Devido ao facto de estar quotidianamente com o grande núbio, Fiora acabara por saber certas coisas acerca dele. Primeiro, gozava da confiança do Papa, apesar de ser um escravo ligado à sua casa particular. O Santo Padre apreciava a sua força, a sua sabedoria e o seu gosto pelo silêncio. Se o enviara juntamente com Montesecco, fora para ter a certeza de que a prisioneira teria uma hipótese de chegar ao seu destino sem ser molestada em demasia.

É estranho disse então a jovem. Quando me salvaste dele na barca, ele acabava de me ameaçar, dizendo que, se não lhe obedecesse em tudo, me meteria no porão e entregar-me-ia aos seus homens que eram dez, dos quais um tártaro e um negro. Há outro negro?

Não. Eu sou o único e isso foi pura fanfarronice. Queria aterrorizar-te desde logo.

Nesse caso, por que é que ele deixa que sejas tu a tratar de mim? Ele não tem medo que...

Fiora ouviu, pela primeira vez, Domingo rir. Um riso à sua medida, que fez vibrar os pequenos caixilhos da janela.

Não tenho vergonha nenhuma de confessar disse ele, então. Há dez anos, os turcos privaram-me da minha virilidade. Uma provação cruel, mas à qual devo bastantes compensações: por exemplo, ter sido oferecido ao Papa pelo senhor Ramon Zacosta, grande mestre dos cavaleiros de São João de Jerusalém. Foi ele que me baptizou com o nome de Domingo depois de enforcar, em Rodes, o pirata que me tinha cativo na sua galera com outros escravos. Então, o meu novo senhor ainda não se tinha tornado no Soberano Pontífice, mas tratou-me bem porque eu sou letrado. E eu sou-lhe totalmente devotado.

Então, sabes por que me mandou raptar? Tenho assim tanta importância para que ele envie a França um bando de malfeitores e, sobretudo, um servidor do teu valor?

Eu não sei nada, senão que ele nos prometeu ouro se te levássemos para Roma. Mas as suas ordens foram formais: não te podíamos fazer qualquer mal e, repito, Montesecco quis meter-te medo. Tu és bela e ele esperava, fazendo de ti sua amante, conseguir um golpe duplo.

Muitas vezes, durante a interminável viagem, Fiora dera a volta aos seus pensamentos sem conseguir encontrar-lhes um sentido e, por fim, acabara por renunciar. A clausura forçada alterou-lhe a saúde, se bem que Domingo abrisse a janela de manhã, à tarde e sempre que o tempo o permitia, para que o ar do mar pudesse refrescar a cabina. A alimentação aleatória e a falta de exercício, juntamente com as recordações dos que deixara para trás, faziam o resto e quando, enfim, pôde abandonar o navio, Domingo pediu que ficassem dois ou três noites no castelo papal de Civita Vecchia para que a prisioneira se recompusesse um pouco da travessia: ela tinha um aspecto assustador e o Papa não ficaria contente.

Obteve sem dificuldade esse favor, porque Montesecco e o seu bando também não estavam muito frescos. E só dois dias depois de ter desembarcado é que o núbio fez subir Fiora para a liteira com as armas papais que a devia conduzir a Roma.

A despeito da sua situação dramática, esta sentira como que um frémito de alegria ao pisar, de novo, solo italiano. Ao longo das vinte léguas que separavam do mar a antiga cidade dos Césares e mal-grado as rajadas de chuva que alagavam os campos, a jovem respirou com uma espécie de avidez o ar que soprava dos Apeninos. Aquelas nuvens, que voavam tão baixo, tinham, talvez, sobrevoado Florença, a sua Florença jamais esquecida, jamais renegada, da qual a separavam umas setenta léguas, mas a região plana que atravessavam não evocava, em nada, as doces colinas toscanas. Era uma região de pântanos glaucos, que sob o céu cinzento parecia feita de mercúrio, pequenos bosques e, de vez em quando, a silhueta imponente e negra de um grande pinheiro. Aquela região era a região da febre que regressava todos os Verões e Fiora pensou que, mesmo com sol, devia exalar uma profunda melancolia. Assim, foi com um certo alívio que viu perfilarem-se, ao longe, as formas amplas dos montes Albano. Roma, anunciada já por numerosas ruínas antigas, não estava longe.

Agora, sentada num tamborete de veludo, à janela de uma pequena antecâmara pintada com frescos e cujo chão de mármore estava, em parte, coberto por um tapete de Korassan, a jovem via, no pátio que acabava de atravessar e na verdade, sem qualquer interesse, o vaivém dos soldados armados de longas alabardas e uniformes onde sobressaíam as samarras púrpuras ou violetas e até trajes mais modestos. Um profundo sentimento de despropósito enchia-lhe o espírito. Que fazia ela ali, naquele palácio cuja sumptuosidade se dizia oferecida a Deus, mas que se dirigia, sobretudo, a um homem cujo poder, era verdade, se estendia aos limites da Cristandade. O seu destino ia depender daquele homem, do qual estava prisioneira. Nem sequer sabia porque a tinham feito percorrer um bom terço da Europa.

Montesecco ia e vinha diante dela, escavando a lã do tapete com tacões impacientes. Refeito dos seus males, tinha pressa de tocar no preço do seu feito, mas os olhares triunfantes que, de tempos a tempos, lançava sobre a sua prisioneira deixavam esta gelada. Aquele rufia não tinha qualquer interesse para ela. Tudo o que a jovem desejava era dormir, dormir até mais não, fosse ele no fundo de uma tumba no caso de o Papa a ter mandado raptar para a matar, já que lhe prestaria um serviço se lhe permitisse juntar-se aos dois homens que amara: o seu pai e Philippe.

O grande e pálido mestre-de-cerimónias, que parecia deslocar-se flutuando como uma alga na água, pôs fim à espera. O Papa esperava-os. Enquanto os conduzia na direcção da porta coberta de placas de prata cinzelada, flanqueada por dois guardas, Patrizi lançou sobre Fiora um olhar descontente:

Vós não estais em estado de ser apresentada ao Santo Padre! disse ele com desdém. Não podíeis ter feito alguma toilette antes de vir?

Ela veio como estava cortou Montesecco. As minhas ordens eram trazê-la logo que chegasse. Podes estar certo que Sua Santidade não está à espera de a ver coberta de cetim e brocados.

Quando as portas se abriram, Fiora pensou que, desde a grande tenda do Temerário, não via nada tão faustoso como aquela sala onde acabavam de a introduzir. A decoração, para além dos frescos nas paredes, do tecto em madeira dourada, dos estuques e mármores das consolas e das molduras, constava de panos de seda bordados a ouro dispostos por baixo dos quadros e, sobre o chão de mármore de uma brancura deslumbrante, numerosos tapetes orientais. Cuidadosamente alinhados, os tamboretes, as poltronas e as almofadas dispunham-se em redor da espécie de trono onde estava sentado o Sumo Pontífice. Mas assim que pousou os olhos nele, a jovem não viu mais nada. Um só olhar fora suficiente para compreender que não podia esperar dele qualquer bondade. Agachado no fundo de uma grande poltrona de veludo vermelho com pregos de ouro e ornamentado com grandes pompons, o capelo escarlate sobressaindo na brancura do seu traje, de sobrolho agressivo e olhar venenoso, parecia-se com um qualquer batráquio irritante saído de um conto fantástico. Sob a arcada rectilínea das sobrancelhas grisalhas, as pupilas tinham o reflexo surdo das águas estagnadas de um pântano, chocadeira incessante de animais viscosos.

Ide ajoelhar-vos diante do último degrau do trono! murmurou Patrizi. Em seguida, prostrai-vos.

Aquele que eu vejo é o Sumo Pontífice, ou um ídolo bárbaro? ripostou a jovem a meia-voz. Eu ajoelho-me porque o protocolo assim o exige, mas não faço mais nada.

Num passo como que por milagre singularmente firme, a jovem caminhou na direcção do trono de Pedro. Uma voz de bronze, que tinha as sonoridades de um zangão, acolheu-a a meio do caminho:

Filha da iniquidade! Como ousas aparecer perante Nós com esse passo seguro, quando devias rastejar na poeira para tentar desviar a Nossa cólera?

Ao ouvir aquilo, Fiora parou onde estava:

Ninguém me ensinou a rastejar, Muito Santo Padre e no entanto já me aconteceu achar-me diante dos tronos dos príncipes mais poderosos deste tempo. Eu sei o que devo ao Vigário de Cristo, mas sou uma dama nobre e não uma escrava acorrentada apesar do tratamento que sofro há dois meses, no maior desprezo pelos meus direitos e pelo facto de me encontrar nas terras pessoais do Rei de França. Portanto, sob a sua protecção.

Sem apressar o passo, a jovem prosseguiu o seu caminho através do arquipélago rutilante de tapetes. Então, chegada ao primeiro dos degraus, pegou numa almofada de brocado e colocou-a sob os joelhos antes de se deixar cair.

Posso saber articulou ela calmamente a que devo a honra de me ajoelhar, a esta hora, perante Vossa Santidade?

Aquela coragem e audácia tranquilas pareceram desarmar por um instante a cólera de Sisto, cólera essa artificial, aliás, sob a qual ele se esforçava por esconder a alegria que sentia por ver assim, reduzida à sua mercê, a mulher em quem ele via uma inimiga irredutível. Por um momento ele olhou para ela, descontente por ver tanta rigidez naquela forma delgada, feminina, visivelmente esgotada pela longa viagem. Sob o traje grosseiro, o corpo parecia diáfano e o rosto tinha a palidez do marfim, mas o porte continuava altivo e o Papa teve de confessar a si próprio que poucas princesas seriam capazes de manter, diante dele, aquela confiança orgulhosa.

Tu cantas muito alto para uma rapariga nascida na palha podre de uma prisão!

Esbofeteada por aquela evocação do seu infeliz nascimento, Fiora sentiu-se corar, mas não enfraqueceu:

Estou surpreendida disse ela por o soberano Pontífice saber a esse ponto a história de uma mulher que não devia ter qualquer interesse para o sucessor de São Petro. Nascida na prisão, sem dúvida, mas nobre, mesmo assim, e fui, além disso, criada por um dos maiores homens de Florença. De modo que...