Sois a irmã Serafina. Gosto tanto de vos ouvir cantar, que me informei.
Sim. Aqui, chamo-me Serafina, mas lá fora chamava-me Antónia Colonna.
Uma luz brusca entrou no espírito de Fiora, ao mesmo tempo que uma lufada de alegria:
Battista! exclamou ela. Mas era nele, claro, que vós me fazíeis pensar. Sois da família dele?
- As nossas mães são irmãs e nós temos a mesma idade. Se fôssemos gémeos, não éramos mais próximos um do outro. Desde que partiu que me escreve com alguma frequência... e, por vezes, fala de vós. Creio que eram ambos amigos?
Mais do que amigos! Dizeis que ele é para vós como um irmão. É um pouco o que ele foi para mim, um irmão, cheio de atenções e gentileza. Então, eu era refém do duque de Borgonha e foi graças a Battista que não caí no desespero em determinadas circunstâncias. Mas, após os funerais do duque Carlos, ele desapareceu e eu nunca mais soube nada dele. Ides dar-me notícias dele neste momento? acrescentou ela com uma certa animação. Suponho que regressou a Roma?
Não. Ficou lá!
A irmã Serafina desviou o olhar para que a sua companheira não lhe visse as lágrimas e em Fiora a alegria deu lugar à inquietação.
Ficou em Nancy? Mas porquê? Ele não foi ferido na última batalha que custou a vida ao duque e eu ouvi dizer que, devido à sua idade, não ficaria como prisioneiro!
Com efeito, ele podia ter regressado. Se ficou lá, foi por vontade própria. Pediu para ser admitido entre os monges encarregados de velar pelo túmulo onde está sepultado aquele a quem ele chamava o grande duque do Ocidente. Nunca mais voltará!
Desta vez, Serafina chorou sem procurar esconder-se e Fiora, incomodada, não soube como apaziguar, ou, pelo menos, adoçar a sua dor. Ao mesmo tempo, reprovava-se a si própria: reencontrado o seu amor, nunca mais pensara no pajem e deixara Nancy sem tentar vê-lo de novo. Mas a conduta de Battista não era menos incompreensível. Amava tanto o duque a ponto de querer ser seu servidor eterno? A ponto de enterrar com ele todas as esperanças a que tinha direito na vida? Querer ficar junto do túmulo? Que coisa absurda! Que acontecera, portanto, no lago Saint-Jean, aonde Battista guiara aqueles que procuravam o corpo do vencido? Que perturbação operara a descoberta do cadáver meio comido pelos lobos, na alma daquele rapaz que sonhava com a glória, que amava a vida e que, jovem, belo, rico e príncipe, não desejava mais nada? A não ser, talvez, o amor... um amor que só esperava por ele e que nunca ousara dizer o seu nome. Entretanto, Serafina continuou:
Ninguém, entre nós, compreendeu a sua decisão e menos ainda o nosso tio, o conde de Celano, com quem Battista tinha partido para se juntar aos exércitos de Borgonha. Ele tentou tudo para o trazer de volta, mas teve de defrontar uma vontade terrível, irredutível. Battista queria ser monge.
Que coisa insensata! Mas, enfim, pode-se entrar, assim, na religião sem o consentimento do chefe de família? O pai dele autorizou-o?
De maneira nenhuma. Ele alimentava grandes esperanças por Battista.
Nesse caso, por que não apelou ao Papa? Eu sei que vós sois uma das famílias mais poderosas de Roma.
Fomos, mas já não somos. Os Orsini é que são os mais poderosos, porque o príncipe Virgínio é amigo íntimo do conde Girolamo Riario, o preferido entre os quinze sobrinhos do Santo Padre. Evidentemente, não renunciámos à guerra contra essa família de feirantes, mas, neste momento, os riscos e os perigos são nossos.
Quinze sobrinhos? Que família! E tudo homens?
Não. Também há raparigas e casam-nas bem. Quanto aos rapazes, se não são cardeais, desemburram-nos para fazer deles verdadeiros senhores. O ”conde” Girolamo, que casou com a bastarda preferida do duque de Milão, conseguiu a Romanha e espreita Florença. Um outro é prefeito de Roma, o cardeal Gíuliano della Rovere é bispo de Lausana, de Avinhão, de Constança, de Mende, de Savone, de Viviers e de Vercelli. O seu palácio del Vaso, que nos tiraram, está cheio de objectos raros, de artistas, de eruditos e de poetas, porque ele interessa-se muito mais pelo pensamento grego, ou romano, do que pelos Evangelhos. Um outro, defeituoso fisicamente, casou com uma filha do futuro Papa Júlio II, que mandará Miguel Ângelo decorar a capela Sistina natural do Rei de Nápoles, que foi forçada a esse casamento, tal como Catarina Sforza. Não vos posso dizer tudo, mas dentro de pouco tempo o jovem Rafael Riario, que tem dezassete anos e estuda em Pisa, receberá o chapéu de cardeal por São Jorge, em Velabro, e esta não é, certamente, a última benesse que o Papa concede à sua família. Roma, e até a Itália inteira, não passam, para ele, de um imenso jardim, no qual pilha os frutos mais suculentos para os oferecer aos seus, ao mesmo tempo que espolia os que lhe desagradam.
E vós, os Colonna, desagradais-lhe?
É claro. Felizmente, ainda temos muitos amigos e partidários. Isso permite-nos fazer a essa gente todo o mal que podemos.
Fiora mal podia acreditar no que ouvia. Aquela pequena freira, votada, em princípio, à oração, ao perdão das injúrias, à renúncia e ao único amor de Deus, acabava de despir a doçura da sua aparência para deixar aparecer o fundo de uma alma plena de azedume e, talvez, de ódio. A jovem aprovava os assassínios com que se deitava, todas as noites, Roma. Então, veio-lhe, muito naturalmente, uma pergunta:
Foi de vossa inteira vontade que entrastes aqui, irmã Serafina?
Quando estivermos sós, prefiro que me chameis Antónia. A jovem calou-se por um momento, hesitando em entregar-se mais, mas decidiu-se, pensando, provavelmente, já ter dito de mais:
Quanto à vossa pergunta, fui eu que pedi para colocar o véu, para não casar com Leonardo della Rovere, aquele que casou com a napolitana. O meu pai evitou aborrecimentos mais graves ao abandonar àquele aborto a maior parte do meu dote. Confesso que estava revoltada quando aqui cheguei, mas agora já não tenho vontade de me ir embora. De que me serviria, se Battista não vai regressar?
Nos seus grandes olhos negros, semelhantes, na ocasião, aos do Papa por quem ela sentia uma espécie de vertigem, Fiora leu um desespero tão pungente que teve vontade de tomar
Cada cardeal era, de certo modo, cura de uma paróquia romana aquela criança nos braços, como uma irmã infeliz. Mas tudo dizia, na atitude de Antónia, que teria recusado essa piedade.
Amáveis-lo a esse ponto?
Continuo a amá-lo e amá-lo-ei sempre, enquanto viver. Mas, agora, punhamos as minhas misérias de parte! É dele que vos queria ouvir falar, porque vivestes muito tempo perto dele.
Mais de um ano: desde o primeiro cerco de Nancy até ao segundo.
Um ano! Teria dado a minha vida por esses meses e posso confessar-vos: tive ciúmes de vós, detestei-vos. Ele dizia que vós éreis tão bela... e tinha razão.
Mas não tínheis razão. Quem nos conheceu, o ano passado, poderia dizer-vos: éramos uma espécie de irmãos de armas, porque Battista era, também ele, um refém. Respondia com a sua vida se eu tentasse fugir. O duque Carlos sabia empregar todos os meios para obter o que queria. Sinto-me culpada por não ter procurado rever Battista antes de partir de Nancy e prometo-vos, que se conseguir regressar a minha casa, o que espero, que irei lá e será bom que Battista me diga o que lhe passou pela cabeça para agir assim.
De qualquer maneira, mesmo que ele regressasse, já não sou mais do que a irmã Serafina...
Sois noviça, como ele também deve ser. Tentai não pronunciar os votos tão cedo e rezai para que eu consiga fugir!
Com uma espontaneidade infantil, Antónia atirou-se-lhe ao pescoço e pousou nas suas faces dois grandes e sonoros beijos. As nuvens que um instante antes enevoavam os grandes olhos negros acabavam de dar lugar a um céu nocturno cheio de estrelas.
Farei tudo para vos ajudar! prometeu ela.
A jovem não teve de dizer mais nada. A irmã Querubina acorria, segurando as saias nas mãos para andar mais depressa e virando-se de vez em quando para ver se alguém a seguia.
Salvai-vos, irmã Serafina! disse ela. A nossa madre superiora vem para aqui com monsenhor, o cardeal vice-chanceler, que manifestou o desejo de vos ver, Dona Fiora!
O vice-chanceler? Quem é ele? perguntou a jovem. Sinto-me um pouco perdida no meio desses cardeais todos.
Mas a irmã Serafina já tinha fugido sem se despedir e desaparecera no meio dos limoeiros. Foi Querubina que se encarregou de responder:
Sua Eminência o cardeal Bórgia, espanhol e homem muito belo. Tem uns olhos... como duas brasas!
Um momento mais tarde, enquanto se ajoelhava para beijar o anel do prelado, Fiora pensou que a irmã Querubina, que fugira, aliás, tão depressa como tinha aparecido, emitira, na sua candura ingénua, um julgamento de uma grande justeza: sob as suas sobrancelhas negras, as pupilas de Rodrigo Bórgia ardiam literalmente, mas como o seu sorriso de belos dentes brancos era amável quando agradeceu à madre Girolama por se ter dado ao cuidado de o levar até à sua pensionista! No quadro austero da murça branca, o rosto desta estava da cor das belas cerejas com que Péronnelle fazia as suas óptimas compotas. E quando se afastou, Fiora constatou que o seu passo era de uma ligeireza completamente nova.
Imóvel no esplendor dos seus arminhos brancos de neve e dos seus veludos púrpuras, o cardeal esperou que ela tivesse desaparecido para se virar para Fiora que se tinha levantado e depois o seu olhar vasculhou a luxuriante vegetação em redor do banco. Sem dúvida pouco satisfeito com o seu exame, disse subitamente:
Demos alguns passos, está bem? Podíamos ir até àquele tanque que estou a ver além. Sempre gostei de fontes. São, juntamente com os sinos, as vozes mais harmoniosas que a terra pode oferecer ao Senhor. Há lá um banco, onde poderemos conversar...
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