Inclinai-vos, Madame! É Madame Joana de França, duquesa de Orleães, que vos concede a honra de vos dirigir a palavra!

Fiora, confusa, mergulhou de imediato numa vénia. Portanto, aquela jovem era a filha mais nova do Rei, com quem, no ano anterior, o Rei obrigara o jovem duque de Orleães, seu primo, a casar, confiando cinicamente a um dos seus cortesãos que desejava esse casamento porque os filhos do jovem casal ”não lhes custariam nada a criar”. Uma maneira como qualquer outra de acabar com o ramo rival do velho tronco dos Capetos. Péronnele contara, numa noite de Inverno, a história com grandes pormenores e grandes suspiros e as suas ouvintes não tinham podido descobrir se ela lastimava mais o jovem duque de Orleães, que diziam belo e bem-feito, forçado a casar com um camafeu daqueles, ou a pobrezinha, cujo sangue real não a poupara à pior das humilhações: a de ser imposta à força a um rapaz que, diziam, amava com toda a sua alma. A jovem passara a sua infância no castelo de Linières, em Berry, onde ninguém, nem sequer a sua mãe, a ia ver e depois do seu casamento regressara para lá, confiada à guarda das Linières que a tinham criado. Era raro ser vista nos castelos reais, dos quais não gostava, aliás, porque sabia que a sua presença não era ali desejada.

Madame murmurou Fiora suplico a Vossa Alteza que perdoe a minha ignorância. Quanto à cólera do Rei, nosso sire, acreditai que a temo tanto como outra pessoa qualquer, mas desejo dar-lhe a saber factos de uma urgência tão grande...

Que estais pronta a afrontar todas as cóleras do mundo, mesmo a sua? Dizeis-me quem sois? Se já vos conhecesse, lembrar-me-ia, porque sois muito bela. Sois estrangeira, talvez?

De Florença, Madame. O meu nome é Fiora Beltrami e...

Ah! Já sei quem sois! Falaram-me de vós! exclamou Joana com um sorriso encantador que lhe devolveu a idade e lhe iluminou o rosto ingrato. O Rei, meu pai, tem-vos muita estima e amizade. Mas... estais de luto?

Estou. Pelo meu marido, o conde Philippe de Selongey, morto no cadafalso há dois meses em Dijon, por rebelião. Era... súbdito do defunto duque Carlos.

Oh! Perdoai-me se vos magoei, deveis sentir-vos muito infeliz. Sois vós que habitais o solar de La Rabaudière?

Sou. E desejava que o nosso sire me permitisse devolver-lho. Acabo de ter um filho e...

Não me expliqueis nada. Creio que compreendi. Tenho pouco crédito, infelizmente, e não posso fazer nada por vós. Tudo o que posso oferecer-vos é um conselho, se o quiserdes aceitar.

Reconhecidamente, Madame.

Não afronteis o meu pai neste momento! Ele ainda está muito agitado por causa da difícil conquista dos países do Norte. Como vedes, não conseguiu ficar aqui mais do que algumas horas. Dai-lhe tempo a que reencontre a serenidade... e sobretudo a sabedoria. Dentro de alguns dias tudo estará melhor e podereis, então, falar com ele. Mas, peço-vos, tende cuidado.

1 O jovem duque viria a ser o Rei Luís XIII e repudiaria Joana, no decurso de um processo de divórcio mortificante, para casar com Ana de Bretanha. Joana tornar-se-ia religiosa e fundaria a Ordem da Anunciada. O Papa Pio XII faria dela, mais tarde, Santa Joana de França.


. Porquê?

Porque ides, sem dúvida, ofendê-lo. Já lhe aconteceu ter recuperado um presente depois de a pessoa, a quem o dera, o ter desiludido, mas creio que nunca ninguém lhe devolveu um espontaneamente. Pode ser que não goste do gesto. Não sejais brusca e aproveitai esta espera para reflectir!

já reflecti muito, Madame.

Nesse caso, é a Deus que tendes de pedir conselho. Quanto a mim, rezarei por vós.

Sem dar tempo a que Fiora lhe agradecesse, a pequena princesa ia afastar-se num passo desigual que provocou um aperto no coração da sua interlocutora quando, subitamente, se virou:

Eu contava regressar a Linières amanhã, mas ficarei ainda alguns dias se me prometerdes que não sereis precipitada.

Vossa Alteza consentiria em ajudar-me?

Já vo-lo disse: eu tenho poucos poderes, mas gostaria de os pôr ao vosso serviço. Regressai a vossa casa e, sobretudo, ficai quieta até que vos mande chamar. Prometeis?

Prometo... mas não sei como dizer-vos...

Não! Não me agradeçais. Sou eu que, pelo contrário, o devo fazer.

Como Fiora, visivelmente, não compreendesse, Joana acrescentou com o belo sorriso que fazia esquecer a sua fealdade:

Acabais de me provar que se pode ser ao mesmo tempo bela como o dia e profundamente infeliz. Quando tiver vontade de me queixar, pensarei em vós!

A princesa pousou a sua pequena mão, frágil como a pata de uma ave, na de Fiora que quase se ajoelhou numa reverência e depois, tomando o braço de Mme. de Linières, dirigiu-se para o pátio inferior, devidamente saudada pelos guardas das portas. Fiora viu-a dirigir-se para a capela de Notre-Dame de Cléry, onde entrou.

Quando pensamos numa princesa disse Florent, que a seguira com os olhos imaginamos sempre uma dama alta e bela, soberbamente vestida e adornada. Não imaginava que O Rei pudesse ter uma filha tão horrível.

Calai-vos! Não sabeis o que dizeis! Horrível? Com aquele olhar luminoso, com aquele sorriso que parece conter toda a doçura do mundo? Estou certa que Deus não é da vossa opinião! Regressemos!

Como tinham assistido à sua partida, Léonarde e Péronnelle espreitavam o seu regresso. Quando souberam que Fiora não pudera encontrar-se com o Rei, tiveram muita dificuldade em esconder o seu alívio. Um dia ou dois não era grande coisa, mas era, de qualquer maneira, um certo tempo. E como o encontro com a jovem duquesa de Orleães fora reconfortante. Fiora prometera retardar a sua iniciativa até que ela a autorizasse, ou qualquer coisa parecida. Léonarde recobrou a coragem.

Algo me diz que não vamos deixar esta querida casa tão cedo confiou ela a Péronnelle. Tenho esperança de que o nosso sire saberá convencer dona Fiora a não se ir embora e que vamos passar juntas o mais delicioso dos Invernos.

Achais que sim?

Sim, acho. O que eu temia, acima de tudo, era que a nossa jovem castelã caísse em cima do Rei como um raio e provocasse o seu ressentimento. Mas, agora, acho que as coisas vão correr pelo melhor e que ficaremos todas juntas.

A pobre Léonarde pensaria muitas vezes naquelas poucas frases plenas de esperança, no decurso das intermináveis noites sem sono que iriam ser o seu calvário durante esse mesmo Inverno que esperara ser tão doce.

Sob as cortinas de brocado florido que rodeavam o seu leito, Fiora dormitava. Apoderara-se dela uma grande fadiga após o seu regresso de Plessis. Depois de ter aceitado de Péronnelle um caldo de legumes, vira Marcelline dar o seio ao pequeno Philippe e retirara-se depois sem aceitar que a ajudassem a despir-se. Uma vez mais, estava prisioneira daquele grande desejo de solidão que tanto desolava Léonarde, sendo-lhe quase insuportável a ideia de falar, escutar ou responder. Parecia-lhe ser uma pequena palha, uma rolha de cortiça transportada nas águas tumultuosas do destino, sem que fosse concedida à sua vontade a mínima hipótese de se exprimir. Não havia outra coisa a fazer senão encontrar um pouco de repouso e, atirando com a roupa à passagem sem se preocupar onde caía, meteu-se entre os lençóis frescos que cheiravam a íris e deixou o seu corpo descontrair-se até que a noite, insinuando-se por entre os caixilhos em cruz da sua janela, transformou as cores vivas do tapete de Smyrne estendido no chão de pedra numa amálgama acinzentado e invadiu o quarto, deixando penetrar nele uma frescura anunciadora de Outono.

Fiora não permitira que acendessem nenhuma das lareiras sempre preparadas em todas as chaminés da casa, assim como a lamparina colocada na sua cabeceira. Não lhe apetecia ler, se bem que o livro junto dela fosse um dos discursos de Platão de que ela mais gostava desde a sua infância estudiosa. De que lhe servia a sabedoria grega no fundo de um solar perdido entre o rio e a floresta, quando o seu coração e o seu espírito flutuavam à deriva sem saberem para que lado se virarem? A única coisa viva, naquele quarto, era a brisa da noite que passava por um dos vitrais abertos da sua janela e lhe trazia o odor a folhas molhadas que uma chuva recente estendera pelo jardim.

Um após outro, os odores familiares da casa apagaram-se. Fiora ouviu Florent tirar água do poço do pátio para que Péronnelle a tivesse quando, de manhã, acendesse o fogo da cozinha. Depois foi o passo de Étienne, que fazia uma última ronda e assobiava aos cães antes de se ir deitar nos alojamentos da criadagem; o das portas que Léonarde fechava uma após outra, aferrolhando-as; o estalido ligeiro da escada de madeira do segundo andar sob o peso de Péronnelle, que se encaminhava para o seu quarto, seguido mais leve do de Florent. Por fim, o ligeiro ranger da sua própria porta quando Léonarde a entreabriu para se assegurar de que Fiora dormia. No quarto vizinho, o bebé chorou um pouco e Marcelline cantarolou alguns compassos de uma velha canção de embalar para o adormecer, enquanto Fiora ouvia o leito ranger sob o peso da ama. Terminara.- a casa cessara de viver para deixar entrar os sons nocturnos dos campos que a rodeavam. Tudo estava em ordem, tendo cada um dos habitantes do solar levado consigo, para a depositar, a sua carga de preocupações e penas até ao regresso do dia. Apenas Fiora não depositara nada, se bem que tivesse tentado com todas as suas forças. Ter-lhe-ia feito bem esquecer as penas, os deveres e as obrigações que a sua viuvez e a honra do nome que usava lhe criavam, já que não era o que fora até ali: uma mulher muito jovem que não tinha ainda vinte anos, com um corpo feito para o amor e que nunca mais conheceria as carícias nem o sol vermelho do prazer, uma alma demasiado atormentada que queria viver, mas que não tinha a coragem para o fazer. Que esperar de uma vida onde já não haveria o riso de Philippe, as mãos de Philippe, a boca de Philippe, o corpo de Philippe, cujo peso imperioso e doce ela sentia ainda, ao fechar os olhos, quando ele a obrigava a abrir-se...