Quer dizer, eu própria? Sois muito presunçoso, na verdade, Dom Rodrigo, mas eu só tenho vinte anos, enquanto vós tendes mais do dobro. Não pensastes que talvez eu não vos ame?

Ele desatou a rir, o que lhe permitiu mostrar à-vontade os dentes. Era muito orgulhoso deles e, por causa disso, ria muitas vezes. ”

Quem fala aqui de amor? Eu só procuro o prazer e quanto mais rara é a mulher, maior é o prazer. O prazer, minha florentina! Se não o conheceis, saberei ensinar-vo-lo, porque é mais enebriante se for partilhado. Oh, sei o que estais a pensar: entrego-me já a ele e fico livre mais depressa. Mas não é isso que eu quero. O meu apetite é exigente mas refinado e, por agora, perdoai-me se vo-lo digo, os medicamentos de Juana tornaram-vos pouco apetitosa.

Sufocada, Fiora sentiu-se corar e compreendeu que se sentia vexada, porque fora isso, exactamente o que pensara. Não era a primeira vez que se encontrava presa na armadilha dos desejos de um homem e até chegara ao ponto de os provocar, como em Thionville, quando fora ter com Campobasso.

Restaurai a vossa saúde, meu belo anjo acrescentou Bórgia com uma voz acariciante e tornai-vos tão resplandecente como no jardim de Santo Sisto! Quanto a mim, ornamentar-vos-ei como um ídolo, exaltarei a vossa beleza com tudo aquilo que a riqueza pode fazer para ornamentar um corpo de mulher e vou ter prazer nesse jogo... Quanto à minha idade, ainda não me provocou a menor preocupação e vereis que sou mais ardente no prazer, mais experiente e mais poderoso do que qualquer rapazola.

Perante o rosto espantado de Fiora, ele desatou a rir de novo:

Duvidais? As cortesãs de Roma chamam-me o touro Bórgia; Vós sereis a minha Pasifaeia e engendraremos um novo Minotauro.

Vendo-se, assim, confrontada de novo com a sua cultura grega, Fiora deixou sair a cólera que aumentava nela desde há instantes:

Eu não vou engendrar nada! uivou ela. Eu tenho um filho em França e quero ir ter com ele. Como pudestes imaginar por um só instante que tenho vontade de me entregar a vós?

Ele sorriu-lhe como se ela tivesse feito a mais amável das declarações e passou-lhe pela face um dedo acariciador:

Ela há-de vir, asseguro-vos. De qualquer maneira, como ides ficar aqui fechada durante algumas semanas, por que não passar esse tempo da melhor maneira possível? Eu sou um mestre na arte do amor...

O sangue que a ira lhe fizera subir à cabeça provocou em Fiora um acesso de tosse:

Repousai disse o seu estranho anfitrião. Dentro de momentos Juana virá acomodar-vos para a noite que se aproxima...

Por fim, ele saiu e, como que por magia, a doente parou de tossir. Ela já não sabia qual era a sua situação, senão que, muito provavelmente, aquele homem não era normal. Um instante antes, ela pensava em Campobasso, do qual ela ignorava o paradeiro, ou o que lhe acontecera e que era possuído, também ele por um verdadeiro furor genésico, mas, pelo menos, Campobasso tinha-a amado, ao passo que, para este, ela não era senão um animal raro, uma carne diferente daquelas a que estava habituado e que, por essa mesma razão, tencionava comer. Aquele homem pusera-a numa jaula e essa jaula estava rodeada de todos os perigos de uma cidade hostil. Além do mais, era um padre!

De repente, Fiora pensou em Léonarde. Pobre querida e santa criatura! Devia estar a milhares de léguas de imaginar o seu ”cordeiro” fechado naquela Roma que para ela era a antecâmara do

1 Rainha lendária de Creta, mulher de Minos, que foi mãe de Fedra, de Ariadne e do Minotauro, que ela teve com um touro pelo qual se deixara prender


Paraíso, ameaçada de morte pelo Vigário de Cristo e entregue aos caprichos lúbricos de um príncipe da Santa Igreja Católica.

Quando Juana regressou pouco depois com uma taça de chá, não compreendeu por que razão a doente desatou a rir-se-lhe na cara, atirou com o tabuleiro de pantanas, se deixou cair com a cabeça nas almofadas e se recusou a levantar-se. Pelo movimento dos ombros, a aia percebeu que chorava e não ousou insistir. As raparigas, e até as virgens que preparava para a cama do seu senhor não se comportavam como aquela, que nem sequer era virgem, Já que Rodrigo dissera que era uma ”dama”. Algumas choravam um pouco por causa das aparências, mas os tecidos preciosos com que as vestia, as comidas puxadas e os vinhos calorosos consolavam-nas e ficavam mais do que consentâneas quando chegava a hora do sacrifício.

Não sabendo que fazer mais, a prima de Bórgia abandonou o quarto na ponta dos pés, fechou cuidadosamente a porta, meteu a chave no cinto e foi-se deitar, mas a despeito da noite em branco que passara, não conseguiu adormecer e passou várias horas a perguntar a si própria o que teria acontecido entre aquela estranha criatura e o seu bem-amado Rodrigo.

CAPÍTULO VIII

A NOITE DAS SURPRESAS

Fiora levou quatro dias a curar a constipação e, durante todo esse tempo, não voltou a ver Rodrigo. A devota Juana disse-lhe que o cardeal partira para o famoso convento de Subiaco, nos montes Sabina, que fazia parte dos seus privilégios e do qual só regressaria no fim da semana. Pelo que a jovem se mostrou aliviada. Aproveitou aquela pausa para se restabelecer por completo e para tentar fazer o ponto da situação.

Esta não era muito brilhante a despeito do facto de Fiora morar num quarto sumptuoso, todo decorado com veludo verde às franjas douradas e cujo chão, de mármore de várias cores, desaparecia sob um fabuloso tapete que as mulheres do longínquo KermanKI tinham enchido de flores desconhecidas e de aves fantásticas. A jovem tinha calor demasiado calor porque Juana, temendo que ela ficasse de novo doente, mantinha o quarto quente como um forno e ela estava quase bem alimentada demais pela aia, que não cessava de lhe levar guloseimas e bolos, na esperança de a ver engordar.

Estás muito magra reprovava-a ela. Rodrigo gosta das mulheres um pouco redondas, com carnes macias. A amante preferida dele, Vanozza, que lhe deu os dois filhos que tem, Juan e César, é uma loura soberba que tem o ar de ser feita de cetim branco. Os seios dela são como pequenos melões e...

Eu não quero ter seios como pequenos melões e recuso ser tratada como um ganso na engorda. Em vez de me trazer

Cidade do sul do Irão


guloseimas, faríeis melhor se me dissésseis o que se passa na cidade.

Nada. Não se passava nada, pelo menos pelo que Juana sabia. Os gritos de guerra dos dois bandos rivais dos Colonna e dos Orsini perturbavam as noites todas, mas Fiora ouvia-os tanto como os outros habitantes de Roma e, todas as manhãs, eram encontrados um ou dois cadáveres a boiar no Tibre, ou abandonados a um canto de uma rua.

Curada, Fiora começou a aborrecer-se. A doença, pelo menos, era uma companhia e agora, reduzida à de Juana, a jovem viu-se a achar o tempo longo, porque as ordens do cardeal eram formais: a porta do seu quarto devia permanecer fechada à chave e, em caso nenhum, podia sair. Podia-se ter confiança em Juana para as respeitar.

O único momento um pouco agradável era a manhã. Depois de se levantar, Fiora tomava um banho que lhe preparavam numa pequena divisão ao lado do quarto, também ela muito ornamentada. Uma bacia escavada no solo ocupava quase todo o espaço; que era suficientemente grande para que duas pessoas ali pudessem tomar banho juntas, o que era, parecia, ”um dos grandes prazeres de Rodrigo”. A água que os escravos do palácio transportavam havia uma trintena de cores variadas saía lentamente por uma estreita conduta que desembocava numa goteira. Banhada, o que ela apreciava sempre muito, Fiora era massajada por uma grande rapariga negra que ria o tempo todo e a massajava como se estivesse a fazer pão com óleos perfumados, o que era menos agradável, mas Fiora saía das suas mãos transbordante de uma vitalidade da qual, em seguida, não sabia o que fazer. Depois de ter dado a volta ao seu quarto vinte vezes num sentido e outras vinte noutro, só lhe restava uma distracção: olhar pela janela. Mais uma vez, Juana só consentia em abrir uma depois de ter aplicado uma máscara no rosto da jovem e atirado um véu por cima dos seus cabelos.

O quarto ocupado por Fiora estava situado, na parte mais alta da torre quadrada, sem a qual não se podia conceber um palácio romano. Imediatamente acima só havia as seteiras em forma de asas de borboleta e os dois vigias, que se revezavam dia e noite. Todas as grandes casas da cidade ofereciam, aliás, aquele aspecto de fortaleza, mesmo se as suas muralhas eram pintadas e decoradas, mesmo se possuíam um jardim que, como o do palácio Bórgia, descia até ao Tibre. Fiora só o constatou mais tarde, porque as suas janelas davam, uma para o pátio interior do palácio sempre cheio de servidores, de guardas, de familiares e de escravos e a outra para a cidade.

Fiora, que desde o primeiro dia só pensava em fugir, teve um choque quando se apercebeu que o seu quarto se encontrava àquela altitude. Para escapar, o único meio seria uma escada de corda e ela não via como arranjar uma. Mas a vista era esplêndida e a jovem aproveitou para estudar, enfim, Roma, cuja maior parte se estendia na sua frente.

Juana, desde que não se tratasse do seu ídolo, era boa rapariga. Contente por ver a sua prisioneira interessar-se por qualquer coisa, deu-lhe de boa vontade todas as explicações que ela desejava.

A cor de Roma era de um tom ocre quente e profundo, a patina que os séculos tinham dado às igrejas, aos palácios, às casas e às torres medievais que afirmavam a sua arrogância. Tinham aberto a janela ao fim do dia e o Sol, no seu declínio, exaltava ainda as cores. À direita e para lá do Tibre de leito amarelado, Fiora viu a massa vermelha do castelo de Saint-Ange dominando o Borgo, as torres ameadas e as campânulas perfuradas do Vaticano encostadas aos grandes pinheiros, aos ciprestes e aos teixos negros de um jardim. Viu também a Torre di Nona, quartel-general da polícia, plantada, como uma ameaça, à entrada do populoso bairro do Transtevere.