Não ter que gerir uma casa não desgostara absolutamente nada a jovem signora Dolfi. Ela ignorava quase tudo acerca da profissão de dona-de-casa, porque, no palácio Beltrami, lugar onde nascera na realidade, tinha um papel puramente decorativo na generalidade e em particular o de ser companheira de Fiora. Sentia-se feliz por se consagrar unicamente ao seu querido Sebastiano e se, por vezes, os dias de solidão lhe pareciam longos e um pouco amargos, as noites compensavam-na amplamente pelo ardor que os jovens esposos punham no amor.
E então, no decurso de uma dessas noites, Sebastiano tivera que sair. Um doméstico do cardeal Cipriani, que sempre protegera a sua família, fora buscá-lo de urgência e Khatoun esperara em vão o seu regresso no leito de lençóis amarrotados, cuja almofada conservava ainda a forma da sua cabeça. Encontraram o cadáver no Tibre no dia seguinte e, nessa mesma noite, a pobre Khatoun, cuja tia nunca admitira a realidade do casamento, fora conduzida à força a casa de um traficante de escravos do Transtevere. O homem fechara-a o tempo necessário para que acalmassem, se os houvesse, os rumores causados pela morte do médico e a eventual curiosidade da polícia; muito eventual, aliás, porque aquele género de descoberta era demasiado frequente para que os homens do Soldan procurassem saber a verdade. Então, o mercador propôs aquela peça rara a lenda da princesa exilada era boa ao conde Girolamo Riario, que a ofereceu à sua jovem mulher, não sem a ter feito passar, primeiro, pelo seu leito.
Aquela última noite fora a última da lista de infelicidades de Khatoun. A jovem condessa Catarina era orgulhosa e um pouco arrogante, mas era boa e generosa. A sua nova escrava agradou-lhe ao ponto de fazer dela a sua nova favorita e até sua confidente. Junto dela, Khatoun reencontrou quase o papel que fora o seu em casa de Fiora durante tantos anos.
Mas não é como tu suspirou ela como conclusão do seu relato. Há uma violência nela que não ousa mostrar, porque está longe de ser feliz com o conde, que é bruto, um homem comum, cujo tio se tornou Papa e que, por isso mesmo, esmaga tudo à sua volta. A única coisa que ama é o ouro.
Mas a sua mulher é bela! Ele não a ama?
Ele tem orgulho nela porque é princesa, mas não se trata de amor. Imagina que ela tinha onze anos quando casou com ele e, por isso, ele exigiu que a noite de núpcias tivesse lugar nessa mesma noite. Creio que ela nunca lhe perdoará.
Mas ela está grávida, se bem me lembro?
Está. Vai dar à luz um dia destes. Apesar de odiar o marido, é obrigada a suportá-lo. Oh, tem grandes compensações: é a Rainha de Roma. Tudo o que conta na cidade está a seus pés. E depois, tem os livros, o saber. No palácio, há uma sala para onde ela gosta de se retirar para compor filtros, poções e unguentos para a beleza.
Ela faz alquimia?
Não sei se essa prática se chama assim, mas a condessa vem aqui muitas vezes. É ela que protege Anna, a judia é assim que a chamam porque aprende muitas coisas em casa dela. Além disso, Anna compõe-lhe leites, cremes e emplastros que embelezam ou ajudam a conservar a beleza. Dona Catarina escreve tudo num livro que guarda ciosamente.
Decididamente, é uma mulher surpreendente disse Fiora mas ela não se espanta com as tuas ausências? Há dois dias que vens aqui. Ela deu-te autorização?
Eu disse-te que ela é boa. Quase lhe confessei a verdade: que tinha encontrado a minha amiga de antigamente, que ela estava doente e que precisava de mim.
É verdade, Khatoun. Eu preciso de ti. Infelizmente, teremos de nos separar em breve. Assim que tiver recobrado as forças
1 As receitas de beleza recolhidas. por Catarina Sforza, condessa Riano, são um facto histórico assim como as suas relações com Anna, a judia que estava ao mesmo nível da sala de entrada, para ali ir buscar água e depois aventurou-se na adega que servia de laboratório à sua anfitriã e folheou alguns livros, mas a maior parte estava escrita em caracteres hebraicos e ela não compreendia nada. Apenas um tratado de Hipocrates, em grego, poderia ter retido a sua atenção, mas não sentia qualquer afinidade pela medicina e regressou ao seu quarto, não sabendo em que ocupar o tempo.
pedirei a Stefano Infessura que me ajude a sair de Roma. Quero ir para Florença, para estar ao abrigo das garras do Papa e de Hieronyma e depois regressar a França!
E eu vou contigo. Não te quero deixar mais... e depois, tenho vontade de ver outra vez Dona Léonarde e de conhecer o bebé Philippe.
Achas que Dona Catarina te permite uma coisa dessas?
Que permita ou não, não tem importância. Pela lei dos escravos, eu pertenço-te porque nunca me vendeste, nem expulsaste... nem libertaste.
Sim. Há muito que foste liberta, Khatoun. Desde o dia em que, para me tentares libertar, te atiraste para as patas da Virago. Sabe-lo bem.
Sei, mas não quero que isso se saiba.
A entrada de Anna interrompeu a conversação. A bela judia vinha renovar, como fazia duas vezes por dia, o penso da doente, coisa que lhe dava, aliás, grande satisfação. Fiora escapara, graças aos seus cuidados, à febre que teria retardado uma cura que avançava a grandes passos. Anna tinha, portanto, todas as razões para se alegrar e, no entanto, nessa noite, tinha ciúmes.
O Infessura não apareceu ontem, nem hoje disse ela quando prometeu que viria todos os dias...
. Não é antes a noite que é preciso esperar? perguntou Fiora. Não o vimos a última noite, sem dúvida. Deve ter sido impedido. Há-de vir esta...
No entanto, a noite passou sem que o escriba republicano batesse à porta. Nem o viram no dia seguinte e a quarta manhã nasceu sem que ele aparecesse.
É preciso saber o que se passa declarou Anna. Vou fechar esta casa cuidadosamente e vou a casa dele. Não abras a ninguém, nem sequer a Khatoun! acrescentou ela para Fiora.
Tirando rapidamente a sua tiara dourada e os seus vestidos tradicionais, Anna vestiu roupa de criada, calçou umas socas, enfiou um cabaz no braço como se fosse ao mercado e abandonou a casa pelo pátio das traseiras que a abóbada redonda fazia com que comunicasse com a rua.
Só, Fiora, que desde a véspera se sentia suficientemente bem para se levantar, errou pela casa. Tinha sede e desceu à cozinha, Maquinalmente, aproximou-se da janela diante da qual, naquela mesma manhã, Anna estendera algumas peças de roupa. Era possível observar o que se passava na rua. Por prudência, Fiora permaneceu ao abrigo dos cortinados. O espectáculo não tinha nada de muito interessante: alguns passantes pobremente vestidos, quase todos com a rodela amarela, crianças jogando ao pião em cima de uma antiga laje romana e, como pano de fundo, a fachada rebarbativa do palácio Cenci, que parecia fechado sobre si mesmo e cuja massa dominava desdenhosamente o bairro.
Subitamente, a atenção de Fiora fixou-se: um homem acabava de sair daquele palácio mudo, virando a cabeça para todos os lados como se procurasse saber de onde vinha o vento e depois, sem mesmo se dar ao trabalho de se içar para a sela, pôs-se em marcha lentamente, lentamente, observando as fachadas das primeiras casas do gueto. Aquele homem era GiovanniBattista de Montesecco. Era o homem que a raptara em França e a trouxera cativa para Roma.
O coração da jovem falhou um batimento. Que procurava ele naquele bairro miserável? Visitara, sem dúvida, um habitante qualquer do palácio Cenci, mas o local não era um lugar de passeio agradável e ele devia ter-se afastado rapidamente. No entanto, ia devagar, parava para ver qualquer coisa, voltava atrás e voltava a partir. Por trás dos cortinados, Fiora murmurou uma oração para que Anna não regressasse naquele instante. Mesmo disfarçada, atrairia certamente, nem que fosse pela sua beleza, a atenção daquele homem que era na realidade, sob o vocábulo de condottiere, um chefe de espadachins.
Felizmente, quando Anna reapareceu com o cabaz cheio, Montesecco já tinha desaparecido há alguns minutos na direcção oposta. Fiora desceu ao seu encontro, o que a surpreendeu:
Levantaste-te? Não será ainda um pouco cedo?
Por que não? Não tenho febre e as minhas pernas parecem-me sólidas. Enfim, não gosto de ficar deitada quando o posso evitar. Tens novidades?
Tenho, e não são boas. O Infessura foi preso antes de ontem.
Fiora sentiu-se empalidecer:
Meu Deus! E... sabe-se porquê?
Não, mas a opinião geral é que o Papa o mandou prender pelo Soldan por causa dos seus escritos, que percorrem as ruas da cidade. É o que ele chama as notícias da noite. Encontram-se muitas vezes no mercado do Campo del Fiori ou ainda perto de uma velha estátua, resto de um grupo antigo, que as pessoas do bairro chamam Pasquino. Stefano gosta de colocar lá os seus panfletos. Parece que o último falava do senhor Santa Croce, que teria tentado violar uma mulher nas minas do mausoléu de Augusto...
Doce Jesus! Mas, essa mulher sou eu! Que loucura, gritar essa história aos quatro ventos! Stefano salvou-me e foi lá que recebi o golpe de estilete.
Uma loucura, sem dúvida... a menos que ele tenha pensado que ninguém ousaria atacá-lo? O povo gosta dele e o que ele procura, no fundo, é sublevar esse mesmo povo para que Roma possa tornar-se uma república à maneira dos tempos antigos. Não se ensaia nada de dizer que não se faz nada de bom nesta cidade, que o número de roubos, de homicídios e de sacrilégios não cessa de aumentar. E que tem esperança na força de uma multidão indignada e furiosa.
Não sei se ele tem razão. Em todo o caso, já não é um ”homem livre” e eu sou um pouco culpada. Além disso, tenho que te falar no que vi há momentos.
Anna escutou, sem dizer uma palavra, o curto relato de Fiora e não se mostrou muito emocionada:
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