Àquela hora vespertina, as construções novas e velhas confundiam-se fraternalmente na mesma atmosfera cinzenta, sob uma bruma que baralhava tudo e Fiora acabou por renunciar a distinguir um caminho qualquer no dédalo por onde iam. Não sabia que cavalgavam na direcção do Circo Máximo, que passavam diante das ruínas ainda em pé do palácio de sete andares de Séptimo Severo para encontrarem, depois, as termas de Caracala, que erguiam para o céu negro um imponente fragmento mutilado da grande arquitectura imperial. A majestade daquele fantasma da antiguidade, vermelho e negro, forçou, mesmo assim, o seu interesse, e a jovem perguntou ao capitão o que representava aquilo. Ele respondeu, acrescentando:

Tereis o tempo todo para os admirar. Eis o convento de Santo Sisto, para onde vos levo: está mesmo em frente.

Com efeito, um pouco abaixo do caminho onde as grandes lajes romanas ainda afloravam, erguiam-se as paredes ocres que encerravam uma confusão de vegetação, construções baixas mas harmoniosas e o campanário quadrado de uma igreja. Quando a escolta fez alto, puderam ouvir o eco de um cântico religioso abafado pela espessura das paredes e também o coaxar das rãs no pântano vizinho.

Com o punho enluvado de couro, um dos soldados foi bater à porta onde se apercebia uma estreita abertura. O homem bateu várias vezes, até que um rosto delgado, enquadrado num véu branco, se mostrou por trás das grades.

Por ordem de Sua Santidade, o Papa, abri! ordenou o capitão, que se mantinha junto de Fiora. Trago aquela que vos anunciaram.

A estreita abertura fechou-se e a porta abriu-se lentamente, mas sem barulho, descobrindo a forma branca da irmã rodeira:

Que o Senhor tenha na Sua guarda o nosso Muito Santo Padre! murmurou, ela benzendo-se. Entrai, minha irmã! É verdade que vos esperávamos.

Fiora desceu da sua mula e avançou ao mesmo tempo que a escolta recuava, já que os homens não padres não tinham o direito de transpor a clausura. A voz da religiosa era doce e os cânticos que se ouviam de uma grande beleza. Uma mão pálida estendeu-se para Fiora que, muito naturalmente, estendeu a sua com a sensação de que se apaziguavam as suas angústias, desconfianças e medos. Seria aquele convento um asilo de paz?

CAPÍTULO VI

O JARDIM DE SANTO SISTO

O convento das dominicanas de Santo Sisto, que beneficiava da protecção muito particular do Papa, era o asilo preferido das raparigas nobres que tinham escolhido renunciar ao mundo, mas uma jovem viúva também podia encontrar nele refÚgio, ou uma mulher qualquer devidamente protegida. Vinda directamente do Vaticano, Fiora foi recebida com cortesia pela madre Girolama, mulher de uma certa idade, que devia ter sido de uma grande beleza e que, com toda a evidência, tinha o hábito do comando. Tinha olhos claros que olhavam a direito, uma voz sonora e musical e um sorriso pouco frequente mas caloroso, que ganharam de imediato a confiança de Fiora. Depois de ter sucessivamente temido ser entregue ao carrasco e ir suportar um calvário no fundo de uma prisão, era bom entregar-se nas mãos da madre Girolama.

Estais num estado lastimável constatou esta olhando para a sua nova pensionista com um olhar apiedado. Estais doente?

Não, madre, não creio. Mas, durante dois longos meses, viajei por mar, onde sofri muito. A alimentação fez o resto.

Estou a ver. Por esta noite, vou conduzir-vos ao vosso quarto, onde vos levarão uma refeição.

Poderei ter água para me lavar? Não me lavo decentemente há semanas.

Não ousava propor-vo-lo disse a prioresa com um meio sorriso. Já me aconteceu ter pensionistas que desdenhavam os cuidados do corpo e confesso que não as apreciava muito.

Trazer-vos-ão água e toalhas, mas, quanto à roupa, só vos posso oferecer um hábito de noviça.

Sentir-me-ei feliz por usá-lo. Quanto a estas...

Serão lavadas e, se não as quiserdes mais, dá-las-emos aos pobres. Enquanto estiverdes aqui, não precisareis delas. E agora vinde! Creio, na verdade, de que precisais, sobretudo, de repouso.

A cela que a acolheu dava para uma galeria de pequenas colunas que, abria directamente para o jardim. Com o seu estreito leito de cortinas brancas e o seu mobiliário simples, parecia-se muito com a que Fiora ocupara em Santa Lúcia de Florença, no tempo da catástrofe que lhe destruíra a vida. A irmã leiga que se lhe juntou acendeu uma pequena braseira para combater a humidade fria, permitindo-lhe lavar-se sem tremer demasiado, depositou uma rosa tardia numa pequena bilha de majólica verde e começou a falar alegremente enquanto desdobrava os lençóis frescos que destinava ao leito e sacudia os cobertores.

Assim, Fiora soube que ela se chamava irmã Querubina, nome pouco vulgar, mas cujo rosto rosado e bochechudo e olhos de um azul ligeiro justificavam. Era filha de um camponês dos arredores de Spolète, cujo senhor fizera com que Querubina entrasse para o convento ao mesmo tempo que a sua filha mais nova, Prisca, irmã de leite da pequena camponesa, que lhe era muito ligada. Há cinco anos que estava em Santo Sisto e sentir-se-ia muito feliz porque não imaginava que houvesse um lugar mais belo no mundo se a irmã Prisca não estivesse a definhar desde o último Verão sem que conseguissem encontrar remédio para o seu mal.

Não podemos fazer nada concluiu ela afastando as mãos desoladas. É o pântano que está ao lado do convento. No Verão há muitos mosquitos e os mosquitos transmitem a malária.

Em resumo, Santo Sisto era, talvez, o mais belo lugar do mundo, mas provavelmente, um dos mais insalubres. Graças a Deus, o Verão acabara há muito e, quando regressasse, Fiora esperava já ter deixado o convento. Mas, nessa noite, ao meter-se entre os lençóis frescos que cheiravam a bergamota, depois de ter comido pasta de manjericão e uma suculenta salada de frutas, a jovem pensou que, com ou sem mosquitos, aquele convento era, à sua maneira, um daqueles lugares privilegiados onde a dor fez tréguas e onde se pode ainda acreditar na misericórdia divina. A irmã Querubim estava um pouco decepcionada por não ter recebido nenhumas confidências em troca da sua história, mas Fiora desculpara-se invocando a sua verdadeira vontade de dormir e prometendo ser mais comunicativa numa outra ocasião.

A impressão deliciosa de se encontrar ao abrigo da maldade dos homens e de retomar plena posse de si mesma persistiu nos dias que se seguiram. Sob a direcção doce mas firme da madre Girolama, o convento parecia formar uma grande família, na qual cada membro parecia satisfeito com a sua sorte. Serenas, as dominicanas encontravam no trabalho, na música, na meditação e na oração a paz de espírito e a segurança de alma que só uma ordem espiritual pode dar. Os sons do exterior, o sussurro das intrigas e os gritos de agonia das vítimas que, todas as noites, a incessante e eterna querela das duas poderosas famílias que partilhavam Roma, os Orsini e os Colona, abandonava nos bairros ou nas sombras de uma ruela, quebravam-se contra as muralhas de Santo Sisto. Ali, cantavam-se louvores a Deus e trabalhava-se para Sua maior glória. Os ofícios eram de uma grande beleza. Fiora gostava de tomar parte neles e juntar a sua voz às das freiras que a tinham acolhido com uma gentileza simples sem lhe fazer demasiadas perguntas.

Sabia-se, claro, que ela era florentina, a única do convento, e souberam também, depois, que era viúva de um dos melhores capitães do Temerário. Mas o defunto duque de Borgonha era completamente desconhecido das freiras, com excepção de uma, que, após algumas hesitações, foi, uma manhã, ter com Fiora ao jardim.

A jovem fizera desse jardim o seu lugar de predilecção e quando o tempo o permitia instalava-se nele com um bordado, ou percorria lentamente os carreiros traçados cuidadosamente. Não tinha qualquer comparação com o da Casa das Pervincas, nem sequer com o da villa Beltrami, em Fiesole, de que Fiora tanto gostara. Este, a despeito do Inverno próximo que o privava da maior parte das suas flores, reunia, em redor de um grande pinheiro manso, um pequeno bosque de limoeiros, romãzeiras e loendros. Encerrado entre carreiros cobertos de pequenas placas de mármore que iam dar a tanques onde cantavam fontes, era uma confusão de plantas mediterrânicas das mais odoríferas, de onde saía, por vezes, uma moita de roseiras ou as longas plumas da giesta de Espanha. Evidentemente, havia uma horta sabiamente ordenada e plantada com grande rigor, protegida dos ventos por sebes de ciprestes, mas tudo o resto parecia obra de um jardineiro ao mesmo tempo genial e um pouco louco.

Sentada no banco que elegera desde o primeiro dia, com uma toalha de altar que oferecera a si mesma para bordar entre as mãos, mas na qual os seus dedos se afadigavam pouco, Fiora viu aproximar-se uma jovem religiosa. A jovem reparara nela na capela pela sua voz angélica e o seu rosto parecera-lhe vagamente familiar. Fiora sorriu-lhe para a encorajar a aproximar-se, porque a jovem era visivelmente tímida:

Desejáveis falar-me, irmã? perguntou ela.

Perturbei-vos e peço-vos perdão disse a pequena freira, corando violentamente.

Não devia estar no convento há muito tempo, porque usava, tal como Fiora, o hábito branco das noviças.

Dizei antes que me surpreendestes em flagrante delito de preguiça, porque, como vedes, sonhava. Vinde, sentai-vos neste banco!

Obrigada. Há vários dias que desejo falar-vos, mas tive que reunir toda a minha coragem. Disseram-nos, apenas, que sois uma donzela de Florença, casada com um grande senhor de Borgonha. E queria saber... Sereis, por acaso, a condessa de Selongey?

Sou disse Fiora espantada. Como descobristes?

Peço-vos, não penseis que cedo a uma vulgar curiosidade. Compreendereis melhor quando vos disser quem sou.