna, a judia, contou, àquela desconhecida acolhida por caridade, mas na qual adivinhava uma irmã no sofrimento, o que fora a sua vida depois daquele momento terrível em que, rapariga de doze anos carregando as mesmas correntes que prendiam o seu pai, fora obrigada a ficar até ao fim em frente da enorme fogueira onde se consumia o corpo da sua mãe. Guardara desse momento uma recordação de horror que a fazia ainda tremer durante as suas horas de meditação, mas a sua alma ficara temperada para sempre, porque retirara do episódio uma imensa exaltação de orgulho. A mordedura do fogo, com efeito, não arrancara uma queixa a Rebeca, fechada no seu desdém e nas suas visões do Além. E a criança, sob as pálpebras fechadas que o calor fazia doer, rezara para que lhe fosse concedido saber morrer com a mesma coragem se, um dia, tivesse o mesmo destino.

Terminado o suplício, Nathan e a filha, poupados sabe-se lá por que milagre, foram arrastados pelos soldados de Ferrante até uma pequena baía a sul de Nápoles, onde atracavam secretamente os navios mercantes de Tunis. Como a frágil criança e o homem cansado não sucumbiram, é um dos mistérios da vontade humana e do ódio que, encerrado no coração dos mais fracos, pode levá-los mais longe do que os fortes. Vendidos como escravos, Nathan e a filha iriam suportar um novo calvário, mas, curiosamente, ao vendê-los aos tunisinos, os soldados de Ferrante salvaram-lhes a vida.

Perto da antiga Cartago vivia um rico judeu chamado Amos, parente de Rebeca e que beneficiava de um certo crédito junto do governador merínida da região. Chegado ao porto, Nathan

NT Merínidas dinastia de príncipes que expulsaram os Almoadas e reinaram em Marrocos de 1269 a 1550 Usavam o título de emir


pedira para falar com ele. Amos acorrera. Comprara sem dificuldade o pai e a filha e levara-os para a bela casa que possuía junto ao mar. Ali, os dois tinham reencontrado a força e a saúde.

No entanto, Nathan recusou a oferta de Amos, de os conservar junto de si. Queria regressar a Itália para preparar a sua vingança. A sua reputação era ali grande e, em Roma tinha muitos amigos na colónia judia. Além disso, sabia que não tinha nada a temer do Papa desde que não se lhe opusesse. Uma manhã, Anna e ele tinham embarcado em La Marsa, certos de encontrar, no fim do caminho do exílio, não só a protecção, mas também a possibilidade de refazer a fortuna.

Tinham-se passado sete anos desde esse regresso. Anna empregara-os no estudo e no desenvolvimento dos seus dons naturais. Junto dos velhos do gueto e daqueles que sabiam ler os astros, aperfeiçoara as lições de Rebeca e aprendera a arte temível dos filtros e dos venenos. E depois, limitara-se a esperar pelos clientes que, cada vez mais numerosos, tinham contribuído para a sua reputação, um nome que se dizia em voz baixa e que, uma noite, levara até sua casa a sobrinha do Papa.

Já vendeste, alguma vez, venenos? perguntou Fiora com uma ligeira hesitação.

Já. E sem remorsos. Cada vez que entreguei a alguém um licor, ou um pó mortal, senti alegria no coração, porque os padres são numerosos nesta cidade de papas e o meu veneno era, talvez, destinado a um deles. Odeio-os, odeio-os a todos, porque fazem parte daqueles que ajudaram Feirante a levar a minha mãe para a fogueira.

E não tens medo que um dia...

Que acendam uma para mim no Campo del Fiori? Não. Se conseguir matar Ferrante de Nápoles, irei para ela com alegria.

Compreendo bem o que sentes, porque também eu busquei a vingança, mas Deus chegou antes de mim...

E ficaste satisfeita?

Sim e não. Sim, porque a mão do Senhor caiu com mais força do que aquela que eu teria. Não, porque o desejo de vingança ainda está em mim. Enquanto a assassina do meu pai viver, não conhecerei a paz. Aliás, ela ainda me ameaça.

Ela está aqui, em Roma e tu queres ir para Florença?

Para chegar a ela teria que me entregar. Tenho de partir e tu sabe-lo bem, mas não renunciarei.

Eu ajudo-te, se quiseres!

A noite caía. Anna foi correr os cortinados e depois acendeu as velas.

Eu espero alguém, esta noite. Não te inquietes se ouvires barulho e, sobretudo, não te mexas.

E Khatoun?

Se ela vier, mando-a ter contigo.

No entanto, a noite passou sem que a jovem tártara aparecesse e a ansiedade fez companhia a Fiora até ao nascer do dia. Nas horas seguintes, Anna arranjar-lhe-ia, sem dúvida, os meios de fuga, mas o pensamento de se afastar de novo sem ter, ao menos, visto de novo Khatoun, era-lhe insuportável. Quando partira para França com Demétrios, Esteban e Léonarde, resignara-se com a separação porque acreditava que a sua pequena companheira de infância era feliz e ia a caminho do destino que escolhera. Mas deixá-la naquela situação de semiescravidão, de servidão privilegiada, talvez, mas de servidão, era-lhe intolerável. Evidentemente, Khatoun podia juntar-se a ela em Florença e fá-lo-ia, sem dúvida, se fosse livre, mas Dona Catarina não a deixaria, certamente, partir. Primeiro, porque o seu marido devia ter pago bom dinheiro por ela e depois porque, parecida naquilo com todas as grandes damas italianas, devia gostar muito daquela pequena personagem exótica. As tártaras eram raras e, por isso mesmo, mais preciosas.