- Obrigada murmurou ela e obrigada também pelo que fizestes há um instante. Dizeis-me quem sois e qual...

Não fales! Dorme!

Como posso dormir na situação em que me encontro?

Não compreendeis...

Vais dormir. Com isto.

O negro tirou da sua túnica uma pequena caixa de prata, fazendo sair dela uma pílula que meteu na boca da jovem. Em seguida, pegando num jarro de água pousado a um canto, fê-la beber um gole.

Dorme! repetiu ele Domingo fica aqui.

A droga devia ser forte porque, mal a engoliu, Fiora sentiu o corpo distender-se sob a influência de um torpor que não era nada desagradável. Antes de fechar os olhos, teve tempo de ver o negro sentar-se de pernas cruzadas perto da estreita abertura por onde entrava o ar e fazer deslizar por entre os dedos as contas de um pequeno rosário de âmbar.

Quando reabriu os olhos após um tempo impossível de avaliar, a estreita cela de madeira estava iluminada por um raio de sol vermelho e horizontal que anunciava o ocaso. O homem negro desaparecera e Fiora viu que estava só. Endireitando-se, descobriu roupas pousadas a seus pés e apressou-se a vesti-las. Uma camisa e uns calções de tela de Flandres de boa qualidade, um vestido de tiritana grená com um cinto de couro entrançado e mangas abotoadas e, por fim, meias e uns sapatos que ela reconheceu por serem os mesmos que descalçara na véspera, quando se deitara. Estavam longe de ser elegantes, mas, vestida assim, Fiora sentiu-se melhor e, sobretudo, mais segura. Um véu e um grande manto negro com capuz completavam o equipamento. Deixou estes de lado e aproximou-se da abertura que deixava entrar a luz para aspirar o ar tépido já carregado de odores marinhos.

A barca continuava a avançar, empurrada por umas longas varas cuja entrada regular na água ela podia ouvir e pela corrente

Tecido grosseiro, meio lã meio algodão.

do rio. Uma margem coberta de ervas altas e orlada de caniços desfilava lentamente à altura dos seus olhos. Estava muito próxima e Fiora sentiu-se, irresistivelmente, tentada a tocá-la, a juntar-se-lhe. Tinha de arranjar um meio de deixar aquele barco e escapar àqueles inimigos desconhecidos que a levavam sabia Deus para onde. Talvez para África? O homem, no dia anterior falara de uma carraca à espera em Nantes e o negro Domingo dissera que ela valia muito ouro. Seria possível ter sido raptada para ser vendida como escrava a um sarraceno qualquer?

Para avaliar as suas hipóteses, a jovem aproximou-se da porta. Esta estava fechada à chave, claro, mas não parecia muito sólida. Tinha aquele aspecto frágil, um pouco vacilante, dos batentes que só estão seguros por um cadeado. Talvez fosse possível soerguê-lo introduzindo um objecto comprido e fino na ranhura? Fiora começou uma inspecção minuciosa à sua prisão, na esperança de encontrar o que precisava para quando chegasse a noite.

Evidentemente, não sabia para onde dava aquela porta, nem o que se encontrava por trás dela. O falso mercador falara em dez homens, mas Fiora precisava daquela actividade, que lhe permitia sonhar com a sua libertação, para não cair, de novo, no desespero.

A estrutura do leito era constituída por umas dobradiças de ferro lisas, das quais uma era móvel. Ajoelhada, Fiora tentava arrancá-la quando a voz profunda de Domingo a fez estremecer. A despeito do seu tamanho e peso, o negro entrara sem fazer mais barulho do que um gato:

Vais ferir as mãos para nada, jovem! Não tens qualquer hipótese de fuga. Come, antes, o que Domingo te traz!

O homem segurava na mão uma escudela de onde se escapava um odor de carne com especiarias, que recordou à cativa que tinha fome. Docilmente, ela sentou-se no leito para receber o que lhe traziam e devorou sem se fazer rogada o guisado de carne e rabanetes contido no recipiente. Em seguida, bebeu de um trago uma malga de vinho que lhe devolveu as forças e o gosto pelo combate que ela julgava perdido, acabrunhada como estava pela dor e pelo desgosto. Então, ergueu os olhos para o gigante negro que a observava:

posso, enfim, fazer algumas perguntas? disse ela.

Que queres saber?

Primeiro, quem sois?

Ninguém. Chamam-me Domingo, mais nada.

De facto, não é muito. O homem da noite passada, aquele que tinha uma máscara de pássaro, branca, e que vós impedistes de... Qual é o nome dele?

Ele próprio to dirá, se achar que o deve fazer. Domingo

só te pode dizer que é o chefe.

Lembrando-se da maneira como Domingo o expulsara da cabina, Fiora pensou que era um chefe muito esquisito, mas, sentindo que não saberia mais nada, mudou de assunto.

Por que me raptastes? Para onde me levais?

O negro abanou a cabeça coberta com o airbante, encolheu os ombros num gesto de impotência e não respondeu. Pegando nos utensílios que tinham servido para a refeição, dirigiu-se para a porta. Quando ia a sair, murmurou:

Se ele to quiser dizer, dir-to-á. Entretanto, repousa!...

Já repousei! exclamou Fiora, que começava a perder a paciência. Vai dizer-lhe que quero vê-lo!

Não tens interesse nenhum em dizer: quero!

As horas passaram, intermináveis para quem não tinha meio de as medir. A tarde caiu e veio a noite. Encostada à estreita janela, Fiora viu que a margem se afastava, sem dúvida porque o rio se alargava. Um odor a lodo dominava, agora, o da água. De tempos a tempos, ouviam-se umas vozes que se exprimiam numa língua desconhecida. Exausta, Fiora acabou por se deitar na enxerga, onde se encolheu depois de se ter envolvido na capa. Ignorava a localização daquela cidade de Nantes onde os esperava o navio de alto mar. Sabia apenas e por acaso que era um porto e que não estava nas terras do Rei de França, antes nas do duque da Bretanha. O que queria dizer que o socorro seria cada vez mais difícil, senão impossível.

Um pouco antes da alvorada, Domingo veio acordá-la. A barca Já não avançava, girava um pouco. À luz da vela, Fiora viu que a abertura da sua cela fora tapada com umas tábuas talhadas de Propósito para caberem no buraco.

Estamos em Nantes? perguntou ela.

Não faças perguntas. Vou tapar-te os olhos e depois levo-te. Não havia meio de recusar, já que a relação de forças era desigual. Fiora deixou que a vendassem, sentindo-se, em seguida, erguida do solo e transportada como um simples fardo. Através do tecido da venda apercebeu vagamente a luz e o calor de um archote. Ouviu algumas vozes, exprimindo-se sempre na mesma língua desconhecida, entre as quais a do falso mercador. Pela entoação, compreendeu que o homem dava ordens.

A viagem durou um certo tempo. Ao deixar a barca à vela, Fiora sentiu que a depositavam numa barca mais pequena cujas pranchas rangiam um pouco. Em seguida, Domingo voltou a pegar nela, mas, em vez de a segurar nos braços, o que era relativamente confortável, atirou-a para o ombro como um saco de farinha e subiu uma escada que devia estar colocada no flanco do barco. Ao odor do lodo juntavam-se agora os da madeira húmida e do alcatrão. Ouviu-se um som de passos sobre as pranchas de um pontão, depois uma escada, uma porta a abrir-se e, finalmente, Fiora foi depositada sobre um colchão ou almofadas que lhe pareceram fofas depois da esteira da barca e cuja tela deixava perceber algumas pontas de palha. A jovem esperava que lhe tirassem a venda, mas, pelo contrário, Domingo atou-lhe cuidadosamente as mãos e os pés. Ela protestou:

Por que me atais? Eu não me defendi, parece-me, e não gritei!

Sem dúvida e dirás a Domingo se te ato com muita força, mas não tenhas medo, não será por muito tempo. É só até que o barco esteja longe de terra. Domingo virá libertar-te e dar-te-á de comer.

Parece-me que isso ainda vai demorar. Quando partimos?

Em breve. A maré está a chegar! Fica tranquila. Domingo fica junto da porta.

Só, Fiora, a despeito das ordens do grande negro, retorceu-se para se tentar libertar. Mas não era fácil: as mãos estavam atadas atrás das costas e se bem que Domingo não as tivesse atado com muita força, os nós estavam bem-feitos e quanto mais Fiora puxava, mais eles pareciam apertar-se. Mas, ao agitar-se assim, a venda deslizou-lhe dos olhos e, se bem que não lhe tivessem deixado qualquer luz, viu que se encontrava, como supusera, no castelo da popa de uma carraca.

Aquele tipo de navio era familiar à jovem. Os dois barcos do seu pai, o Santa Maria del Piore e o Santa Madalena eram do mesmo género e ela visitara-os muitas vezes, conhecendo-os, assim, a fundo. Sabia que aqueles navios, dos quais muitos eram construídos em Génova e Veneza, tinham duas pontes e dois castelos, à maneira das galeras romanas. O da popa, um pouco mais elevado do que o da proa, encerrava as câmaras do capitão e dos passageiros ilustres. Fora para uma dessas que a tinham transportado e a jovem sabia como se abria o painel de pequenas vidraças com caixilhos de chumbo que dava para a parte de cima do leme. Se conseguisse libertar-se, podia atirar-se à água a despeito da altura e nadar para longe, para o porto, e não ser apanhada. Depois, seria uma questão de sorte...

Como o seu corpo magro tinha toda a ligeireza da juventude, a jovem conseguiu, não sem dor, é verdade, fazer passar o torso e as pernas pelo anel formado pelos braços e depois, tendo levado as mãos à altura da boca, atacou os nós com os dentes. O dia estava a nascer e acinzentava o vitral. Na ponte, ouviu-se o pisar dos pés nus da equipagem correndo para as manobras. Ouviu-se o longo ranger de um cabrestante. O barco moveu-se sob o assalto da maré e puxou a âncora como um cão puxando a trela. As ordens sucediam-se, berradas por uma forte voz italiana. Fiora apressou-se e conseguiu reter um grito de alegria quando, por fim, as cordas cederam. Libertar as pernas foi obra de uns momentos e, saltando da cama para o chão, correu para a janela, procurando abrir o ferrolho, infelizmente um pouco enferrujado, que a fechava. Em baixo, apercebeu a água cinzenta e mais longe uma floresta de mastros por trás dos quais subiam os telhados pontiagudos de uma cidade, as flechas das igrejas e as torres de um poderoso castelo.