O dia caiu sem que pensasse em levantar-se para acender as velas. O seu coração batia um pouco mais depressa a cada som que pensava ouvir vindo do interior da torre. Um obscuro pressentimento dizia-lhe que a sua fuga teria lugar, ou naquela noite, ou nunca. Iria Juana, por fim, mostrar-se, ou esperar o regresso do primo na esperança de que a solidão, a inquietação e a falta de alimentação tornassem a prisioneira mais maleável?

Para melhor respirar, porque se sentia sufocar, Fiora foi abrir a janela que dava para a cidade. O tempo estava húmido e fresco. Pesadas nuvens corriam de um lado ao outro do horizonte. O Sol, que não se mostrara durante todo o dia, não tinha qualquer razão para se deitar e Roma passou lentamente de uma espécie de claro-escuro para as trevas nocturnas que nenhuma estrela, certamente, viria iluminar. O ar cheirava a lodo e aos detritos de toda a espécie que enchiam o rio vizinho. Alguns pontos luminosos acendiam-se de longe em longe na imensidão cinzenta sem nada retirar ao lado sinistro com que a noite vestia a Cidade Eterna sob os seus campanários e torres de vigia.

Subitamente, Fiora pensou num pormenor de que se tinha esquecido. A jovem voltou a fechar a janela, foi acocorar-se diante da chaminé onde o fogo morria por falta de alimentação e acendeu duas velas nas brasas ainda vermelhas. Em seguida, entrou na sala de banhos que possuía o luxo inaudito de um grande espelho de Veneza pendurado na parede. A jovem levara consigo a sua luz, com que se pentear e, bem entendido, a sua brocha de cabo longo da qual decidira, chegada a noite, não se separar.

Uma vez ali, Fiora libertou os cabelos e dividiu-os em duas tranças que enrolou em redor da cabeça à maneira de Dona Juana. Estava mesmo a terminar quando ouviu, no quarto, um barulho de loiça que lhe fez bater o coração. Ao mesmo tempo, deslizou por baixo da porta um raio de luz. Teria chegado o momento?

Segurando firmemente o cabo de ébano na mão, ela abriu a porta e sentiu invadi-la uma onda de alegria. Juana estava ali. Inclinada sobre o estrado que um escravo tivera de montar para poder chegar até Fiora, a espanhola dispunha os alimentos e depois, deitando vinho numa taça, beberricou-o voluptuosamente antes de encher, de novo, o recipiente. Entregue ao seu prazer, não ouviu chegar Fiora.

Esta não hesitou. Brandindo a sua arma improvisada, abateu-a com todas as suas forças sobre a cabeça da aia, que caiu sem um grito. Aquilo foi tão súbito que a jovem, um pouco inquieta, acocorou-se junto da grande forma negra e inerte, temendo tê-la morto. Esse medo fora a única razão pela qual Fiora escolhera a brocha de ébano em vez do atiçador de bronze. Rapidamente se tranquilizou. Os cabelos tinham amortecido o choque e Juana ficaria apenas com um grande galo. Não havia tempo a perder.

Aguilhoada pela pressa, Fiora despiu a velha solteirona, que atou em seguida com os atilhos que confeccionara. Em seguida, meteu-lhe na boca um lenço, que ajustou com uma écharpe de seda. Por fim, puxou-a pelos pés para a sala de banho, onde a abandonou sobre o tapete antes de fechar de novo a porta à chave. Admitindo que Juana conseguisse libertar-se, demoraria algum tempo até que fossem em seu socorro, já que a pequena sala não tinha janela, apenas uns buracos de ventilação.

Após a porta fechada, Fiora exalou um profundo suspiro de alívio. Temia, tanto quanto desejava, o instante de atacar Juana e o mais difícil já estava. Bebeu um copo de vinho para se recompor e apressou-se a vestir as roupas da aia. Eram um pouco grandes, mas ela meteu as saias no cinto de couro que apertou ao máximo sem esquecer, claro, as chaves que estavam penduradas nele. Em seguida, prendeu com um alfinete o véu de musselina negra à cabeça e não hesitou um segundo em colocar em redor do pescoço a pesada corrente de ouro de que Juana tanto se orgulhava. Como não possuía um tostão, aquela corrente, vendida aos bocados, permitir-lhe-ia comer ao longo do caminho e, talvez, comprar uma mula.

Estava-lhe reservada uma boa surpresa: os sapatos da aia, uns robustos sapatos de couro, eram como as roupas, um pouco grandes, mas, metendo-lhe lá dentro uns pequenos tampões de pano para os encurtar, fez com que se sentisse bem dentro deles. Evidentemente, o odor das roupas que pedira emprestadas não era muito agradável. Juana gostava dos perfumes pesados. Tudo aquilo cheirava a incenso, a cravo picante e a azeite, mas Fiora pensou que a sua liberdade não tinha preço. Enfim, após um último olhar para aquele quarto do qual pensara nunca mais sair, abriu a porta e deslizou para o exterior. E foi com um grande prazer que girou três vezes a grande chave na fechadura. A seguir, tratava-se de sair do palácio, do qual ela ignorava os cantos para além do que pudera aperceber da sua janela: uns edifícios construídos em redor de um grande pátio de dupla fileira de arcadas dominadas pela torre no alto.

A jovem viu que se encontrava num patamar iluminado por uma lanterna de azeite. Um lanço de escadas estreitas subia para o terraço onde estavam os guardas e um outro descia para as profundezas do edifício. Foi por este último que ela se meteu, puxando o mais possível o véu negro sobre o rosto e esforçando-se por imitar o porte daquela a quem tirara as roupas.

A escada levou-a até ao rés-do-chão sem encontrar vivalma nos dois patamares por que passou. Então, viu-se face a uma espessa porta ferrada que dava, talvez, para aquele jardim que ela nunca tinha visto, e que parecia impossível de abrir. Recordando-se das chaves que levava à cintura, procurou uma que servisse, mas eram todas muito pequenas.

Ao lado da escada havia outra porta pintada e trabalhada. Aproximando-se, Fiora ouviu vozes e risos de homens. Em seguida ouviu-se um barulho de móveis a serem arrastados, ao mesmo tempo que o tom das vozes subia. Os homens iam bater-se naquela sala, que talvez fosse a dos guardas do palácio. A evitar, portanto.

Fiora voltou a subir um andar na esperança de que a porta que dava para esse patamar fosse possível de abrir. A jovem recordava-se, com efeito, de ter reparado, ao chegar com Bórgia na noite da fuga do convento, num balcão que devia estar situado ao lado dos aposentos da guarda.

Se pudesse chegar a esse balcão, que era utilizado para ver os espectáculos da rua, talvez conseguisse descer dali para o chão. Mas era preciso chegar lá.

Com extrema precaução, a jovem experimentou a grande fechadura trabalhada. A porta abriu-se facilmente e sem barulho. Para lá estava uma grande sala, mal iluminada por um candeeiro pousado em cima de uma mesa espelhada, que parecia mergulhar no infinito. A jovem avançou até ela com precaução, mas sem ser obrigada a sufocar o ruído dos seus passos.

Tapetes espessos cobriam as lajes escuras, sobre as quais as chamas das velas se miravam, como num lago. O tecto alto estava pintado à semelhança de um céu estrelado e só faltava um pouco de ar para imaginar que se estava no exterior. Os divãs dourados e as almofadas estreladas de ouro estavam por toda a parte e Fiora recordou-se de ter ouvido Juana gabar uma certa ”sala das Estrelas”, onde o seu querido cardeal dava sumptuosas festas.

A travessia daquela sala magnífica pareceu-lhe durar um tempo infinito. No entanto, via o suficiente para não bater em nenhuma das cadeiras, ou outros móveis que ali se encontravam espalhados. Por fim, ela sentiu sob a mão os bronzes de uma porta e quase gritou de alegria: aquela abria directamente para o balcão.

Fiora avançou lentamente, rasando as paredes pintadas de frescos com medo de ser vista da rua, mas reinava um silêncio total para lá da balaustrada de pedra esculpida. A jovem aproximou-se, um pouco encorajada pela possibilidade de a poderem confundir com Dona Juana, inclinou-se e não viu nada. A grande rua, iluminada vagamente pelos dois potes de fogo colocados à entrada do palácio, de cada lado do brasão com o touro de pedra, parecia deserta e nenhuma luz brilhava no jardim nem na casa em frente. Era tranquilizador, mas a altura a que se encontrava o balcão era-o menos. A escuridão dava a Fiora a impressão de estar à beira de um abismo sem fundo, onde iria morrer. Mas não tinha escolha e já não era possível voltar atrás. Era preciso fazer qualquer coisa, mesmo que, à primeira vista, o gesto parecesse irrisório.

Tirando o véu negro da cabeça, a jovem rasgou-o em dois ao longo do comprimento, atou as duas pontas o mais solidamente possível e depois atou o todo à fina balaustrada. Após o que, tendo feito um rápido sinal da cruz, subiu para cima do balcão virando as costas à rua, agarrou no véu com as duas mãos que tremiam um pouco as pernas também, aliás! e começou a descer suavemente. O coração batia-lhe com toda a força no peito. O primeiro andar de um palácio romano, tal como o de um palácio florentino, era, pelo menos, de três toesas e a corda improvisada não devia medir mais de uma, tendo em conta os nós que fora preciso fazer. Dentro de um instante, teria de saltar e o chão da rua, pavimentado com redondas e cruéis pedras do Tibre, não era nada meigo.

E foi preciso saltar mais depressa do que ela pensara. O véu era de seda e o nó central desfez-se quando ela o atingiu. Foi a queda. Assustada, Fiora teve, de qualquer modo, a presença de espírito suficiente para não gritar. No entanto, alguém gritou, porque, para sua surpresa, aterrou sobre qualquer coisa mole, o que suavizou a sua chegada.

Repreendida vivamente por um dilúvio de imprecações, Fiora olhou com estupor e desolação para o mendigo que se tinha deitado ao longo da parede do palácio, ao abrigo do vento e sobre o qual acabava de cair. De pé também ele, o homem mostrava, sob um velho chapéu amolgado, um rosto rubicundo eriçado de pêlos cinzentos e olhos furibundos:

Ma... magoei-vos?

É claro que magoaste! O que é que te deu p’ra me caíres assim em cima? Vens a fugir?... Qu’interessante, uma mulher a fugir do palácio Bórgia!