Aproveitando uma acalmia, o arquitecto Dolci culpou o mau tempo, fonte de numerosas doenças que se abatiam sobre os seus operários. Chega! cortou Sua Santidade. Tu tens sempre desculpas na ponta da língua, signor Dolci. Mas eu quero a minha capela e quero-a depressa. Estou farto de esperar!
Que Sua Santidade tenha um pouco mais de paciência. As janelas acabam-se sem que Ela se dê conta e espero que Ela fique satisfeita. Tão altas e tão largas, não são nobres e de uma grande beldade?
Subitamente, o Papa desatou a rir:
É mesmo teu, isso! Eu ralho-te merecidamente e tu arranjas-te para me arrancares cumprimentos. As tuas janelas são belas, concordo, mas um telhado por cima delas dar-me-ia mais prazer. Estou cansado de ver cair a chuva na minha capela.
As duas personagens que acompanhavam o Papa tinham ficado um pouco para trás, ao abrigo de uma porta. Uma era o tesoureiro do Vaticano, um financeiro retorcido de nome Meliaduce. A outra era o cardeal vice-chanceler, uma personagem notável, merecedora de que nos detenhamos nele por um instante. Era um prelado de feições belas e de compleição vigorosa, muito moreno de pele sob uma coroa de cabelos de um negro de azeviche, com grandes olhos escuros à flor do rosto. O longo nariz curvo, de narinas sensíveis, a boca bem debruada mas espessa e sensual denunciavam o pândego, ao mesmo tempo que o esplendor um pouco vistoso demais do hábito púrpura de arminho, as fortes mãos morenas e a tez cor de azeitona o denunciavam como estrangeiro. De facto, o cardeal Rodrigo Bórgia vira a luz do dia em Espanha, em Jativa e lá teria ficado, talvez, se o seu tio, arcebispo de Valência, não tivesse sido elevado, alguns anos mais cedo, ao pontificado supremo sob o cognome de Calisto III e não tivesse levado consigo para Roma a família inteira. Este Rodrigo, hábil e enigmático, soubera conduzir a sua barca melhor do que os outros e era agora, aos quarenta e sete anos, o terceiro dignitário da Igreja. Sem contar que era, logo a seguir ao cardeal francês d’Estouteville, o mais rico do Sacro Colégio e provido de numerosos bens.
A cena entre o Papa e o seu arquitecto parecia diverti-lo. Inclinou-se para o seu vizinho e murmurou:
Sabeis, messer Meliaduce, como vai terminar isto? Dolci Vai chorar que tem falta de dinheiro, que o travertine e o carrara não cessam de encarecer, que o cobre está fora de preço e que, em resumo, não pode fazer mais com o que recebeu. O Santo Padre vai clamar um pouco, vai chamar-vos e pedir-vos-á que abrais os cordões à bolsa.
Mas ela está quase vazia, a minha bolsa! Onde quer Vossa Eminência que eu vá buscar o dinheiro? Ainda ontem o sobrinho de Sua Santidade, o conde Girolamo, me exigiu três mil ducados.
Não esperais amolecer-me com uma miséria dessas? Haveis de encontrar o vosso dinheiro, meu amigo. Aliás, aí está! Chamam-vos! Como vedes, tinha razão.
Ao mesmo tempo que o tesoureiro o deixava, de dorso curvado e arrastando os pés, para se juntar ao seu senhor, o cardeal foi examinar os trabalhos em curso com olhar conhecedor. Tinha o gosto do fausto e, partilhando o do Papa pelos edifícios, aprovava os numerosos trabalhos que este empreendia um pouco por toda a Roma, da qual queria ressuscitar o esplendor.
Deixando o seu tesoureiro com o seu arquitecto, o Papa reuniu-se a Bórgia:
Regressemos! As pernas doem-me cada vez mais.
Vossa Santidade devia repousar um pouco.
Estou demasiado velho para repousar. Na minha idade não há tempo a perder. Conduz-me à biblioteca! Nada como uma hora de leitura para acalmar os humores.
Solidamente amparado pelo seu vice-chanceler, Sisto dirigiu-se lentamente para as grandes salas onde tinha instalado a Biblioteca vaticana, a sua obra mais preciosa até àquele dia e, à medida que se aproximava, o seu humor melhorava. O antigo monge franciscano, pobre e sem nascimento, que fora Francesco della Rovere, não amava nada como as letras e as ciências, com excepção do ouro e do poder. Professara sucessivamente nas universidades de Pavia, de Florença, de Bolonha e de Siena; conservara uma vasta erudição e um grande apetite pelo saber, virado, sobretudo, para o estudo dos astros. Os melhores momentos do seu dia eram passados no meio dos tesouros que tinha acumulado e na companhia do sábio humanista Platina, de quem fizera seu guardião.
Quando os guardas abriram diante do Papa e do cardeal as portas da longa galeria inteiramente forrada de armários pintados e dourados e mobilado com grandes mesas onde se amontoavam manuscritos e instrumentos de óptica, Platina avançou ao seu encontro, apoiando a sua perna defeituosa numa bengala. Quis ajoelhar-se para beijar o anel do Pescador, mas Sisto impediu-o, sabendo que qualquer genuflexão era para ele um sofrimento e segurou-o familiarmente pelo braço para o levar na direcção de uma estante. Ali estava pousado um grande livro encadernado a veludo carmesim e com ferragens de prata, que tinham libertado da corrente que o ligava a um dos armários:
Vejo que tiraste o Santo Agostinho. Mostra-me depressa essas passagens que te pareceram tão espantosas!
Com um pequeno gesto desenvolto tinha despedido o cardeal Bórgia, mas estava escrito que, naquele dia, o Papa não teria direito ao seu divertimento. No momento exacto em que Bórgia ia transpor a porta, uma nova personagem deslizou por ela: o mestre-de-cerimónias da corte pontifícia, Agostino Patrizi, cujo rosto pálido parecia sofrer de perpétuas ofensas. Imbuído das regras de uma etiqueta severa, nas quais acreditava mais do que na lei divina, Patrizi tinha o génio de incomodar o Papa nos momentos mais inoportunos, mas era-lhe tão cegamente devotado que este lhe perdoava muitas coisas, incluindo uma das suas célebres cóleras, quando o mestre-de-cerimónias passava dos limites. Ao que se arriscava naquele dia.
O que é que tu queres? atirou-lhe o Papa quando o viu. O outro ajoelhou-se de imediato:
Muito Santo Padre balbuciou ele há já várias semanas, dissestes-me que vos prevenisse, estivésseis onde estivésseis, se Gian-Battista de Montesecco viesse ao palácio.
Sisto virou de imediato as costas a Santo Agostinho:
Ele está aqui?
Sim, Vossa Santidade!
Suportara a tortura sob o pontificado de Paulo II, um Papa que não gostava dos livros e menos ainda de quem os escrevia.
Sozinho?
Não. O vosso escravo núbio, Domingo, está com ele... e também uma mulher.
Que género de mulher? Não faças essa cara! Descreve-a! O ar ofendido de Patrizi era, com efeito, mais evidente do que nunca. O homem ergueu os olhos para o céu e suspirou:
Jovem, morena... e creio que se pode dizer que é muito bela. Pelo menos, seria se não tivesse um ar tão cansado.
Quem diria? murmurou Bórgia entredentes. Agora brincas aos alcoviteiros, monsenhor? Onde a desencantaste, essa?
Desdenhando responder, Patrizi fez o gesto de afastar uma mosca inoportuna e avançou para o Papa, que coxeava ligeiramente na sua direcção.
Eles que esperem na sala do Papagaio, cujas portas mandarás fechar cuidadosamente. Ah! Já me esquecia: manda prevenir o cardeal camerlengo, mas ele que venha só! Dá-me o teu braço, Rodrigo!
Bórgia fez-se tanto menos rogado quanto aquele preâmbulo o atraíra, sentindo-se cheio de curiosidade. Já que se tratava de uma mulher, e sobretudo de uma desconhecida, o apetite proverbial do belo cardeal espanhol manifestava-se. Sempre ”maravilhosamente disposto para o amor”, mantinha, para além de uma amante da qual tinha dois filhos, numerosas cortesãs que contribuíam para o prazer dos numerosos palácios que possuía na Zecca. Farejando, por outro lado, um odor de mistério porque Montesecco, o homem de mão do Papa, desaparecera do Vaticano há vários meses, teria levado Sua Santidade nos braços se Esta tivesse manifestado a intenção.
Infelizmente, para sua decepção, uma vez chegado aos seus aposentos, Sisto IV agradeceu-lhe hipocritamente a sua ajuda, deu-lhe a sua bênção e marcou encontro para o dia seguinte.
1 Cardeal da Cúria Pontifícia, que administra a Justiça e o Tesouro, preside à Câmara apostólica e governa a Igreja quando o Trono Sagrado está vago.
Dizer que Fiora estava cansada era um eufemismo. A jovem nunca conhecera antes semelhante lassitude, mesmo depois do nascimento daquele bebé em quem não ousava pensar para não aumentar o desespero, nem na vida estafante que conhecera no ano anterior ao seguir os passos do Temerário.
Durante semanas, a carraca traçara o seu difícil caminho ao longo das costas de França, de Espanha e de Portugal levada pelas tempestades do equinócio, durante as quais a prisioneira pensara morrer cem vezes. Ao passar pelas antigas colunas de Hércules, a sorte de um nevoeiro súbito livrara-os de um pirata mouro e só uma vez entrado no Mediterrâneo é que o corajoso navio conhecera um pouco de calma. Mas o Outono estava à porta e fora preciso lutar contra uma nortada furiosa que se levantara ao largo da Córsega e o atirara para a costa, felizmente suficientemente perto de Civita Vecchia para que pudesse entrar no porto, evitando, assim, o naufrágio.
Fiora passara todo esse tempo fechada na sua cabina sem ver ninguém, à excepção de Domingo, que velava por ela com uma constância que acabara por comovê-la. O negro levava-lhe de comer, lavava-lhe a roupa e até lhe contava as pequenas coisas que aconteciam a bordo do barco. Evidentemente, tratara-a do enjoo que a deixara sem forças no fundo da sua cama, desejando perdidamente que aquele navio infernal se afundasse para acabar com o seu suplício. Mas, após duas boas semanas, as náuseas tinham desaparecido e Fiora, que não pudera, durante esse tempo, meter no estômago outra coisa que não chás de menta frios e açucarados, pôde alimentar-se um pouco melhor. Os caldos de cereais e a carne seca não eram susceptíveis de lhe abrirem o apetite, mas era preciso viver. Uma curta escala que fizeram em Cádiz permitiu embarcar víveres frescos, ovos e laranjas e prosseguir a viagem sem grandes estragos. Aliás, Fiora não era a única vítima do enjoo. Montesecco sofrera dele severamente e, por isso mesmo, só visitara duas vezes a sua prisioneira. Do que ela não se queixara.
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