Não choreis! cochichou uma voz doce, ao mesmo tempo que uma pequena mão quente se pousava na sua. Vim buscar-vos para vos conduzir à capela, porque chegou a hora das completas. Cantarei ao Senhor, mas também cantarei para vós!

Através do nevoeiro provocado pelas lágrimas, pareceu a Fiora que estava a ver, de novo, Battista e a ouvi-lo dizer: ”Amanhã é dia de Natal e nós somos ambos dois exilados. Se quiserdes, passarei o dia junto de vós e cantar-vos-ei canções da nossa terra.” O tempo passara, mas continuavam a ser exilados.- ele nas neves da Lorena, onde preferira enterrar-se e ela sob aquele sol romano, que não se parecia com nenhum outro.

Um impulso atirou-a para o pescoço da pequena irmã Serafina, que a abraçou:

Perdoai-me este momento de fraqueza, que não consegui reter murmurou ela. Estava a pensar nos meus, no meu filho...

O cardeal Bórgia não vos trouxe más notícias, ao menos?

Não. Mas, confesso-vos, não sei que pensar. Se quiserdes, podemos falar do assunto. Por agora, obrigada, obrigada pela vossa amizade...

Sorriram ambas e depois, de mão dada como duas rapariguitas, juntaram-se à dupla fila branca e negra das dominicanas que se dirigiam para a capela.

Como irmã Serafina, a prima de Battista pensava o melhor do cardeal vice-chanceler, que diziam grande esmoler, generoso e pleno de indulgência para com os pecados dos outros, mas como Antónia Colonna, o seu julgamento alterava-se curiosamente. A jovem era suficientemente sensata para entrar no jogo, porque a nobreza romana não tinha nenhuma simpatia por aquele bando de espanhóis vindos da sua província de Valença na bagagem do tio Calisto III. Tudo os tinha, então, oposto aos romanos: diferenças de carácter, de costumes e até de civilização. Os espanhóis vinham de uma nação ainda muito feudal. Tudo isso contribuíra para um desentendimento, sem contar com a forte xenofobia dos italianos que, individualistas até ao extremo, começavam agora a sentir de novo o chamamento das antigas civilizações e a impregnarem-se delas. Acharam, primeiro, grosseiros e pouco frequentáveis aqueles homens ainda marcados pelos furores da sua velha luta contra os Mouros, mas os recém-chegados tinham dentes grandes e o amor pelo fausto. Integraram-se rapidamente e, sob a batuta de Rodrigo, impuseram-se, gabando o gosto dos romanos pelas festas e, sobretudo, adoptando a sua moral bastante particular, que dizia que o crime podia ter a sua grandeza e que o homem, liberto dos antigos constrangimentos pela cultura, era mais ou menos único juiz do seu próprio comportamento.

No que dizia respeito ao vice-chanceler, a sua reputação estava, doravante, bem assente: a missa não era a sua ocupação principal e não tinham conta as suas amantes, das quais a favorita, uma tal Vanozza casada com um funcionário, lhe dera já dois filhos, Juan e César, reconhecidos pelo marido postiço, mas que o cardeal adorava e clamava, publicamente, do seu sangue. No entanto, Varozza, ricamente instalada numa bela casa da praça Pizzo di Merlo e possuindo uma vinha numa das colinas de Roma, não podia ambicionar a exclusividade de um homem do qual se dizia e a irmã Serafina corou violentamente ao pronunciar aquelas palavras impuras que ”mais carnal não podia existir”.

Creio disse ela concluindo que antes de vos colocardes sob a sua protecção, deveis pensar bem no que arriscais. Ele não vos disse nada acerca desse perigo iminente?

Nada. Não tem a certeza e quer certificar-se de certas coisas.

Também pode ser um perigo imaginário, para vos atrair com mais segurança. Vós sois muito bela e essa é, sem dúvida, a principal razão para que ele se interesse tanto por vós, vindo até visitar-vos aqui sem autorização do Papa.

Nesse caso, que devo fazer? Ele também me disse que me ajudaria a regressar a França.

E, evidentemente, vós estais pronta a correr todos os riscos só pela felicidade de reencontrar os vossos?

E para poder fazer algumas perguntas ao nosso Battista, não esqueçais!

Não esqueço e gostaria de vos poder ajudar, mas acreditai-me: não vos precipiteis! Eu vou fazer chegar uma carta ao meu tio, o protonotário Colonna, pedindo-lhe que me venha aqui falar. O Papa não gosta dele, mas é um homem fino e astuto, que consegue sempre saber o que quer. Ele já nos salvou de muitas coisas más.

Aquela promessa reconfortou Fiora. Na situação em que se encontrava, precisava muito de amigos. Sem eles não voltaria a ver a doce região do Loire.

A jovem decidiu, portanto, seguir o conselho da sua companheira e usar aquela virtude da paciência que Demétrios dizia ser a mais importante de todas. Talvez porque era a mais difícil de praticar. De qualquer maneira, não era a única e, ao escutar a voz de cristal da sua nova amiga cantando louvores à Mãe de Deus sob as abóbadas brancas da capela, veio-lhe a ideia de que as orações com que Léonarde devia, desde a sua partida, sobrecarregar Deus, a Santíssima Trindade, a Virgem Maria e os santos e santas que mereciam a sua confiança, tinham, talvez, servido para encontrar um anjo no seu caminho.

O assunto da visita do cardeal Bórgia ainda não tinha terminado, porque, ao sair do refeitório, a madre Girolama levou-a consigo para dar alguns passos sob as arcadas do claustro iluminado por dois grandes círios amarelos.

Espero começou ela fixando a ponta dos pés que Sua Eminência não vos tenha dito nada de inquietante? É raro a nossa modesta casa ser honrada a este ponto.

Fiora pensou, irreverentemente, que a madre Girolama ardia de curiosidade, como uma vulgar irmã leiga e escondeu um sorriso ao abrigo do véu branco.

Fui eu a primeira a ficar surpreendida, minha mãe, mas, de facto, Sua Eminência veio para me exortar a ter paciência e a ser obediente. As maneiras um pouco vivas, talvez, que tive diante do Santo Padre na noite da minha chegada inquietaram-no. Ele sabe, com efeito, que pertenço ao séquito do Rei de França e fez-me compreender que, para o bem de todos, é preferível que eu me submeta a uma vontade contra a qual, de facto, não tenho forças.

A jovem seria incapaz de dizer de onde lhe viera a inspiração para aquela obra de arte de hipocrisia, mas ao ver a sua companheira aprovar silenciosamente com ar compenetrado, teve quase vergonha de enganar assim aquela santa mulher que a tinha acolhido tão generosamente.

A santa obediência, minha filha suspirou a madre Girolama. É o nosso primeiro dever entre todos e eu fico agradecida ao cardeal por vo-lo ter vindo recordar, já que a vossa conduta pode ter alguma importância para a política de Sua Santidade. Eu conheço pouco o cardeal, mas sei que é um grande diplomata, muito preocupado com o seu cargo. Nesse ponto, só fazemos bem se seguirmos os seus conselhos. E exorto-vos a que os sigais!

A cem léguas de distância de imaginar que género de conselhos o vice-chanceler acabava de dispensar à sua pensionista, a madre Girolama foi meditar, como fazia sempre todas as noites antes de se deitar, na vida eterna e nos melhores meios de guiar nessa via as jovens almas confiadas à sua guarda. Fiora, essa, um pouco atrapalhada, preferiu empurrar a porta da capela para passar um momento na sua obscuridade apaziguadora, em frente da pequena chama rosada que velava junto do tabernáculo. A despeito de uma piedade tépida, compreendia por vezes Léonarde, que ao menor aborrecimento ia depositá-lo aos pés de um altar qualquer. Talvez lhe fosse dado receber, do alto, a luz?

Mas nada aconteceu; nem nessa noite nem nas noites seguintes e passaram-se cinco dias sem que qualquer notícia animasse, para Fiora, a vida regrada do convento. Se a irmã Serafina fizera passar, por intermédio da irmã Querubina, um bilhete para o palácio do cardeal Colonna, este ainda não aparecera em Santo Sisto.

A impaciência tomava conta de Fiora, porque não havia nada mais enervante do que temer uma coisa sem saber ao certo o que era. Com a aproximação do Natal, o tempo mudou e tornou-se pior ainda do que no momento da sua chegada. Desencadeara-se uma tempestade sobre o Mediterrâneo e as rajadas de vento de oeste varriam a costa tirrena, levando, por vezes, as frágeis casas dos pescadores. Na cidade, o vento arrancava dos telhados as telhas redondas e os ramos das árvores e fazia desabar um pouco mais as ruínas cada vez menos altaneiras dos antigos palácios imperiais. Precipitava-se pela mais pequena das portas abertas, apagava as velas da capela e fazia voar as cinzas das braseiras. As correntes de ar acabaram a obra da malária e a irmã Prisca morreu na primeira noite de Inverno nos braços da pobre Querubina cuja figura, normalmente tão alegre, estava inchada das lágrimas.

Quando a levaram para a terra, vestida com o hábito severo da ordem e de pés nus, Fiora assistiu, como as outras, ao serviço fúnebre e ao enterramento que se seguiu, mas só o seu corpo estava presente. Ouvia o uivo do vento, que fazia estalar os hábitos das freiras como se fossem estandartes nos respectivos paus e o seu espírito vagabundeava pelo jardim, junto ao muro que dava para o lago. O enviado do cardeal estaria no seu posto a despeito daquele tempo horroroso? Parecia-lhe pouco provável.

No entanto, mal o serviço terminou, pegou numa manta preta e quis descer ao jardim para ter a certeza. Tinha reparado no local exacto do muro por onde seria necessário lançar o sinal branco e segui-lo chegada a noite. Havia ali um velho pé de glicínia que devia ter conhecido a sua infância no tempo dos Guelfos e dos Gibelinos e que se agarrara firmemente às pedras do muro com os seus ramos cinzentos e nodosos. Graças a ela, a transposição do obstáculo far-se-ia com relativa facilidade. Mas, no momento em que se dirigia para os canteiros, a madre Girolama foi ter com ela.

Tendes intenção de descer ao jardim com este tempo?