Tenho de conseguir... mas, que vais fazer de mim? Eu... eu não me sinto muito bem...
Com o corpete no seu devido lugar, ela tentou erguer-se, mas sentiu que a cabeça lhe andava à roda. Infessura praguejou entredentes:
Tenho que te levar para um sítio qualquer!
Tirando do seu gibão um frasco envolto em prata, o ”escriba republicano” destapou-o, apoiou o gargalo nos lábios de Fiora e fez-lhe escorrer para a boca algumas gotas de um líquido tão forte que ela teve a impressão de engolir fogo líquido. O calor invadiu-lhe o corpo todo e pareceu-lhe que recobrava as forças.
Obrigada suspirou ela. Já estou melhor e se quiseres ajudar-me a levantar, creio que poderei caminhar. Não até Florença, claro. Oh, meu Deus! Sentia-me tão feliz com a ideia de regressar, de reencontrar em breve...
Deixa as ternuras para depois! Por agora, temos de te tratar! O mais normal seria levar-te para minha casa, mas é muito longe. Eu moro perto de Santa Maria Magiore, em Esquilino. Nunca conseguirás caminhar até lá.
Que fazer, então? Não há aqui perto um hospital, um convento?
Isso seria entregar-te. Não, já sei o que vamos fazer. Vou-te conduzir a casa de uma amiga. Ela saberá tratar-te e ninguém irá à tua procura no gueto de Roma.
Gueto?
Fiora sentiu retesar-se o braço que a segurava, enquanto a voz do seu companheiro voltava a ser seca e cortante:
Tu és dos que desprezam os Judeus?
Que ideia! Sofri desprezo suficiente dos outros para ter desses desdéns, simplesmente, tu sabes quem eu sou, não sabes?
Fizeram suficiente barulho acerca de ti.
Nesse caso, sabes que sou procurada pela polícia do Papa e eu não quero pôr ninguém em perigo por minha causa. Bórgia tinha os meios para se defender se me encontrassem em casa dele, mas uma mulher judia...
Anna também tem protecção. Além disso, durante as semanas que passaste em casa do vice-chanceler, as buscas acalmaram um pouco. O Papa anda cheio de raiva. Depois de ter mandado vasculhar por quatro vezes o palácio d’Estouteville, acabou por meter na cabeça que tu deves ter deixado Roma. Pelo menos, faz de conta. Vem, são horas de nos metermos a caminho.
É longe, esse gueto?
É quase tão longe como a minha casa, mas nós temos meios de te simplificar a viagem.
Firmemente suportada por Stefano, Fiora caminhou suavemente até ao Tibre, que corria do lado de lá do mausoléu. Zeus segurara na lanterna com a boca e iluminava o caminho, permitindo-lhes evitar os arbustos e os montes de pedras. Hera, de nariz ao vento, fechava a marcha. Chegados à margem na qual estavam duas ou três barcas, Infessura empurrou uma para a água e instalou Fiora nela, aos pés da qual se deitaram os cães.
Este barco murmurou Fiora, inquieta sabes a quem pertence?
Sei. Fica tranquila! O Infessura nunca enganará um dos seus irmãos humanos. Trá-lo-ei de volta assim que estiveres em segurança. Aliás, Pietro feriu-se há dois dias e não se pode servir dele.
Vasculhando na bolsa de Juana, Fiora tirou uma das três moedas que lhe restavam e estendeu-a ao seu guia:
Nesse caso, dá-lhe isto. Se não pode trabalhar, ficará contente por receber este ouro.
Na noite que os rodeava tinham tapado a lanterna Fiora viu brilhar os dentes do seu guia e ouviu-o rir docemente:
Eu sabia disse ele que valia a pena ajudar-te. Doravante sou teu amigo.
A barca deslizava pela água negra do rio. Stefano esforçava-se por mantê-la na escuridão, mas sem grandes esforços, porque a corrente ajudava-o. Percorreram assim a grande curva, na parte mais profunda da qual estava o Vaticano, as suas torres, os seus guardas e os seus espiões, mas o pequeno esquife, conduzido por mão de mestre, não fazia qualquer barulho para além, de tempos a tempos, de um chapinhar ligeiro que podia ser o de uma ave qualquer à pesca.
A viagem pareceu interminável a Fiora. O frio da noite gelava-a até aos ossos e o seu ferimento, sobre o qual ela não cessava de pressionar a mão, provocava-lhe dores no pescoço. No entanto, não se sentia abatida e chegou a divertir-se, por um momento, com o pensamento de que, chegada constipada ao palácio Bórgia, tinha agora todas as hipóteses de apanhar outra, agora que tinha saído de lá.
Infessura parou a barca em frente da ilha Tiberina e ajudou a sua passageira a desembarcar:
Estás cansada, não estás? perguntou ele, reparando que ela estava mais pesada mas fica tranquila, estamos quase a chegar. Lá está o palácio Cenci acrescentou ele designando a massa negra de uma construção feroz, com ares de fortaleza graças às pedras ciclópicas que formavam, no rés-do-chão, uma muralha cega com excepção de uma porta estreita e alta poderosamente chapeada a ferro. A casa do rabino Nathan fica em frente, perto da sinagoga. Anna é filha dele.
A ruela pela qual caminhavam prudentemente por causa das imundícies, cheirava a azeite rançoso e a podridão. As casas não passavam de construções informes, feitas de pequenos tijolos e barro e dominadas pelo nobre palácio. Por fim, no extremo de uma pequena praça, Infessura parou diante de uma morada maior e mais bem construída do que as outras. Era feita de boa pedra, que segurava o primeiro andar em sacada por cima de uma abóbada redonda que dava, sem dúvida, para um pátio nas traseiras e que tinha uma porta, no topo da qual se encontrava a mezuza. Aquele pequeno nicho, fechado por uma grade de bronze, deixava ver, ao abrir, uma fórmula bíblica escrita em caracteres hebraicos num pedaço de pergaminho amarelecido. Indicava a todos que aquela casa pertencia a um homem importante da comunidade judia.
O punho de Stefano bateu a essa porta segundo um código convencionado e ela abriu-se pouco depois pela mão de uma jovem usando um vestido de seda amarela com mangas flutuantes e cujos cabelos, negros como tinta, estavam entrançados em várias tranças sob uma espécie de tiara trabalhada, de onde caía um véu cor de açafrão, A jovem segurava uma vela.
Sou eu, Anna disse o Infessura. Trago-te uma amiga. Ela tem frio e foi ferida pelo bando de Santa Croce quando fugia do palácio Bórgia.
A mão que segurava na vela ergueu-se de maneira a melhor iluminar o rosto da recém-chegada.
Ah!... Entrai, claro, mas peço-vos que espereis um instante, porque tenho uma visita. Sentai-vos ali!
A jovem recuou para dar passagem. A porta dava para uma pequena sala pavimentada como uma rua e pobremente mobilada: uma mesa, três escabelos, uma arca e alguns bancos ao longo da parede. Foi um desses bancos, o mais afastado da entrada, que a judia designou. Ao fundo da divisão, uma cortina de grandes ramagens tapava alguns degraus que desciam para a sala seguinte. Subitamente, aquela cortina ergueu-se sob a mão de uma mulher pequena, magra e elegantemente vestida de veludo castanho e seda branca.
Que fazes aqui? disse Anna num tom descontente. Tinha-te dito para esperares. És muito curiosa!
Mas a mulher não a ouviu. Com os braços estendidos, precipitou-se para os recém-chegados com um grito de alegria.
Minha senhora! Minha querida senhora!
Fiora, que se tinha de pé por milagre e pela força do seu companheiro, ergueu os olhos e acreditou-se vítima de uma miragem. Tinha de ser, senão, como imaginar que Khatoun a ia abraçar? As suas pernas flectiram...
Desmaiou outra vez constatou Stefano. Tens de tratar dela imediatamente, Anna!
1 Ver Fiora e Lourenço, o Magnífico
CAPÍTULO IX
TRÊS MULHERES
Era mesmo Khatoun. Fiora ficou convencida quando, ao cabo de alguns instantes, emergiu do seu mal-estar devido à fadiga e ao sangue perdido. O Infessura devia ter-lhe administrado uma nova dose do seu remédio miraculoso, acrescida, talvez, de algumas bofetadas, porque sentia as faces quentes e o gosto picante e perfumado de há pouco regressara-lhe à boca. O seu espírito recuperou toda a sua lucidez sob a influência da alegria ao ver a jovem tártara, o seu rosto triangular e os seus olhos de gato inclinados sobre ela.
Mas, que fazes tu aqui? Pensei que nunca mais te veria...
Nem eu, minha senhora. Foi uma grande felicidade para Khatoun, mesmo se ela te encontra num triste estado.
Já não sou a tua senhora há muito tempo.
Sê-lo-ás sempre para mim, mesmo que eu tenha de obedecer a outra pessoa qualquer. Como posso esquecer os dias felizes de outros tempos?
Abraçais-vos mais tarde disse uma voz severa. Gostaria de prosseguir o exame.
Fiora viu, então, que a tinham deitado em cima de uma mesa, a cabeça numa almofada e que Anna afastava suavemente Khatoun. A judia tirara o tampão de tecido aplicado por Stefano e segurava-o numa mão. Este estava vermelho de sangue, prova de que o ferimento tinha sangrado muito. Anna atirou-o fora, virou-se para pegar em algo atrás de si e arregaçou as mangas do seu vestido, deixando ver uns braços magros e dourados. Numa mão tinha uma espécie de agulha de ouro de ponta arredondada, que erguia no ar.
Segurai-lhe os braços ordenou ela. Tenho de sondar o ferimento e ela não se pode mexer.
Eu não me mexo afirmou a doente, o que provocou um breve sorriso nos lábios carnudos da judia.
É uma promessa que quase nunca ninguém cumpre. Prefiro que te imobilizem. Vai doer-te um pouco, mas, se te mexeres, pode ser pior.
As mãos de Khatoun e de Stefano caíram ao mesmo tempo sobre os braços de Fiora, que viu inclinar-se sobre ela, atento, o estreito rosto moreno da sua estranha médica. A despeito de uma boca um pouco grossa, Anna era bela graças aos mais belos olhos azuis que Fiora jamais vira. A curva aquilina do seu nariz era orgulhosa, como, aliás, todos os traços do seu rosto, e dela emanava um odor a manjerona, inesperado naquela cave. Porque a divisão para onde tinham levado Fiora tinha o ar de ser uma. Uma abóbada de pedras enegrecidas, que devia datar dos Césares, arredondava-se por cima da mesa, mas, virando um pouco a cabeça, Fiora pôde ver que desaparecia por trás de uma série de pranchas espessas de madeira, sobre as quais se amontoavam bilhas, frascos, caixas, sacos com ervas e estranhos vasos de vidro, ou ainda grossos livros de encadernações velhas: um conjunto que lhe lembrou o gabinete de Demétrios em Fiesole e a fez esquecer que, com efeito, a exploração do seu ferimento não tinha nada de agradável.
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