O pensamento da morte voltou-lhe à cabeça, como muitas vezes desde que reencontrara Mathieu e, nessa noite, impunha-se-lhe com mais força do que nunca Se desaparecesse, os que amava, os raros seres que a vida lhe deixara, poderiam continuar a viver naquela casa onde se sentiam tão bem. Enterrá-la-iam na ilha, perto do priorado de Saint-Côme, para que pudesse repousar em terra bendita e Léonarde iria pôr-lhe na campa, todas as manhãs, ramos de lilases, de peónias, de rosas e madressilvas, de cravos, de pervincas ou de campainhas-de-inverno, conforme as estações. Nas suas mãos, o pequeno Philippe ficaria bem, seria bem educado e, certamente, o Rei não lhe tiraria a sua protecção. Sim, seria a melhor das soluções, na condição de a morte vir naturalmente. Um suicídio só atiraria o opróbrio para cima daqueles que amava, a menos que a sua morte parecesse um acidente? Os pescadores da região diziam que o Loire tinha turbilhões estranhos, correntes violentas e fundões profundos. Mais de um imprudente tinha ali perdido a vida ao banhar-se.

Evidentemente, já não se estava na estação dos banhos. As manhãs já estavam frescas e brumosas, apesar de os pôr do Sol guardarem um pouco de calor nas suas cores púrpuras e douradas.

Fiora fechou os olhos para melhor saborear a ideia que tinha daquela maneira de deixar este mundo e não se apercebeu que, à força de se imaginar naquela prostração fatal, acabara por adormecer...

Acordou-a uma angústia súbita, que a fez sentar-se no leito com o coração a bater e a fronte cheia de suor. O quarto estava obscuro, mas levantara-se vento e o batente da janela batia contra a parede. Fiora atirou para o lado o lençol que tivera apertado contra o peito e quis levantar-se para ir fechá-la. Não teve tempo de pôr os pés no chão: o choque sufocante de um cobertor abateu-se sobre ela e sentiu, de imediato, uns braços rodeando-a e esforçando-se por segurá-la, ao mesmo tempo que uma corda a atava. A jovem debateu-se com uma energia selvagem e gritou:

Socorro!... Ajuda!... Aaaaah!

Procurando a sua garganta às apalpadelas, uns dedos sufocaram-lhe os gritos, mas a jovem ouviu outros que se faziam eco dos seus. Ouviu Marcellinne e também Léonarde, gritando e suplicando ao, ou aos agressores, que a libertassem. Houve, também, um ruído de luta seguido de um gemido de dor e depois uma voz áspera:

Estai quietas, ou esgano o miúdo como se fosse uma galinha!

Não! uivou Léonarde! O bebé não, o bebé não... por amor de Deus!

Deixai Deus em paz e dizei ao homem que vá fechar os cães se não quer que os degolemos. Um de nós vai acompanhá-lo para que não se afaste...

Através da espessura do cobertor, Fiora ainda ouviu a voz aguda de Péronnelle que berrava palavras sem nexo e, como a pressão que a martirizava pareceu abrandar, tentou desembaraçar-se daquele sufoco.

A jovem quis gritar de novo, mas, ao primeiro som, os dedos que lhe tinham abandonado a garganta apertaram-se, estrangulando-lhe o grito. Ela sufocou, ao mesmo tempo que um véu vermelho lhe caía diante dos olhos. Com um desespero brutal, pensou que ia morrer ali, estrangulada por um bandido qualquer, se bem que a voz que ouvira fazer ameaças, com um ligeiro sotaque estrangeiro, não lhe fosse desconhecida. Era demasiado estúpido acabar assim! Fiora encontrou forças para um último gemido antes de cair numa inconsciência total.

A água fria que lhe atiravam ao rosto acordou Fiora. A jovem tossiu e quis levar as mãos ao pescoço que lhe ardia, mas a corda que lhe manietava os braços afastados impediram-na. Abrindo penosamente os olhos, viu que se encontrara num pequeno quarto obscuro e inteiramente feito de pranchas de madeira que lhe davam o ar de uma caixa. Uma vela, pousada sobre um tonel, escorria cera e deitava fumo exalando um odor acre e, cortada num dos lados, uma pequena abertura quadrada deixava passar um pouco de bruma. Fiora estava deitada numa enxerga,t ainda vestindo a camisa com que se deitara e um cobertor talvez o mesmo com que a tinham atado cobria-a. A água correu-lhe ao longo das faces e do pescoço, molhando-lhe desagradavelmente os cabelos. Fiora virou a cabeça para ver de onde ela vinha e deixou sair um grito de pavor, ao mesmo tempo que tentava afastar-se o mais possível, o que via não era um rosto, antes um longo bico branco e uns grandes olhos bulbosos raiados de vermelho...

Quem sois vós? Que quereis?

Conversar, minha bela, conversar, simplesmente. Temos um longo caminho para percorrer, os dois, que será como tu decidires: relativamente agradável... ou muito penoso. De qualquer maneira, serás vigiada de perto e não te darei a menor hipótese de evasão.

Mais uma vez, quem sois e para onde me trouxestes? Dir-se-ia que estamos num barco?

Com efeito, o quadrado de madeira que encerrava a sua enxerga mexia ligeiramente e ouvia-se, no exterior, um ligeiro estremecimento, que podia ser provocado pela água contra um casco.

Bem adivinhado! Estamos, de facto, numa barca que desce o Loire, uma honesta barca de mercador, na qual ninguém terá a ideia de nos procurar, admitindo que somos procurados! O tom sarcástico do homem-pássaro passou, como uma grosa, pelos nervos de Fiora: Os da minha casa? Que fizestes deles? O meu filho não está... Morto? Por quem me tomais? Quanto aos da vossa casa, como dizeis, à excepção de um jovem energúmeno de cabelos desgrenhados que um dos meus homens feriu, portaram-se tão bem quanto possível, amarrados como salsichas. Espero, para bem deles, que alguém os liberte um dia destes.

Florent está ferido? Gravemente?

Não me façais mais perguntas! Eu não sei nada. E se vos posso dar um conselho, é que esqueçais essa gente. Passar-se-á muito tempo até que os possais ver de novo... se chegardes a vê-los, um dia!

Fiora torceu-se para tentar libertar as mãos, mas conseguiu, apenas, aumentar a dor. O homem mascarado porque era apenas uma daquelas máscaras que os médicos usam em tempos de peste inclinou-se para ela:

Se vos portardes bem, liberto-vos as mãos. Aliás, já vo-lo disse, sereis vigiada constantemente.

Nesse caso, por que razão me atastes?

Para que compreendêsseis melhor o que arriscais! Erguendo com uma mão o cobertor que cobria a jovem,

o homem pegou num punhal com a outra mão e rasgou a camisa de alto a baixo. O tecido sedoso deslizou de ambos os lados, revelando o corpo de Fiora na sua nudez total. Instintivamente, ela fechou os olhos com força para não ver mais nada: o que era uma reacção infantil. Não via nada, com efeito, mas sentia... Sentia os dedos duros do homem em redor dos seios e ao longo do ventre e mais abaixo ainda, entregues a uma exploração indiscreta. Ela torceu-se para escapar àquelas mãos que tomavam posse do seu corpo e gritou:

Deixai-me! Proíbo-vos de me tocar.

Cala-te, senão amordaço-te! Tu és bela, pequena, mas isso já eu sabia. Portanto, decidi o seguinte, porque devo entregar-te viva e no melhor estado possível: ou te mostras submissa, tranquila, e ficarás apenas fechada em minha casa. Ou me causas problemas, e ficarás acorrentada na carraca que nos espera em Nantes e entregar-te-ei aos meus homens todas as noites. Eles são dez, entre os quais se encontra um tuaregue e um negro do Sudão. Mas, está claro, serei o primeiro... e, por todos os diabos do inferno, pergunto a mim próprio por que não hei-de começar já! A mim o prémio!

O homem arrancou a máscara que lhe servira para assustar as pessoas do solar e Fiora, sem uma verdadeira surpresa porque esperava mais ou menos aquilo desde há alguns instantes, reconheceu o estrangeiro do adro de Saint-Martin, aquele que Florent vira rondar a casa. A jovem achara-o feio e inquietante por ocasião do primeiro encontro, mas desta vez o seu rosto, inflamado pela luxúria, pareceu-lhe a imagem do demónio. Compreendendo que ele ia violá-la sem demora a despeito do que dissera, ela lançou um longo grito que deve ter ecoado nas duas margens do rio. Furioso, ele aplicou-lhe uma mão brutal na boca, que ela mordeu. Por sua vez, ele gritou e depois, com todas as forças, esbofeteou-a várias vezes com precisão, para que as bofetadas fizessem o maior dano possível.

A cabeça de Fiora ia e vinha. Já não gritava, gemia, e as lágrimas de dor corriam-lhe pelo rosto abaixo, que ia ficando cada vez mais ardente. E depois, algo aconteceu. Alguém entrou na cabina e esmurrou o seu atormentador. Meio atordoada, a jovem, primeiro, não viu nada senão uma sombra que lhe pareceu gigantesca através das lágrimas. Depois, dessa sombra saiu uma voz extraordinária. Profunda como o mar, tinha a espessura untuosa de um bálsamo.

O mestre disse: viva e de boa saúde! Nada de ferimentos e nada de maus tratos, senão, não paga. E olha! Ela está a sangrar.

Ela mordeu-me, a galdéria. Gritou, gritou...

Domingo ouviu. Deixa-a e pensa na recompensa. Esta mulher vale muito ouro. Vai!

A porta rangeu de novo para saudar a saída do estrangeiro. Então, Fiora viu que aquilo que tomara por uma sombra era uma espécie de colosso negro cujo rosto e mãos se distinguiam mal das roupas sombrias e do turbante cor de borra de vinho que trazia. Quando ele se aproximou do leito, a chama da vela revelou o branco-leitoso dos grandes olhos castanhos e o brilhante dos dentes que apareciam entre uns lábios parecidos com duas almofadas avermelhadas. O homem olhou por um instante para a jovem atada à enxerga, como a vítima de um sacrifício qualquer monstruoso e encolheu os ombros. Os olhos de Fiora não eram outra coisa senão uma interrogação angustiada. A jovem tremia ao mesmo tempo de frio e de medo, porque aquele rosto sombrio não tinha nada de tranquilizador, mas as suas mãos tinham muito de doçura quando ele a cobriu com os dois bocados da camisa e com o cobertor. Em seguida, tirando do grande cinto que lhe envolvia o ventre um longo punhal de lâmina curva, cortou a corda que lhe atava os pulsos. Fiora suspirou de alívio e massajou os pulsos doridos antes de meter os braços por baixo do calor do espesso tecido lanoso.