Chega! Eu sei quem tu és, mulher! Por tua causa, um dos nossos melhores servidores, um santo homem, suporta um dos mais duros cativeiros numa prisão desumana...

Se é frei Inácio Ortega que Vossa Santidade canoniza assim, com tanta ligeireza, o Paraíso deve ser de acesso singularmente mais fácil do que me tinham dito. Portanto, basta matar um Rei para que se tenha acesso a ele sem mais obstáculos? Frei Inácio tentou assassinar o Rei Luís de França e, se eu consegui impedi-lo, devíeis, Muito Santo Padre, agradecer-me: o sangue dos Reis teria deixado uma mancha indelével na brancura do Cordeiro, de quem vós sois o representante...

Que história é essa? exclamou Sisto cujos grossos e nervosos dedos reduziam a fio os pompons da sua poltrona. Frei Inácio foi incumbido de obter a libertação de um príncipe da Igreja retido numa dura prisão, no desprezo pelo menor dos direitos, pelo Rei Luís. Ele não é nosso servidor, antes da Rainha Isabel de Castela, que o reclama. Além do mais, não é a primeira vez que te encontramos no nosso caminho da verdadeira fé e da honra do Cristo Rei! Já em Florença, há dois anos, causaste horror e escândalo com as tuas torpezas.

É torpeza querer defender a memória de um pai assassinado? E, se houve escândalo, fui muito menos responsável do que aqueles que, diante da criança indefesa que eu era, acumularam armadilhas e ardis. Era para glória da Rainha Isabel que frei Inácio, ligado aos Pazzi, conjurava para a perda dos Médicis?

O som das alabardas batendo nas lajes do solo cortou a sátira violenta em que Fiora estava lançada, fora de si, decidida a jogar tudo por tudo. Uma nova personagem fazia a sua entrada, uma entrada singularmente majestosa, cuja progressão ela seguiu com uma espécie de admiração. Se alguém merecia o título de Príncipe da Igreja, era aquele homem que acabava de entrar e que passava de um tapete para o outro, num restolhar de folhas mortas, o esplendor do seu traje púrpura.

Que era idoso ninguém duvidava, mas aos setenta e cinco anos, Guillaume d’Estouteville, cardeal camerlengo e arcebispo de Rouen, conservava uma juventude que muitos lhe invejavam, a começar pelo próprio Papa. Grande, magro, distinto até à ponta dos dedos das mãos que tinha admiráveis, verdadeiras mãos de prelado, era o cardeal mais rico do Sacro Colégio, e o mais faustoso. Arrancara à ruína certas igrejas e espalhara a sua riqueza por inúmeros lares miseráveis porque era, também, um homem de bem, e Roma devia-lhe isso. Quanto ao Papa, este respeitava, naquele antigo monge Beneditino saído de uma grande família normanda, o sangue real de França a avó materna do cardeal era irmã do Rei Carlos V a vasta cultura e o espírito desligado do diplomata. Dotado, ainda por cima, de uma grande eloquência e de ideias nitidamente avançadas para o seu século, Estouteville, no decurso de uma legação em França, reformara profundamente a Sorbonne e reclamara a revisão do iníquo processo de Joana d’Arc. A sua posição em Roma era suficientemente excepcional para que o próprio Papa lha invejasse.

As suas pernas não deviam causar-lhe a menor das preocupações a despeito da idade, porque se ajoelhou para beijar o anel com uma ligeireza perfeita, mas, ao levantar-se, foi sobre Fiora que pousou o olhar interrogativo dos seus olhos, que tinham a cor cândida das flores do linho. Do fundo da sua poltrona vermelha, Sisto IV grasnou:

Olhai para esta mulher, meu irmão! Foi por causa dela que vos pedimos que viésseis aqui. Conhecei-la?

De todo! disse o cardeal, que acrescentou com um meio sorriso: Se fora o caso, creio que me recordaria. Dir-me-eis, Muito Santo Padre, quem é?

Um ser tanto mais nocivo quanto perigoso. Esta Fiora Beltrami, que foi amante do último duque de Borgonha, é-o agora do vosso Rei, Luís de França!

O estupor e a indignação varreram de repente, do espírito de Fiora, toda a prudência, assim como toda a noção de respeito para com tão altas personagens.

Que história é essa? exclamou ela. Eu nunca fui amante do Temerário e muito menos do Rei.

Os relatos dos nossos espiões são, no entanto, formais grunhiu Sisto IV. Seguistes, sim ou não, entre outros seguidores seus, o defunto duque desde o primeiro cerco de Nancy até à sua morte?

Sim, é verdade. Mas era sua refém, porque, apesar de ser casada com um dos seus capitães, ele via em mim uma espia do Rei de França.

Curioso! Uma refém, a sério? No entanto, nós ouvimos dizer que ele disse a essa refém, antes do último combate, ternos adeus, e que lhe deu a sua jóia preferida?

Perdoai-me por intervir, Santo Padre disse o cardeal francês mas esta mulher não acaba de dizer que é casada com um capitão borgonhês?

Vai fazer três anos, no começo do ano que vem, que casei em Florença com o conde Philippe de Selongey, embaixador junto de Monsenhor Lourenço. O casamento, primeiro, foi secreto, mas depois foi conhecido de todos.

Onde está o vosso marido, nesse caso?

Morto, Eminência! Executado em Dijon em Julho último por ordem do Rei... desse Rei de quem ousam dizer ser eu amante.

Um sorriso carregado de veneno apareceu nos lábios do Pontífice, ao mesmo tempo que o seu olhar duro se iluminava:

Que inverosimilhanças! Faço de vós juiz, Estouteville. A minha gente foi buscar esta dita dama borgonhesa a um pequeno domínio próximo do castelo de Plessis-lès-Tours, domínio esse que lhe foi oferecido pelo Rei.

É verdade disse Fiora erguendo o tom. O Rei Luís deu-me esse solar, onde ainda está o meu filho recém-nascido, a minha governanta e os meus servidores, como recompensa por um serviço que lhe prestei.

Grande serviço, de facto! rangeu o Papa. Por causa desta criatura imunda, um dos meus núncios apodrece numa dessas jaulas de ferro desumanas de que o Rei Luís tanto gosta. E está na companhia do nosso infeliz irmão, o cardeal Balue.

Eu impedi, de facto, o vosso dito núncio de assassinar o Rei. Quanto ao vosso Balue, não sei nada dele, senão que é um traidor.

Tanto barulho por causa de uns sinais de amizade cedidos a Borgonha! O duque está morto. Portanto, já não há razão para conservar o nosso irmão na prisão e foi por isso que te raptei, filha da iniquidade: se Luís XI te quiser rever viva um dia, terá que libertar Balue e, sobretudo, frei Inácio Ortega. Enfim, terá de nos dar todas as garantias de que mudará de política quanto a Florença, cujo senhor só sonha em se rebelar contra a nossa autoridade.

Florença nunca reconheceu outra autoridade que não a dos seus superiores e daqueles que lhe deram riqueza, honra e liberdade: os Médicis!

Ouçam-na, mas ouçam-na! berrou o Papa, erguendo-se nas suas pernas doridas, o que aumentou a sua cólera. Esta rapariga é uma verdadeira princesa! Ousa falar de direitos, de liberdade e discutir política connosco? Cardeal, tratai de enviar rapidamente um emissário a França para dar a conhecer as condições de resgate que vos vamos ditar. Esta mulher esperará a resposta na prisão.

Se é assim, podeis mandar executar-me imediatamente disse Fiora com amargura. O Rei nunca aceitará as cláusulas do vosso contrato, Santo Padre! Aliás, talvez mesmo, a esta hora, ele já não tenha por mim a menor das amizades: dei-lhe a conhecer, o meu desejo de lhe devolver o meu solar, porque o meu filho não poderá crescer e ser educado nas terras daquele que ordenou a morte do seu pai.

Queres dizer que o Rei não erguerá um dedo para te salvar?

Exactamente. Vossa Santidade, ao mandar-me raptar, fez um mau negócio.

Naquele momento a porta da sala abriu-se e antes que monsenhor Patrizi a tivesse podido anunciar, entrou, num passo rápido, uma jovem que avançou ousadamente para o trono. Muito jovem, na verdade, mas encantadora com os seus cabelos cor de mel e os olhos cor de aventurina, estava vestida com tanta magnificência que Fiora não pôde deixar de a admirar. Nada mais elegante do que aquele vestido de cetim negro bordado a ouro que abria para uma saia de cetim carmesim. Uns enormes rubis de um vermelho-profundo brilhavam-lhe no pescoço, no corpete, nos agrafos das amplas mangas e na coifa que segurava a massa dos seus cabelos. Sobre os ombros trazia um grande manto de veludo verde-campo forrado de zibelina negra. Nas suas mãos e orelhas brilhavam outros rubis.

A expressão de cólera do Papa apagou-se como que por encanto e transformou-se num amável sorriso quando a bela criança se aproximou para lhe beijar a mão e depois a face, antes de se instalar familiarmente numa das almofadas dispostas nos degraus do estrado, onde o rio cintilante do seu vestido se instalou.

Minha sobrinha reprovou-a docemente o Papa quando perdereis esse hábito de entrar aqui como um furacão sem vos preocupardes com o protocolo?

Nunca, creio! Se vos desagradasse, não teríeis esse olhar vivo e esse sorriso caloroso que tanto gosto de ver em vós declarou ela com um sorriso radioso que enviou, depois, ao cardeal d’Estouteville, a quem estendeu a mão sem cerimónia.

Estais mais bela do que nunca, Madonna disse este galantemente.

Estou, não estou? disse ela com uma satisfação infantil. Ninguém diria que espero um filho para a Primavera!

Enquanto falava, os seus olhos fixaram-se em Fiora. Por um instante, os dois olhares engancharam-se, fundiram-se. Não havia qualquer desdém no da sobrinha do Papa, nem Fiora pensou ler neles qualquer simpatia.

Tenho outro defeito acrescentou tranquilamente a recém-chegada. Os meus ouvidos são demasiado finos e ouço muitas vezes coisas que não me são, forçosamente, destinadas. Além disso, sou deploravelmente curiosa e acontece que essas mesmas coisas me intrigam mais do que as outras.

E isso quer dizer?

Que gostaria de saber, por exemplo, por que razão Vossa Santidade mandou raptar esta jovem dama? Onde a prendeu? E por que razão representa ela um negócio tão mau? O Rei em questão não será o vosso, monsenhor d’Estouteville?