Na outra margem, atravancada de moinhos, o panorama confundia-se um pouco com os fumos e as poeiras que não conseguiam dissimular o lado desolador. A via Papalis, uma das mais importantes, porém, mas que ninguém tinha pavimentado, serpenteava através daquilo que fora, em tempos, o Fórum e os palácios imperiais. Talhos e bancadas de carpinteiros amontoavam-se lado a lado com amontoados de ruínas de onde surgiam, aqui e ali, uma coluna partida ou a abóbada rachada de uma basílica. As vacas, que se viam nos terrenos livres, eram ali mais numerosas do que noutro lugar qualquer. Também havia porcos, que juntavam a sua porcaria e o seu chapinhar devastador ao descalabro geral.
Mal aparecendo entre duas casas, o arco de Constantino tinha um ar miserável sob a espessa camada de caca de pombo que o cobria. Quanto ao Palatino, o antigo palácio dos Césares, não passava de um montão de ruínas fechado entre as muralhas de sílex negro, coroadas estas pelos muros vermelhos ameados que assinalavam o domínio dos Frangipani. Tendas e casebres disformes escoravam as abóbadas dos antigos teatros invadidos por ervas daninhas e uma população miserável vivia ali como podia.
Dominando aquele caos, as quatro torres ameadas do Capitólio surgiam, melancólicas na sua decrepitude, encimadas por uma grande e triste campânula, mas, mais a oeste, face ao símbolo irrisório das liberdades romanas perdidas, duas torres ferozes, a dos Milices e a dos Conti, estavam próximas do palácio guerreiro dos cavaleiros de Rhodes.
Em redor do Coliseu, do qual tinham feito uma vasta e fácil pedreira, uns fornos de cal funcionavam ininterruptamente, descarregando uma fumarada negra que irritava a garganta e os olhos e era causa, segundo Juana, de males incuráveis. Dali, pelas encostas cheias de erva do Célio, chegava-se ao Latrão. Uma via suficientemente larga para que uma procissão pudesse ali desenrolar a sua pompa, a via Lata, ia dar à catedral de Roma. Sempre segundo Juana, nenhuma procissão se arriscava a passar por ali desde que, em tempos longínquos, uma mulher, que conseguira fazer-se eleger para o trono pontifício fazendo-se passar por homem e a quem chamaram depois Papisa Joana, se revelara ao seu rebanho dando à luz nas lajes da dita via Lata. Uma estátua representando uma mulher deitada e amamentando um bebé marcava o local e como o povo de Roma declarara esse local maldito e possuído pelo demónio, nenhum padre, nem nenhum cortejo, por razões ainda, mais fortes, se arriscava a passar por ali. Para chegar a São João de Latrão, toda a gente fazia um desvio que passava pelo que tinham sido os jardins de Mecenas.
Naturalmente, Fiora pôde aperceber as grandes ruínas das termas de Caracalla, próximas das muralhas da cidade e a frondosidade do jardim de Santo Sisto. De lá, a jovem refez o caminho pelo qual Bórgia a levara até sua casa e, ao mesmo tempo, a cidade inteira entrou nos seus olhos e na sua memória. Mas ela tinha necessidade de certas informações e, para as obter, apanhou um desvio:
No dia em que fui ao Vaticano disse ela em tom ligeiro conheci a sobrinha do Papa, a condessa Riario. Podeis dizer-me onde vive ela?
Dona Catarina? Claro. Vedes além a igreja de Santo Apolinário e também o palácio de São Marcos? Entre os dois há uma grande casa com ameias e uma torre: é ali que ela mora.
Ah, estou a ver! Mas também conheci uma outra personagem importante: o cardeal camerlengo...
O francês? Esse que dizem o mais rico de Roma? Bem, olhai...
Mas estava escrito que Fiora não conheceria a localização do palácio d’Estouteville. Um grupo imponente de cavaleiros atravancava a rua, rodeando a mula soberbamente arreada de púrpura e ouro que transportava o vice-chanceler da Igreja. Os passantes ajoelhavam-se na poeira para receber a sua bênção, assim como os servidores que vinham abrir as portas do palácio. Visto de cima, Fiora pensou que, sob o seu grande chapéu, ele devia ter o ar de um enorme cogumelo púrpura, mas ele levantou a cabeça e viu as duas mulheres. Com um gesto autoritário, ordenou-lhes que entrassem. Juana ficou verde.
Maria Santíssima! gemeu ela. Ele ficou furioso! Pensei que não fazia mal autorizar-vos a olhar pela janela. Ele não via inconveniente antes, quando...
Quando havia outras mulheres neste quarto? completou Fiora, que não se pôde impedir de rir perante a cara aterrorizada da prima do cardeal.
Esta, depois de ter fechado a janela, ia e vinha no quarto enquanto torcia as mãos.
Não vos rides, peço-vos! É... é terrível!
Tendes medo a esse ponto? Ele não vos vai bater?
Pior. Vai olhar para mim com cólera e encher-me de desprezo.
Não estais a exagerar um pouco? Por causa de uma simples janela?
Juana sabia do que estava a falar e, aparentemente, ainda estava longe da verdade: quando, um momento mais tarde, Bórgia surgiu, vermelho e esbaforido por ter galgado as escadas sob o impulso da cólera, despejou sobre a sua cabeça a mais bela colecção de injúrias hispano-italianas que era possível ouvir. Prostrada a seus pés no tapete e erguendo por cima da cabeça as mãos juntas e suplicantes, Juana soluçava, batia com a cabeça no solo e implorava o seu perdão com uma voz dilacerante. Como a cena lhe pareceu ao mesmo tempo ridícula e revoltante, Fiora decidiu imiscuir-se.
Chega! gritou ela para dominar o tumulto. Eu não vejo por que razão essa infeliz merece ser tratada como a estais a tratar. A sua única culpa foi a de me deixar respirar um pouco.
Levado pelo furor, Bórgia nem a ouviu. Então, ela foi buscar um espelho que estava em cima do toucador, agarrou o cardeal pela manga para o puxar para trás e colocou-lho diante do rosto que, vermelho e crispado, tinha algo de demoníaco.
Olhai para vós mesmo! Estais hediondo! E ousastes falar em me agradar?
Aquela brutal confrontação com a sua imagem sufocou-o. Fiora aproveitou:
Um nobre espanhol! Um príncipe da Igreja que se comporta como um carroceiro para com uma guardadora de vacas desajeitada! Devíeis morrer de vergonha! Fazeis-me horror!
Ela estava diante dele, direita e desdenhosa no vestido de cetim branco agaloado a negro e a ouro com que Juana a vestira nesse dia e brandindo o espelho como se brandisse um crucifixo em frente do Diabo e essa imagem exorcizou a cólera do cardeal. Este virou-se para Juana, sempre submersa na sua humildade e atirou-lhe:
Vai-te! E só me apareças quando eu te chamar!
Ela levantou-se e desapareceu com a rapidez de um rato perseguido pelo gato. Bórgia foi até à janela que dava para o pátio e abriu-a, tentando recuperar o fôlego. Pouco a pouco, foi ficando mais calmo, ao mesmo tempo que o seu rosto reencontrava a cor normal. Quando se sentiu melhor, deixou sair um grande suspiro e virou-se para olhar para a jovem. Sentada numa cadeira alta forrada de veludo verde, ela esperava sem dizer uma palavra. O espelho repousava nos seus joelhos.
Perdoai-me! Não devia ter dado livre curso à minha cólera, mas quando vos vi à janela, tive muito medo.
Patranhas! Eu tinha um véu sobre a cabeça e uma máscara a tapar-me o rosto. Dona Juana tem, aliás, dificuldade em fazer com que eu os aceite, mas foi a condição para me deixar respirar um pouco a essa maldita janela.
Não sabeis o que dizeis. A despeito desse véu e dessa máscara, podíeis ter sido reconhecida.
Reconhecida? Numa cidade onde ninguém me conhece?
Excepto todos aqueles que vos viram no Vaticano por ocasião da vossa chegada, excepto os vossos companheiros de viagem e as freiras de Santo Sisto.
O exemplo é feliz. Elas são freiras enclausuradas!
Ele suspirou de novo e, puxando outra cadeira, sentou-se em frente dela.
Foi, mesmo assim, uma grande imprudência. Todos os esbirros da cidade andam à vossa procura. Além disso, ignorais o que o Papa encontrou.
Reparo que, pela primeira vez, não dizeis o Santo Padre, um nome que lhe vai pessimamente. Muito bem, que encontrou ele?
Domingo, o eunuco núbio que vos guardava, possui um grande talento para o desenho. Fez alguns esquiços vossos, muito parecidos para terem sido feitos de memória, que os pregoeiros mostraram em todos os bairros. E como é oferecida uma soma de cem ducados a quem vos entregar...
Desta vez, Fiora empalideceu. Mediu, nesse instante, o poder do ódio de Hieronyma, visto que aquela mulher miserável soubera transmiti-lo ao Papa. Era ao mesmo tempo absurdo e aterrorizador, insensato. Que génio mal-intencionado presidira ao seu nascimento para que se visse assim, continuamente, alvo da hostilidade dos poderosos deste mundo? Tivera de fazer face à sua querida cidade de Florença sublevada contra ela, depois ao Temerário, o mais terrível príncipe que reinara na Europa e agora, ao Papa! Amara um homem e esse homem fora-lhe levado pela morte. O sangue incestuoso das suas veias era assim tão maldito? Os acontecimentos, que não cessavam de se virar contra ela eram, talvez, a prova.
Para lutar contra a angústia que lhe subia à garganta, ela apertou, com as duas mãos, os braços da poltrona. O espelho deslizou-lhe dos joelhos e quebrou-se. Seguiu-se um silêncio. O cardeal e a jovem olharam para os cacos espalhados pelo chão e depois, bruscamente, Fiora levantou-se:
Monsenhor disse ela fazeis mal em esconder-me e pondes em perigo a vossa casa. Mandai que me acompanhem ao Vaticano. Vou-me entregar.
Instantaneamente, ele pôs-se de pé e um relâmpago brilhou-lhe nos olhos negros. As suas duas mãos pousaram-se nos ombros da jovem.
Sois louca! Eu não vos disse isto para vos reduzir ao desespero, mas para que compreendais o interesse que tendes em ser prudente.
Eu sei... mas já não tenho vontade de ser prudente. Quero morrer, é tudo! A única coisa que vos peço é que entregueis ao cardeal d’Estouteville a carta que vou escrever. É preciso que o Rei Luís tome conta do meu filho e dos que me são queridos.
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