Devias ter-me prevenido que não era como habi...
Um gesto autoritário cortou-lhe a palavra e ela pareceu encolher sob o olhar brilhante em que ele a envolveu. Fiora achou que era tempo de intervir se não queria fazer daquela mulher, visivelmente tola, uma inimiga mortal.
Dona Juana deu-se a muito trabalho comigo, Vossa Eminência e tenho medo de ter sido mal-agradecida, mas confesso-vos que só a ideia de jantar me faz vir o coração à boca. O odor da comida...
É-vos insuportável? disse Bórgia com humor. Muito bem, minha querida, tratai-vos, eu vou jantar a casa de uma amiga. Mas talvez possamos conversar um pouco?
Certamente aprovou Fiora, encantada por se ter safado. Gostaria muito de saber notícias.
É o que eu pensava. Vai-me buscar um copo de vinho de Espanha, Juana e depois, deixa-nos sós! Virás depois acomodar dona Fiora para passar a noite.
O cardeal seguiu a saída da aia com o olhar e depois aproximou uma cadeira do leito.
Creio disse ele baixando o tom que achareis interessantes as notícias que vos trago. Fazia eu companhia ao Santo Padre na sua altanaria, onde ele estava a dar de comer à sua águia, quando Leone da Montesecco, o chefe da sua guarda, encarregado de vos ir buscar a Santo Sisto, regressou com as mãos a abanar.
E então?
Não me lembro de o ver antes tão encolerizado. Toda a gente teve a sua parte: o capitão porque não vos trazia, o cardeal d’Estouteville, convocado imediatamente e acusado logo de vos dar refúgio e até a águia, que ficou privada de metade da sua refeição: o Papa deixou-a ali plantada e regressou ao seu quarto, onde partiu dois ou três vasos para distender os nervos. O resto caiu em cima de dona Boscoli, que acabava de chegar com o sobrinho. Dizei-me, Dona Fiora, ela foi ontem ao convento?
Foi, mas o Papa deve sabê-lo: ela tinha uma autorização de visita.
É o que diz a madre Girolama. Acrescentou que a dama, sempre em nome do Papa, lhe deu ordem para fechar a vossa porta à chave.
E o Papa não sabia de nada? Foi ela que mandou pôr guardas diante das portas?
Não. A ordem veio do Vaticano, mas a autorização para vos visitar era falsa. O Santo Padre arrastou dona Boscoli pelas ruas da amargura, acusando-a de ter estragado tudo só pelo prazer de vos ir enervar.
O cardeal calou-se. Juana estava de regresso com um tabuleiro de prata, sobre o qual vinha um magnífico copo vermelho e dourado de Veneza e um jarro da mesma origem. Ela pousou tudo sobre uma mesa, encheu o copo com os gestos piedosos de um oficiante no altar e entregou-o ao primo com uma espécie de genuflexão que ele pareceu considerar natural.
Obrigado, Juana! Podes retirar-te. Eu chamo-te daqui a pouco.
A cólera do Papa não caiu também sobre vós? espantou-se Fiora.
Por causa da minha visita da semana passada? A prioresa de Santo Sisto é uma mulher inteligente. Ela achou preferível não falar disso, pensando, sem dúvida, que, se se calasse, talvez a pudesse ajudar. O que fiz. Expliquei ao Papa que era tudo culpa da dama Boscoli, que vos assustou em vez de deixar que o Santo Padre conduzisse o assunto como muito bem entendia. Acrescentei que vós sois, sem dúvida, uma mulher cheia de recursos. Em seguida, a zaragata tornou-se quase geral quando o cardeal d’Estouteville, que propusera espontaneamente que lhe revistassem o palácio, regressou, mas desta vez como acusador.
Como acusador? E quem acusou ele?
Mas, o papa, minha bela amiga, o Papa muito simplesmente. O cardeal camerlengo não é uma pessoa qualquer e, além disso, é o mais poderoso dos cardeais franceses. Foi preciso dizer-lhe exactamente o que se tinha passado e ao saber a escolha que vos ia ser dada, o machado do carrasco ou a mão do triste Cario, ele encolerizou-se, protestando com a injúria feita ao seu soberano, porque dispunham assim de vós sem sequer esperar pela resposta do Rei de França. Ameaçou queixar-se ao soberano. Não entro nos pormenores das injúrias trocadas: foram tão grandes, que a minha memória preferiu esquecê-las.
Monsenhor d’Estouteville não tem, portanto, medo do Papa?
Por que havia de ter medo? Ele representa aqui o Rei Luís de França, é o chefe da diplomacia vaticana, é também o cardeal mais rico de todos e, além disso, é de sangue real. É uma coisa que conta para o pobre monge franciscano, saído do nada, que ele ajudou a subir ao trono de São Pedro.
Estou a ver. Qual foi a conclusão dessa... zaragata?
Bem, por agora ficaram todos nas suas posições. O Santo Padre clama que, se põe a mão em vós, mandar-vos-á executar, quer isso agrade, ou não, a dona Boscoli e o cardeal determina, porque está longe de andar aos gritos, que se o Papa dispuser de vós sem o consentimento do Rei Luís, as alianças ficam como estão e ele nunca mais verá, nem em sonhos, o monge Ortega e o cardeal Balue.
Fiora guardou silêncio por uns momentos, brincando com o tecido sedoso do seu lençol, que enrolava e desenrolava em redor dos dedos.
E esse casamento de que me falaram... a dama Boscoli? Gostaria de ter a vossa opinião acerca desse assunto.
Bórgia olhou por um instante para a jovem envolta na seda branca dos lençóis que deixavam aperceber a curva suave de um ombro e o seu olhar acendeu-se ao imaginar outras curvas suaves, mais saborosas ainda, que se escondiam sob o luxo daquele leito principesco.
Que opinião vos posso dar? É preciso odiar-vos muito para ousar propor uma união entre vós, bela entre todas as belas, e aquele infeliz.
Em tempos, Hieronyma quis casar-me com o filho, Pietro Pazzi, que era um monstro e que suava maldade por todos os poros da pele. Foi por causa dele que ela mandou matar Francesco Beltrami, o meu pai. A despeito do meu nascimento... irregular, Hieronyma está possuída pela raiva de me casar na família, tanto teme que uma parcela, por mínima que seja, da nossa fortuna destruída lhe possa escapar.
Abandonando a sua cadeira, Bórgia foi encher de novo o seu copo e no momento em que o ia levar aos lábios, ofereceu-o à jovem:
Bebei! Estou certo que vos fará bem.
Ela pegou no copo, nas transparências do qual a chama de uma vela acendia fulgores sumptuosos:
É assim tão difícil falar-me de Cario Pazzi? Achais que preciso de ser confortada antes de abordar o assunto?
Ela esvaziou o copo de um trago e entregou-lho. Ele não pegou no objecto, envolvendo antes os dedos da jovem com a sua grande mão, pousou os lábios no local por onde ela tinha bebido e colheu uma última gota do vinho dourado.
É um outro género de monstro suspirou ele, por fim. Não é mau, disso estou certo, mas é uma dessas ruínas humanas que, por vezes, nascem nas mais nobres famílias. Dizem que ele é produto de uma violação e que, ao nascer, rasgou irremediavelmente o corpo da mãe. A ideia de que vos possam casar com aquele dejecto humano é intolerável para qualquer homem normalmente constituído. Não posso suportá-la... Vós fostes feita para o amor dos príncipes...
Sentando-se na beira do leito, ele tirou docemente o copo dos dedos que o retinham ainda e atirou-o para a chaminé como se fosse uma coisa sem importância. A frágil maravilha quebrou-se numa enorme quantidade de estilhaços púrpuras e dourados.
Tocou nos vossos lábios murmurou ele com uma voz cuja rouquidão traduzia desejo. Mais ninguém tem o direito de nele pôr os seus.
Por entre as pálpebras pesadas, que se fechavam, o seu olhar filtrava-se, glauco, quase opaco. Entretanto, uma das suas mãos aprisionou o ombro que o tentava desde há um momento, ao mesmo tempo que a outra deslizava por cima da colcha bordada a ouro, procurando o contorno de um seio. Fiora recuou bruscamente para o fundo do leito e encostou as pernas ao peito.
Devo lembrar-vos, monsenhor, que estou doente? disse ela com uma voz tão fria que gelou a cobiça de Bórgia.
Com pena, os dedos deslizaram numa carícia dupla. Ele levantou-se:
Perdoai-me murmurou ele. Os vossos olhos parecem-se com um céu tempestuoso, no qual deve ser muito fácil um homem perder-se... e eu não desejo outra coisa senão agradar-vos.
Ela viu que, ao levantar-se, ele titubeava um pouco e divertiu-se cruelmente:
Foi para me agradar que vos arriscastes daquela maneira, indo buscar-me a noite passada?
Por que havia de ser? disse ele num tom subitamente alto. Um objecto precioso não se confia às mãos grosseiras de um criado.
É a segunda vez que me comparais a um objecto. Esqueceis que sou uma mulher?
Oh não, não esqueço. Aliás, não penso noutra coisa. Sim, sois uma mulher e a mais desejável que eu jamais conheci. Logo no dia da vossa chegada. Estáveis magra como um gato esfomeado e pálida como um raio de luar, mas éreis para mim, que vos observava sem que me pudésseis ver, a mais bela de todas as criaturas e jurei nesse momento que seríeis minha.
Foi por isso que me fostes buscar ao convento e trouxestes para aqui?
Por que outra razão havia de ser? O Rei de França interessa-me, é verdade, mas se vós fôsseis feia, não me teria preocupado convosco nem por um único momento. Quanto a mim, sempre que quis uma mulher, tive-a sempre e rapidamente, mas, por vós, estou pronto a mostrar alguma paciência, porque sei que valeis a pena e porque o prazer, justamente por ter esperado, será maior ainda quando, por fim, vos possuir.
Perdeis o vosso tempo e a vossa paciência, monsenhor rugiu Fiora cada vez mais colérica. Confiei em vós porque esperava que me ajudaríeis a fugir... desta santa cidade e a regressar a casa.
Sem dúvida. Mas, por agora, é impossível e temo que ainda vá demorar algum tempo. Pelo menos, até que me tenhais dado o que espero de vós. Quero ser pago pelos meus esforços e perigos corridos pelos vossos belos olhos com a única moeda que me interessa.
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