Uma vez mais, ela virou as costas sem uma palavra e transpôs a porta do parlatório. A voz odiosa de Hieronyma perseguiu-a.
Não penses que foges! As portas do convento estarão guardadas esta noite.
O pesado batente da porta, ao fechar-se, cortou aquela última irrupção de fel. Esgotada pela tensão nervosa que impusera a si própria, Fiora encostou-se a ele e fechou os olhos, esperando que o seu coração recuperasse um ritmo normal. Reabriu-os quando uma mão se pousou no seu ombro:
Não há um minuto a perder disse a voz doce da irmã Serafina. É preciso preparar a vossa fuga. Aquela mulher é abominável.
Estivestes a ouvir?
Tive essa curiosidade e peço-vos perdão. Eu sei, as paredes são espessas e a porta também, mas quando a entreabrimos... Não podeis cair nas mãos dessa criatura.
Conhecei-la?
A minha mãe conhece-a e posso dizer que não tem boa reputação. Mora no palácio que o Papa deu, no Borgo, a Francesco Pazzi e dizem que é ela que manda. Mas, não percamos mais tempo! Eu vou ao jardim atirar um véu branco por cima do muro. É melhor não irdes vós mesma.
Quando ela ia partir, Fiora reteve-a por uma manga:
Um momento! Eu agradeço-vos muito, mas já vistes o tempo que está? Certamente que não está tempo para pescar no lago e ninguém, certamente, espera o nosso sinal.
Também ontem fazia mau tempo e antes de ontem. No entanto, o enviado do cardeal estava lá. Num dos extremos, entre os muros da cidade e o lago, há uma espécie de ruínas, perto das quais ele está.
Fostes lá ver?
Onde pensais que rasguei o hábito antes de ontem?
A irmã Serafina, com efeito, recebera nesse dia uma reprimenda da parte da mestra das noviças pelo grande rasgão no seu hábito. Ela pretendera tê-lo rasgado contra um dos bancos do refeitório, mas a peça de vestuário trazia uns traços castanhos-esverdeados dificilmente imputáveis a um móvel, ainda por cima encerado de fresco. O assunto ficara concluído com uma série de Avé-Marias na capela com os braços em cruz, prova de que a noviça saíra bastante cansada e que, agora, provocava alguns remorsos em Fiora.
Eu vou lá concluiu ela. Não quero que sejais punida de novo.
Não tenhais medo: eu conheço a fundo as armadilhas da glicínia e é melhor que ninguém vos veja no jardim neste momento.
De qualquer maneira não servirá de nada. Ouvistes tão bem como eu: esta noite o convento estará guardado.
Certamente que não do lado do pântano. Esse lado é muito mais vasto. Além disso, quem se aventurar nele sem auxílio atolar-se-á irremediavelmente e conhecerá uma morte horrível. Por mais avisada que esteja, a signora Boscoli não sabe tudo.
Um momento mais tarde, Antónia regressou para dizer à sua amiga que o sinal fora dado e que o enviado de Bórgia estava lá.
Esta noite cochichou ela acompanhar-vos-ei até ao muro para vos mostrar o local por onde atirei o véu. E agora recuperai a confiança! Ainda por cima, já não chove...
Não passava de uma acalmia. Durante a refeição da noite, que as freiras comiam sempre ao som de uma leitura piedosa, a tempestade recomeçou e Fiora, incapaz de se interessar pela Cidade de Deus de Santo Agostinho, escutava com alguma inquietação as rajadas de chuva nos vitrais e o assobio do vento por baixo da porta do refeitório. De tempos a tempos procurava o olhar da irmã Serafina, mas esta devolvia-lhe um rosto de tal modo sereno que a jovem acabou por se tranquilizar. No fim de contas era melhor, para que a evasão tivesse sucesso, que o tempo estivesse mau em vez de uma bela noite doce, clara e constelada de estrelas indiscretas.
Após o último ofício e a reverência à madre superiora, Fiora regressou à sua cela para ali esperar que a sua amiga a fosse buscar. Não se despiu, contentando-se em estender-se sobre a cama depois de ter soprado a vela. Como estava muito frio e como Querubim, para seu desgosto, se tinha esquecido de acender a braseira, estendeu o manto por cima de si. Subitamente, ouviu um ruído que lhe gelou o coração: no exterior, alguém tentava virar a chave na fechadura da sua porta.
A decepção foi tão violenta que quase gritou. Todas as suas esperanças desapareciam de repente e teria de suportar a escolha abominável com que a ameaçara Hieronyma: casar com aquele Cario desconhecido e que a repugnava antecipadamente, ou morrer: o altar ou o cadafalso!
Philippe! gemeu ela do fundo da sua angústia porque me abandonaste? Sem a tua paixão pela guerra, teríamos sido felizes.
Quanto tempo ficou ela assim, de olhos muito abertos para as trevas do seu quarto, escutando o vento a rugir na galeria e a fazer ranger os ramos das árvores? Seria impossível de avaliar, mas, de qualquer modo, não fecharia os olhos antes do regresso do dia... E então, de repente, ouviu-se junto à porta um ligeiro ruído e uma forma negra, mais negra ainda do que a escuridão, deslizou até junto do leito:
Estais pronta? sussurrou a irmã Serafina. Instantaneamente, Fiora pôs-se de pé:
Como fizestes para entrar? Alguém fechou a minha porta e eu ouvi a chave na fechadura.
Foi, sem dúvida, a nossa madre Girolama. A dama Boscoli deve ter tomado as suas precauções, mas, felizmente, esqueceram-se de tirar a chave. E agora vinde, mas primeiro envolvei-vos no vosso manto. É preciso ficar tão invisível quanto possível.
Ela própria se fundia por completo na noite e, sem a segurança tranquilizadora da sua mão, Fiora poderia pensar que falava com um fantasma. Uma atrás da outra, saíram ambas para a galeria e depois mergulharam na tempestade e no jardim. Fiora teve a impressão de mergulhar numa floresta submarina. Não havia um ramo, uma folha que estivesse imóvel e que não sacudisse a sua carga de água.
Não vejo nada! murmurou ela, cega por uma bofetada molhada que lhe atingiu o rosto em cheio.
Não tenhais medo, eu conheço o caminho de cor. Sou capaz de vos levar até ao muro de olhos fechados.
Pela minha parte, quer estejam abertos, ou fechados, a diferença é igual. Que noite!
Não vos preocupeis! Os guardas do convento estão abrigados onde podem e no pântano não deve haver nem um gato. Vede, estamos a chegar!
Pouco a pouco, Fiora foi vendo e, por fim, distinguiu, mesmo à sua frente, uma massa mais negra ainda, que era o muro coberto de plantas. A irmã Serafina guiou a mão que segurava até que esta se fechou sobre um ramo espesso:
Eis a glicínia. Trepai! Quando estiverdes no alto, assobiai! Ou me engano muito ou aquele que vos espera está mesmo junto do muro... Que Deus vos guarde!
Às apalpadelas, Fiora procurou a cabeça da noviça e beijou-a.
Por que não vindes comigo? Tenho medo que fiqueis em perigo quando se aperceberem da minha fuga.
Não tenhais. Mesmo que a madre Girolama duvide de qualquer coisa, não dirá uma palavra.. Ela gosta muito de mim, ao mesmo tempo que detesta o Papa, a sua tribo e os seus amigos. Estou certa que no fundo do seu coração ficará contente com o seu fracasso.
Mas, ela fechou-me na minha cela?
Simples descargo de consciência. Ela deixou a chave na porta. Quando virdes Battista, abraçai-o pela prima Antónia e dizei-lhe...
Confiai em mím. Sei exactamente o que lhe vou dizer. Com decisão, Fiora empunhou uma braçada de ramos a escorrer água e começou a trepar para o topo do muro. Chegou lá acima sem grande dificuldade, mas foi preciso agarrar-se com força para não ser levada pelo vento que batia como um chicote. Então, ouviu uma voz:
Não assobieis! Estou aqui! Ouvi-vos chegar. Descei suavemente para não desequilibrar a barca.
Ela passou para o outro lado do muro e apalpou com os pés para encontrar apoio. Aquela descida pareceu-lhe durar uma infinidade de tempo. Subitamente, uma mão fechou-se sobre uma das suas pernas e depois sobre as duas.
Já vos tenho segura. Deixai-vos cair!
Ela deslizou, mas as mãos em questão já lhe apertavam a cintura e ela viu-se sobre um soalho movediço, que só podia ser o da barca. O homem segurava-a contra si com firmeza e, para sua grande surpresa, a jovem respirou um delicado perfume de âmbar. No entanto, o que ela tocava era um tecido rude, um burel qualquer e, aliás, a grande silhueta que ela mal distinguia era a de um monge.
Peço-vos perdão por estes dias de espera disse ela docemente. Este tempo abominável...
Chhh! Falaremos mais tarde. Sentai-vos ali e não vos mexais!
Ele instalou-a no fundo do esquife e depois, empunhando uma longa vara, mergulhou-a na água lodosa e dirigiu-se para a margem. Mas quando ele disse as últimas palavras, quase com naturalidade, Fiora identificou ao mesmo tempo a voz e o perfume. A jovem não foi capaz de guardar para si a descoberta:
Como, monsenhor? Viestes vós mesmo? Fostes vós que esperastes estes dias todos?
Ela ouviu-o rir suavemente:
Não. A minha ausência teria sido notada no Vaticano. Simplesmente, o meu servidor tinha ordens para me prevenir quando fizésseis o sinal. Mas, agora, calemo-nos! Este pântano passa por ser assombrado, mas dois fantasmas a conversarem assim animadamente, como numa sala, pode levantar suspeitas.
Fiora guardou silêncio enquanto o seu companheiro se consagrava à navegação que o vento não facilitava e que se tornou ainda mais difícil quando abandonaram o abrigo do muro. A barca deslizou lentamente sobre a água espessa e, por vezes, atravessava maciços de caniços, pelos quais roçava. Apesar do frio, o odor a lodo e vegetais apodrecidos era penoso e, no seu manto ensopado, Fiora tremia. Mas não só porque se sentia molhada. Um pouco de medo aumentava o seu mal-estar por se sentir assim entregue por completo a um homem em quem não confiava totalmente. Que a tivesse ido buscar era incrível e não se explicava de modo racional. A menos que esperasse um pagamento que a jovem não se sentia disposta a dar-lhe...
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