Pelo que Fiora concluiu que o belo cardeal não gostava de música e que desejava, sobretudo, que ninguém escutasse o que tinha para dizer. O que a espantou: ela nunca o tinha visto antes e, se era enviado pelo Papa, como tudo fazia supor, não via muito bem o que teriam para lhe transmitir de tão confidencial.

Caminhando modestamente um pouco atrás do seu imponente visitante, ela não se pôde impedir de reparar que, sobre as luvas vermelhas, o anel pastoral não era o único ornamento, estava ao lado de pesados anéis enriquecidos de pedras preciosas, a ”capa magna” era bordada a ouro, sobre a murça de arminho a cruz de ouro, comprida como a mão de um homem, estava ornamentada com grandes rubis e o chapéu vermelho de abas largas, sinal distinto da dignidade que marcava o perfil imperial dos Bórgia, tinha laivos de ouro e um rico alfinete. Nem o cardeal d’Estouteville, que tanto impressionara Fiora, era assim tão faustoso. Quanto ao Papa, devia desaparecer por completo ao pé do esplendor do seu ”irmão em Jesus Cristo”.

Chegado ao banco indicado, o cardeal sentou-se, espalhando em seu redor um tal rio de tecidos e veludos que não ficou espaço algum para Fiora, que, aliás, não foi convidada a sentar-se. A jovem ficou, portanto, de pé diante dele, não ousando ser a primeira a romper um silêncio que o visitante parecia ter o prazer de prolongar. O seu olhar brilhante examinou a jovem com uma insistência que fez corar um pouco as suas rosetas e com um prazer evidente, que se abriu num sorriso afável. Por fim, decidiu-se a falar.

A despeito do que dizem, a estadia em Santo Sisto parece ter uma feliz influência na vossa saúde, dona Fiora. Estáveis num triste estado aquando da vossa chegada, mas parece que reencontrastes todo o vosso esplendor.

Se bem que lhe estivesse reconhecida por ele evitar os ”minha filha”, ou os ”minha pequena” habituais às gentes da Igreja quando se dirigiam aos simples mortais, Fiora ficou surpreendida pela sua curiosa maneira de começar. Era a maneira de um homem galante, sem dúvida, mas os padres cultivavam pouco, geralmente, os cumprimentos.

Agradeço a Vossa Eminência uma solicitude que me comove disse ela prudentemente mas não compreendo como pode ela fazer a diferença. Não me lembro de vos ter visto aquando da minha chegada ao Vaticano?

Mas eu, vi-vos: não aquando da vossa chegada, mas quando deixastes o palácio. Vós sois daquelas mulheres que despertam o interesse e eu quis saber mais acerca de vós. E isso foi relativamente fácil. Eu tenho excelentes relações com o cardeal d’Estouteville, a quem a vossa presença em Roma provoca grande embaraço.

Não vejo porquê. O seu papel limita-se, se bem compreendi, a dar a saber ao Rei de França que, por ordem do Papa, eu fui raptada a alguns passos da sua residência, sequestrada num navio e conduzida até aqui após uma viagem que durou o dobro do tempo que duraria normalmente.

Rodrigo Bórgia desatou a rir. Ele gostava de rir, isso permitia-lhe mostrar os seus belos dentes e ajudava o seu encanto junto das mulheres:

E achais esse papel fácil? Eu não tenho o privilégio de conhecer o Rei Luís e deploro-o, mas, pelo que ouvi dizer, esse género de mensagem tem poucas hipóteses de lhe agradar, sobretudo acrescida de condições que, quanto a mim, não podem ser aceites por um soberano. Frei Inácio Ortega, que eu conheço bem, não passa de um fanático perigoso e devia agradecer a Deus o facto de não ter sido executado. Eu tê-lo-ia feito. Quanto ao cardeal Balue, não passa de um pretexto cómodo para permitir a Sua Santidade imiscuir-se nos assuntos de França. Posso perguntar-vos quais são, ao certo, os sentimentos do Rei Luís por vós?

Fiora começava a achar que a conversa tomava um rumo estranho. A menos que aquela visita fosse uma armadilha, mas não lhe parecia que o Papa fosse o inspirador.

Conhecer os sentimentos do Rei foi sempre a mais difícil das empresas, monsenhor, porque ele é um mestre em dissimulação. No entanto, creio que tem amizade por mim, porque já o provou.

Mas não amor?

Nunca compreenderei de onde veio essa história. Pela minha parte, nunca ouvi dizer que o Rei tivesse amantes.

Já teve, quando era mais novo e elas até lhe deram filhos, mas na sua idade e com a sua saúde, que dizem má...

Se é, ou não, não tenho nada com isso, monsenhor. Se quiserdes acompanhar-me à capela, estou pronta a jurar pelos santos Evangelhos que não sou nem nunca fui sua amante. Foi por isso que, no outro dia, disse que o Papa tinha feito um negócio lorpa: Luís de França não cederá em nada por mim.

E, sobretudo, não abandonará Florença e, para o Santo Padre, a questão é essa. Foi por isso que vos vim ver.

Que esperais de mim? Que ajude o Papa a desfazer-se dos Médícis? Não conteis com isso! Eu sou florentina antes de mais e os Médicis são-me muito queridos. Não farei nada contra eles, nem com risco da minha própria vida.

Longe de mim semelhante ideia! Eu não gosto particularmente de Lourenço e do irmão, mas, a mim, é-me insuportável que Riario se transforme no senhor de Florença. Mas eu não vim aqui para vos falar de política, antes para vos dizer o seguinte: o palácio de um cardeal e, particularmente, o do vice-chanceler da Igreja, é um lugar de asilo inviolável, no seio do qual cessa a vontade do Papa.

Ele calou-se, talvez para deixar que as suas palavras adquirissem o peso do seu significado. Apenas se ouvia o som da fonte, cuja água escorria, em forma de chuva, no tanque de mármore branco. Como sentisse necessidade de retomar contacto com qualquer coisa real, Fiora mergulhou as mãos na água, deixando a água límpida deslizar sobre elas e refrescá-las.

O convento onde me encontro não é um lugar de asilo?

Não inteiramente. Puseram-vos aqui; podem fazer-vos sair, quer queirais, quer não. Não é o caso em minha casa.

Percebo muito bem, mas, então, por que razão me ofereceis um refúgio? Vós sois um dos mais altos dignitários da corte papal e...

Acabo de vo-lo dizer: não vim aqui para falar de política. Ficai a saber, apenas, que nem sempre aprovo a do Vaticano. Além disso, pode ser que eu esteja a cuidar do futuro ao obsequiar o Rei de França. Enfim, ficaria inconsolável se vos acontecesse algum mal, porque, como fidalgo que sou, gosto de me dedicar ao serviço das damas, tanto quanto aprecio uma obra de arte. E vós sois uma coisa e outra.

Fiora sacudiu as mãos, enxugou-as ao véu que lhe cobria a cabeça e virou-se para Bórgia, que se tinha levantado.

Falemos claro, monsenhor! Estou aqui em perigo?

Não imediato, talvez, mas não tardará. Ouvi uns rumores que tenho de confirmar. É claro que, depois do que suportastes, adivinho que vos é difícil confiar, mas escutai o seguinte: caso um acontecimento qualquer vos inquiete, ficai a saber que a partir de amanhã alguém da minha parte virá pescar no lago vizinho. Se precisardes de ajuda, atirai um véu como esse, com uma pedra embrulhada, por cima do muro que vedes além. Chegada a noite, saltareis, vós mesma, esse muro. Estarão à vossa espera. Aquilo foi tão surpreendente que Fiora não respondeu de imediato, tentando reflectir. No entanto, murmurou:

A vossa bondade confunde-me, monsenhor, mas, ao ir para vossa casa, não estaria apenas a mudar de prisão? Se quereis socorrer-me, ajudai-me a regressar a França.

Cada coisa a seu tempo! Não podeis deixar Roma sem preparação. A vossa fuga causará um turbilhão, que é preciso deixar estalar a seu tempo. Estais assim com tanta pressa de regressar a casa?

Tenho um filho de três meses. O pai dele morreu e só me tem a mim.

Mantende a esperança e confiai em mim. O importante é pôr-vos a salvo. Em seguida, faremos com que possais partir.

A conversa terminara. O cardeal já erguia uma mão cintilante de jóias para uma bênção, sob a qual Fiora se viu obrigada a curvar-se, mas não por respeito. Simplesmente, devido às aparências, porque acabava de perguntar a si própria se aquele homem de olhar acariciador seria, realmente, um príncipe da Igreja. Se ele tivesse vindo só e não escoltado pela madre Girolama, ela teria duvidado.

Reflecti! murmurou ainda ele sem mexer os lábios mas reflecti depressa! O tempo urge.

A samarra púrpura deslizou ao longo das lajes brancas com um frufru de seda. Fiora ficou a ver afastar-se a silhueta imponente do prelado por entre os maciços de folhagem. Que aquele desconhecido tinha encanto, era inegável, mas no seguimento das atribulações dos últimos dois anos, a desconfiança tornara-se-lhe natural. Que o belo cardeal quisesse obsequiar o Rei de França não era, em si, nada de extraordinário. Bastante mais novo do que o Papa, podia muito bem ambicionar a tiara papal e a amizade de França seria, então, importante, mas aquela vantagem inicial valeria o risco de dar asilo a uma fugitiva?

1 A coroa tripla que coroava o Papa.


O tempo passou-se mais depressa do que Fiora pensara, que foi surpreendida pelo fogo-de-artífício do pôr do Sol e pelos longos rastos vermelhos anunciando vento para o dia seguinte. Sobre aquele fundo sangrento, as árvores do jardim escureceram e a jovem teve frio. Dirigiu-se ao banco onde tinha deixado o bordado, meteu-o num saco de tela e regressou ao claustro cujos frescos se descoloriam sob a luz púrpura. A jovem seguia em passo lento, subitamente esmagada pelo sentimento da sua solidão e com a desesperante ideia de que estava perdida para sempre no coração de um mundo desconhecido e hostil, recheado de armadilhas tanto mais pérfidas quando se escondiam sob aparências sedutoras.

A necessidade de voltar a ver o seu bebé, a querida Léonarde, Péronnele e o seu Étienne sempre intratável, Florent, que tanto a amava e a sua Casa das Pervincas foi de repente tão violenta que a jovem passou um braço em redor de uma coluna ainda tépida do sol e apoiou-se nela, tal era a vontade de se agarrar a qualquer coisa sólida. Fiora fechou os olhos, deixando que as lágrimas corressem livremente.