Pode ser que tenhais razão, Madonna disse o prelado um pouco embaraçado mas trata-se de negócios de Estado e, por maior que seja a afeição de Sua Santidade pela vossa pessoa...

Deixai-vos de rodeios, meu irmão! cortou o Papa novamente irritado. Ela não tem nada a ver com isto. Catarina, sabeis como sois querida ao nosso coração paternal, mas gostaríamos que ficásseis fora desta história que diz unicamente respeito à nossa política.

A política é uma coisa, a caridade é outra! disse audaciosamente a jovem. E eu estou a ver aqui, diante de vós, uma jovem dama, certamente nobre a despeito do traje grosseiro e, mais certamente ainda, extremamente fatigada.

Que ela se ajoelhe, então, em vez de nos desafiar! Vós ignorais tudo acerca dela, Catarina: é uma florentina, uma inimiga resoluta dos Pazzi, que nos são próximos, como sabeis. Por duas vezes, atravessou-se nos nossos desígnios e a sorte normal que lhe deveria estar destinada é a morte. Mas...

Fiora juraria que os olhos de Catarina brilharam ao ouvir o nome dos Pazzi. A jovem começava a juntar as ideias e já sabia quem tinha diante de si: a sobrinha do Papa, de facto, mas por aliança, Catarina Sforza, filha bastarda do duque de Milão, casada aos onze anos com Girolamo Riario, o sobrinho favorito do Papa talvez mesmo seu filho! um rústico de quem se dizia que fora merceeiro ou funcionário alfandegário e em cujas mãos ávidas Sisto queria colocar um reino cujo centro seria a Toscânia.

Mas continuou a jovem com audácia Vossa Santidade ainda não está certa se o seu negócio é mau?

Com efeito. No seguimento da resposta que monsenhor d’Estouteville receber de França, decidiremos o seu destino. Entretanto, vai ser conduzida ao castelo de Saint-Ange, ficando lá presa enquanto for essa a nossa santa vontade.

Se tencionais tratá-la como refém, não a deixeis apodrecer na palha da vossa prisão! Confiai-ma. Saberei guardá-la como deve ser e, pelo menos, será bem tratada, coisa que o Rei de França vos agradecerá se chegardes a acordo.

Era mais do que Sua Santidade podia suportar, mesmo da parte de uma jovem pela qual, com toda a evidência, nutria uma ternura particular. Endireitando-se, o Papa ordenou:

Mais uma vez, minha sobrinha, cessai de vos meterdes neste assunto! Será como eu disse: ela irá para a prisão... e vós, vós vindes jantar connosco.

Os guardas aproximavam-se. Então, para grande surpresa de Fiora, monsenhor d’Estouteville interpôs-se:

Um momento ainda, Santo Padre, por favor! Fechá-la-íeis no castelo de Saint-Ange se ela representasse a moeda de troca paga adiantadamente?

Não. Tinha decidido enviá-la para o convento de Santo Sisto.

Nesse caso, por que mudar de plano? Eu conheço bem o Rei Luís e a sua grande inteligência. Ele não é daqueles que dão a sua amizade a qualquer pessoa. Sobretudo quando essa amizade chega ao ponto de oferecer um castelo e terras na sua vizinhança imediata. E, a menos que Vossa Santidade pense em declarar guerra ao meu país, o que me dilaceraria o coração...

Declarar guerra a França? Sois louco, meu irmão! A Aranha Universal tem o melhor exército do mundo. As armas da Igreja não seriam suficientes.

Nesse caso, não mudeis nada no vosso primeiro projecto. Mandai conduzir Dona... Fiora? É esse o nome?

Que nome lindo! exclamou Catarina que, decididamente, não gostava de estar muito tempo calada. O que é que vem a seguir?

Beltrami, Madonna respondeu Fiora oferecendo à jovem uma reverência e o esboço de um sorriso. Podeis acrescentar condessa de Selongey

- Basta de vaidades mundanas! exclamou Sisto cuja tez morena estava de novo púrpura. Talvez tenhais razão, Estouteville. Enviemo-la para Santo Sisto! Ficará lá bem guardada e teremos sempre tempo de lhe cortar a cabeça ou de a enforcar Se o senhor dela não corresponder convenientemente às nossas expectativas. Que a levem e que digam ao capitão da guarda que a levem imediatamente. A superiora está à espera.

Foi necessário a Fiora um grande autodomínio para saudar o Papa, que só de muito longe se parecia com a ideia que ela tinha de um vigário de Cristo, mas ajoelhou-se quase aos pés do cardeal d’Estouteville.

Agradeço-vos a vossa caridade, monsenhor, e tende a bondade de rezar por mim e pela criança a quem me arrancaram. Juro-vos que sou digna da vossa protecção!

A mão extremamente branca, onde brilhava uma pesada safira, traçou sobre a sua cabeça inclinada o sinal da cruz e o olhar azul seguiu-a enquanto ela se virava para dona Catarina:

Obrigada, Madonna! Não vos esquecerei.

Por fim, a jovem colocou-se entre os soldados e voltou a atravessar a sala escoltada por eles. Chegava à soleira quando se apercebeu de que um grupo de homens, a maior parte jovens e ricamente vestidos, atravancava a antecâmara. Uma personagem de uma trintena de anos, mas já gorda, perorava no meio deles, acusando os guardas e o mestre-de-cerimónias.

Vós deixastes passar a minha mulher! Eu quero juntar-me a ela. Aliás, Sua Santidade está à minha espera!

Um momento, messer Girolamo, só um momento! pedia Patrizi. O Santo Padre disse formalmente que não queria ser perturbado por ninguém.

E a condessa Riario é ninguém, talvez?

Ninguém a pode impedir, monsenhor. O seu encanto dá-lhe direito a todas as indulgências.

Fiora desinteressou-se do debate e continuou o seu caminho. Entrevira Riario, a sua cabeça de traços pesados, de cabelos rígidos, a insuportável vulgaridade do seu comportamento que o seu traje bordado a ouro só agravava. Que a encantadora Catarina fosse casada com aquele pacóvio era um dos despropósitos que pareciam ser lei naquele palácio mais do que real.

O destino acabava de a fazer cair num mundo do qual ela não fazia a mínima ideia, mesmo quando morava em Florença. Aquele Papa sem grandeza, unicamente preocupado com a sua política tortuosa e os seus bens terrenos, do qual se podia perguntar que género de orações dirigiria a Deus se por acaso lhe acontecia orar! aquela corte povoada de homens de mão e de escravos, e até aquela bela Catarina, habituada a instalar-se nos degraus do trono papal, tudo servia para confirmar o que Inácio Ortega e a sua estadia no convento de Santa Lúcia, em Florença, o que ela suspeitara: aquela Roma, nos caminhos da qual penavam ainda tantos peregrinos, tanta gente pobre, sustentada pelo único e paciente desejo de rezar no túmulo do Apóstolo e de receber a bênção do soberano Pontífice, aquela Roma não estaria em vias de se transformar num covil de ladrões?

Pela sua parte, Fiora ia, em breve, constatar o que era um convento romano; sentia, apesar de tudo, uma espécie de alívio ao pensar que encontraria ali, pelo menos, a calma da clausura, o silêncio e a paz, tudo aquilo de que o seu corpo esgotado e o seu espírito dorido tinham necessidade. Mesmo em Santa Lúcia, conseguira dormir, e era de repouso que mais precisava depois do que acabava de suportar. Mais tarde, recomeçaria a pensar e a procurar o meio de beneficiar o menos possível da hospitalidade papal.

O grande Domingo desaparecera e ela sentiu pena. Ele representara para ela o apoio que agora lhe ia faltar. No pátio do Vaticano, fizeram-na montar uma mula que um grupo de soldados rodeou de imediato. O seu chefe parecia-se muito com Montesecco, com quem, aliás, ela o viu falar por um instante. Saberia, mais tarde, que os dois homens eram irmãos, se bem que muito diferentes.

A noite chegara. Uma noite húmida e fria, que mudava o aspecto das coisas e perturbava as chamas dos archotes nas mãos dos servidores. Passado o grande portal, mergulharam nas trevas exteriores, mas os olhos de Fiora acostumaram-se depressa e ela apercebeu que a noite era menos sombria do que pensara. As únicas luzes ainda visíveis iluminavam as túnicas, com as armas do Papa, à cabeça da escolta. A jovem esforçou-se por descortinar o melhor possível o caminho que a faziam seguir, precaução indispensável no caso de uma possível fuga.

Depois da praça de São Pedro, pouco maior do que a praça de uma aldeia, desfilaram diante de alguns edifícios, à porta dos quais ardiam potes de fogo dentro de jaulas de ferro e depois diante de uma fortaleza constituída essencialmente por uma enorme torre cilíndrica, no topo da qual se adivinhava a silhueta gigante de um anjo de asas abertas. Em frente, uma ponte, guarnecida de lojas com as persianas fechadas, passava por cima do Tibre, cuja água negra era quase invisível. Em seguida mergulharam num dédalo obscuro, que parecia ser um enorme estaleiro de construção separado por terrenos baldios.

Abandonada durante muito tempo pelos papas em favor de Avinhão, a Roma dos Césares e os seus monumentos gigantescos ter-se-ia, certamente, esboroado tranquilamente até à desaparição total se certos Papas como Nicolau V e, sobretudo, Sisto IV, não tivessem tomado nas próprias mãos vigorosas o seu destino, obrigando os arquitectos que reconstruíam as igrejas a procurarem a pedra fora da cidade em vez de irem buscá-la aos velhos edifícios vizinhos, transformados, assim, em confortáveis pedreiras.

Evidentemente, com o regresso dos Papas, a riqueza afluíra de novo a Roma. Os Pontífices construíam na colina vaticana para substituir o antigo palácio Latrão destruído por um incêndio e, em redor deles, cardeais e altos funcionários apressavam-se a construir palácios maiores e sobretudo mais ricos do que os das antigas famílias que tinham continuado a viver em Roma. Mas essas construções todas faziam-se sem ordem, Roma não comportava senão algumas praças e, para além de ruelas caprichosas, uma ou duas artérias algo largas e arejadas como o Corso, assim chamado porque servia antigamente para corridas de cavalos, de burros... e de judeus. Sisto IV, que decidira fazer daquele imenso lugar perigoso e arruinado, onde dominavam as ruínas, uma cidade civilizada, ordenada, de ruas pavimentadas com outra coisa que não pedras redondas do rio, tinha muito que fazer para edificar uma capital à medida das suas ambições. Depois de ter construído uma ponte sobre o Tibre, o hospital do Santo Espírito, igrejas e conventos, cobria agora Roma de estaleiros, abatia os casebres e limpava os monumentos antigos, entregues à hera e às ervas daninhas.