As suas mãos, que pareciam tão fortes como duas tenazes, tinham agarrado na jovem e não pareciam dispostas a largá-la. O homem procurava arrastá-la para o portal e ela resistia o melhor que podia quando, subitamente, do mais profundo da sua memória surgiu uma recordação: a de um homem velho que, uma noite, lhe oferecera a hospitalidade do seu tugúrio num palácio florentino em construção. O homem dissera que, através de uma simples palavra, se reconheciam todos aqueles que pertenciam à confraria dos mendigos e essa palavra veio-lhe, com toda a naturalidade, à boca:
1 Antiga medida francesa que media 1,949 m.
Mendici! murmurou ela.
Magia. O homem largou-a imediatamente, ao mesmo tempo que o seu olhar, de furioso, passou a curioso:
Também és, tu? Cust’acreditar. Devia conhecer-te, não?
Não. Sou de Florença e fui trazida para aqui à força. Vou voltar para casa...
À força? É verdade qu’és uma bela rapariga e qu’as raparigas bonitas desfilam, aqui. Sabes o caminho pr’a Florença?
Não, mas espero encontrá-lo. É preciso ir para norte?
É preciso sair pela porta del Popolo! Como me deste cabo do sono, eu mostro-te por onde... mas, se tivesses uma coisinha p’ra me dar pela dor que me causaste, fazia-me bem. Fizeste-me muito mal, sabias?
Sem responder, Fiora vasculhou na esmoleira de Juana onde tinha, sem a explorar, metido a corrente e a medalha com a intenção de dar esta. Para sua surpresa, sentiu sob os dedos a redondeza de algumas moedas, tirou uma com a impressão de que era um ducado e meteu-a, sem olhar para ela, na mão do mendigo que, esse, deu alguns passos na direcção dos potes de fogo. Ela compreendeu que não se enganara ao vê-lo morder a moeda.
É mesm’ouro! constatou ele. Também me espantava muito se não tivesses encontrado uma ou duas destas moedas nesta casa. Vem! Vamos embora! Eu mostro-t’o caminho e depois deixo-te. Não quero que me vejam na companhia d’uma mulher que está em fuga!
Ele arrastou-a por uma rua estreita que se abria a um canto do palácio e enfiou a direito por entre duas filas de casas de altura desigual. Os olhos de Fiora iam-se acostumando à escuridão. De resto, no céu, as nuvens, empurradas pelo vento vivo, afastavam-se, desfaziam-se, para deixar ver, por instantes, algumas estrelas. O homem caminhava rapidamente, mas ela seguia-o sem dificuldade. E então, de repente, deixou de haver casas, nada, senão um vasto espaço vazio, um enorme terreno vago onde se amontoavam as ruínas de uma igreja e uma espécie de túmulo todo amassado. O mendigo deteve-se:
Agora, deixo-te. Só tens que caminhar a direito, deixando à tua esquerda o mausoléu de Augusto.
Aquela coisa ordinária é o mausoléu de Augusto?
Ou o que resta dele. Faz como te digo! Primeiro, além ao fundo, verás as braseiras na muralha. A porta del Popolo é mesm’em frente.
Ela nem teve tempo de agradecer. O mendigo fundiu-se, sem fazer mais barulho do que um gato, na sombra densa da igreja arruinada. Fiora ficou ali por um instante, à beira daquele deserto, saboreando uma impressão maravilhosa esquecida há muitos dias: estava só, estava livre... Uma vez fora daquela cidade, uma vez transposta a porta da qual apercebia vagamente as fogueiras de vigília, só teria a longa estrada que ia dar à sua querida cidade do Lis vermelho. Esqueceu que era de noite, que estava frio e que, enquanto não estivesse longe das muralhas de Roma, que deixara para trás, estaria em perigo, já que era verdade que o primeiro contacto de um prisioneiro com a liberdade é sempre exaltante. Tinha vontade de correr para poder ter a impressão de que voava, mas teria sido perigoso naquele terreno desigual e sem a menor luz que lhe permitisse seguir um traçado qualquer, admitindo que houvesse um.
Fiora pôs-se, portanto, a caminho calmamente na direcção do ponto que lhe tinham indicado, tentando não tropeçar nos montículos de terra onde as lajes se sobrelevavam, lamentando não ter uma bengala ou um pau qualquer para apalpar o caminho. Chegava mais ou menos ao local do mausoléu abandonado, ao pé do qual aparecia uma luz vaga por entre os arbustos, quando dois braços se abateram sobre ela e a agarraram pela cintura, reduzindo-a à impotência a despeito da sua defesa, ao mesmo tempo que uma voz triunfante gritava:
Apanhei uma!
Estás a sonhar! disse uma outra voz. Deves ter apanhado um pastor qualquer!
Estou-te a dizer que é uma mulher! Até tem umas tetas bem redondas e firmes!
Outro par de mãos pousou-se em Fiora, apalpando-lhe os seios ou apoiando-se na sua boca para a fazer calar. Em breve havia quatro ou cinco sombras que a apertavam, cheirando a couro, a cavalo e até a imundície. A jovem pensou que caíra em poder de bandidos e esforçou-se por morder a mão que a sufocava sem o conseguir. Uma nova voz, imperiosa, ordenou:
Trazei-a aqui para vermos com que se parece! Resistir era impossível. As sombras que seguravam Fiora e que estavam mascaradas de negro arrastaram-na na direcção do mausoléu. Ela viu-se numa espécie de nicho no meio dos arbustos e iluminada por uma lanterna. Um pouco mais longe, estavam umas vacas presas.
Atiraram Fiora por terra e ela viu erguer-se, diante de si, também ele mascarado, um homem grande e forte, vestido com um gibão bordado sob uma grande capa negra e que, com as mãos nas ancas, a olhava rindo a bandeiras despregadas e mostrando umas presas de lobo.
Segurai-a! ordenou ele ao ver a jovem debatendo-se furiosamente para se levantar. É um verdadeiro gato furioso... mas dir-se-ia que tivemos sorte. Uma bela presa, por minha fé! Aquelas que vêm a estas ruínas à noite em busca de ervas não são assim tão apetitosas! Vejamos isto mais de perto! Abre-lhe o corpete, Orlando, e tu, Guido, levanta-lhe as saias.
Por um instante, Fiora, horrorizada, viu-se com os seios e as coxas ao ar, ao mesmo tempo que o chefe começava a desatar a braguilha. Ela torceu-se como um verme, o que fez os seus companheiros desatarem a rir.
Deixa-te de histórias, filha, não vais morrer! Nós só somos seis!
Livre por um instante da mão que lhe tapava a boca e que deslizou, Fiora berrou:
Socorro! A mim! Soe...
A jovem ouviu, então, uma voz que respondia em eco:
Ataca, Zeus! Ataca, Hera!
Surgidos da noite, as poderosas formas negras dos grandes cães que ela já conhecia abateram-se sobre quatro homens ao mesmo tempo, que começaram a berrar sob as mordidelas. Ao mesmo tempo, o seu dono aparecia no halo amarelo de uma lanterna. A sua bengala transformara-se numa longa espada cuja ponta se foi apoiar na garganta do homem que se preparava para violar Fiora:
Então, senhor Santa Croce disse a voz fria de Infessura agora são precisos seis para molestar uma burguesa romana?
Uma burguesa, isso? Estás a brincar, amigo? Que faria uma burguesa a estas horas nestas ruínas?
Até a mulher de um notário tem o direito de ir ter com o amante que é dos Colonna, como este velho mausoléu e tudo o que o rodeia. Devias saber isso, Giorgio Santa Croce! Assim como devias saber que estás longe de casa e que vinte homens estarão aqui dentro de instantes se eu assobiar de uma certa maneira!
Santa Croce hesitou, mas a ponta da espada fez sair uma gota de sangue do seu pescoço. Eras capaz de me matar por causa de uma burguesa?
Sem hesitar, porque o Papa dar-me-ia razão. Ele estima muito os magistrados desta cidade.
Está bem! Baixa a tua espada e chama os teus cães! Não quero que me devorem os meus amigos.
A bem dizer, destes só restavam dois, os que Zeus e Hera mantinham por terra sob a ameaça das suas presas avermelhadas. Os outros três tinham preferido uma fuga sem glória para tratarem das feridas e evitar aborrecimentos mais sérios. A uma ordem do dono, os dois animais foram sentar-se a seus pés. Mas um dos dois homens assim libertados teve um gesto de furor. Tirando um estilete do cinto, feriu Fiora:
Toma minha bela! Explica ao teu marido notário onde arranjaste isto!
Levantara-se de um salto e já fugia quando, lançada pela mão segura de Infessura, uma adaga o apanhou entre os ombros. O homem caiu por terra sem um grito, enquanto Santa Croce e o seu último companheiro se lhe juntavam e se inclinavam sobre ele por um instante antes de se porem ao largo sem mais insistências. Mas Fiora não viu aquilo: o golpe recebido, juntamente com o terror que acabava de experimentar, tinham sido superiores à sua resistência. Desmaiou...
Quando regressou a si, continuava deitada na erva húmida e o seu corpete continuava aberto, mas o seu salvador, de joelhos perto dela, aplicava-lhe um tampão de pano no ferimento. Ele sorriu quando a viu abrir os olhos:
Tiveste sorte. A lâmina deslizou na clavícula e não te atingiu a garganta. No entanto, este ferimento precisa de tratamento. Onde ias, assim sozinha e a meio da noite?
Para Florença...
A pé?
Ia a fugir. Evadi-me há pouco do palácio Bórgia.
Em poucas palavras, ela contou aquilo por que passara àquele estranho vagabundo da noite e sem procurar esconder nada, porque ele lhe inspirava uma total confiança. Tinha mesmo a impressão de que ele era o único homem sério e honesto de toda a cidade.
Juraria que se passaria assim. Mas ainda do que o touro ao qual gosta de se comparar, Bórgia é um bode malcheiroso. Correu demasiados riscos ao raptar-te de Santo Sisto para não reclamar o único pagamento que lhe interessa. Ele não se teria preocupado contigo, mesmo para agradar ao Rei de França, se fosses feia. Por Baco! Não tenho aqui nada para te fazer um penso e o sangue volta a correr se o tampão sair do sítio. Achas que lhe consegues pôr a mão em cima depois de te fechar o vestido?
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