Por que razão não existiria?

Porque em todos os países do mundo, quando um homem é condenado por rebelião, os seus bens são recuperados pela Coroa e as suas defesas são destruídas. Pode ser que o castelo tenha sido arrasado. E se o nosso pequeno Philippe não tivesse mais nada senão este solar que vós quereis devolver?

Esqueceis que Agnolo Nardi faz frutificar a parte da fortuna que me foi deixada? Pelo menos, terá isso!

Pouca coisa para o grande senhor que ele tem o direito de ser. Por que, em vez de atirar amanhã os vossos títulos de propriedade à cabeça do Rei Luís, não lhe apresentais a vossa queixa? Ele demonstrou-vos que podeis confiar nele e que tem, por vós, uma grande amizade. Além disso, como dizíeis ainda há pouco, é um homem sensato... mas também não podeis esquecer o que messire de Commynes nos disse por ocasião da sua visita: ele mudou e parece que, agora, tem prazer na guerra que antes detestava. Até exilou o seu melhor conselheiro...

Para Poitiers? Não foi um grande exílio.

Sem dúvida, mas o senhor de Argenton pensava regressar brevemente e nós nunca mais o vimos. Cuidado com as ofensas ao Rei, Fiora! A profundeza do seu espírito talvez esconda abismos insondáveis. Para onde pensáveis ir, agora que o Inverno está à porta? Para Selongey?

Não, já não. Primeiro para Paris, para casa dos nossos amigos Nardi, que ficariam, tenho a certeza, muito felizes por nos acolherem e que...

... e que talvez ficassem menos se chegássemos a sua casa como indesejáveis, talvez como proscritas? Para onde iríamos, então, com um bebé de algumas semanas nos braços? Esta casa é vossa, Fiora, não tendes outra! Pensai nisso quando, amanhã, falardes com o Rei!

Tendes uma lógica terrível, Léonarde e pode ser que tenhais razão, mas parece-me que Philippe, lá onde está, me manda sair daqui, grita-me que o meu lugar e o do seu filho não é perto do Rei que ele odiava.

Lá onde ele está? Que sabeis vós da vontade daqueles que deixaram este mundo? A mim, parece-me que se deve, primeiro, procurar obter a graça e o perdão para todas as faltas cometidas. Fazei como quiserdes, meu cordeirinho, é a vossa yida e a do vosso filho que está em questão e pela minha parte estarei sempre pronta a seguir-vos para onde julgardes melhor, já que o mais importante é estar ao vosso lado. Mas falta a querida Péronnelle e o marido. Eles já estão muito ligados ao pequeno Philippe. Ides partir-lhes os corações.

Naquela noite, Fiora não conseguiu dormir. Reviu vezes sem conta o que Léonarde lhe dissera sem conseguir arranjar uma solução satisfatória. Bem entendido, Léonarde tinha razão em muitos pontos, mas a mesma ideia fixa estava sempre presente: ficar naquela casa seria trair a memória de Philippe e Fiora já reprovava demasiadas coisas a si própria para acrescentar mais aquela. No entanto, prometeu a si própria usar de diplomacia para evitar que Luís XI passasse de amigo a inimigo.

Decidira ir a Plessis logo de manhã, por volta da hora em que o Rei sairia da missa. Mas no momento em que se ia pôr a caminho ouviu o ladrar de cães e as trompas que anunciavam uma partida para a caça. Portanto, ainda mal regressara a casa e já ia partir para o seu divertimento favorito que era, ao mesmo tempo, uma verdadeira paixão. Mais valia não se arriscar a retardá-lo, porque ficaria, certamente, de mau humor.

Foi, portanto, ao fim da tarde que, metida num vestido de veludo negro e com uma coifa em tela prateada sustentando as suas musselinas fúnebres, ela montou na sua mula. Seguida de Florent vestido com a sua melhor roupa, dirigiu-se para o castelo através de Pavé”, o caminho coberto de grandes pedras que ligava a cidade de Tours à morada do soberano. Se a caça tivesse sido boa, a jovem tinha todas as hipóteses de ser recebida com afabilidade. Fosse como fosse, era normal que aparecesse para saudar o Rei, felicitando-o pelo bom regresso a casa. E Fiora partiu sem olhar para trás, para não ver Léonarde e Péronnelle, esta com o bebé nos braços, que a viam desaparecer. Os olhos vermelhos de Péronnelle, posta, sem dúvida, ao corrente por Léonarde, causavam-lhe uma impressão penosa e aborreciam-na ao ponto de, ao chegar à primeira cerca murada do castelo de Plessis-lès-Tours, quase virar a mula e regressar a casa, perguntando a si própria que direito tinha de causar tanta dor a gente tão boa. Mas aquilo fazia parte da sua natureza, ir até ao fim das suas decisões e, depois de uma curta pausa, avançou para as portas flanqueadas por duas torres ameadas guardadas por arqueiros da Guarda Escocesa.

A amizade já antiga que ligava Fiora ao sargento Douglas Mortimer era conhecida de todos e, longe de a impedirem de entrar, os soldados saudaram a jovem acrescentando aquele grande sorriso que todos os homens, normalmente constituídos, reservam para uma bela criatura. Reinava, no pátio, a actividade típica de uma mudança. De um lado estavam os alojamentos da Guarda, onde os pajens punham ordem, ao mesmo tempo que algumas raparigas do serviço doméstico levavam a roupa branca para a lavarem. No lado ocidental, perto da pequeníssima capela dedicada a Notre-Dame de Cléry, a que o Rei chamava a sua ”boa senhora”, ou a sua ”querida amiga”, porque era a sua preferida, os soldados, encarregados de guardar a grande torre quadrada que se erguia afastada das muralhas e à qual chamavam a ”Justiça do Rei”, aqueciam-se ao sol daquele fim de tarde ou jogavam aos dados. Do outro lado, uma outra igreja, dedicada a São Matias, servia de paróquia à população do castelo e de capela ao pequeno convento encerrado dentro das suas muralhas. Poder-se-ia dizer que se estava na praça de uma aldeia, mas essa aldeia morria junto de grandes e profundos fossos, transpostos por uma grande ponte levadiça que dava acesso ao pátio de honra, centro do castelo.

Este, que se via à esquerda ao entrar, compunha-se de uma grande casa ornada com uma galeria de arcadas belamente esculpidas suportando um terraço cheio de estátuas, para o qual se abriam umas altas janelas duplas. Umas elegantes águas-furtadas de empenas floridas animavam o grande telhado de ardósia e coroavam soberbamente os aposentos reais, que não tinham, na verdade, nada a ver com as descrições sinistras que os inimigos davam do Rei. Uma torre octogonal, encimada por uma alta guarita, fechava a escadaria e em frente das janelas dos aposentos abriam-se os jardins e os pomares sempre admiravelmente tratados, porque recebiam a água, assim como todo o castelo, por meio de tubos de chumbo ou de porcelana ligados à fonte de Carre. No entanto, tanto naquele pátio, como no precedente, havia um poço e um bebedouro.

O local, contrariamente ao que o precedia, era tranquilo, silencioso e estava quase deserto. O Rei, quando estava em Plessis, queria, antes de tudo, a calma necessária para poder reflectir. Apenas estavam de guarda, na base da escadaria, dois arqueiros e Fiora, que procurava Mortimer, aprestava-se para lhes

1 Rendo aqui homenagem a M Sylvain Livernet, cuja bela obra As torres no tempo de Luís XI me foi de grande utilidade para esta parte do livro


perguntar se sabiam onde ele estava quando viu aparecer Étienne Lê Loup, que se dispunha a atravessar o pátio. Reconhecendo a jovem, aproximou-se dela e saudou-a cortesmente:

O nosso sire partiu para a caça esta manhã, muito cedo, dona Fiora. Certamente não o ireis encontrar aqui.

Eu sei. Ouvi-o partir, mas penso que não deve demorar e é esse regresso que vim esperar, para o saudar e saber notícias da sua saúde.

Se levarmos em linha de conta a vida esgotante que tem tido estes últimos meses, é excelente. Aliás, vedes bem que, mal chegou, partiu para a caça. Esteve privado dela este tempo todo. Mas aconselho-vos a regressardes a vossa casa, porque o Rei não voltará esta noite.

Foi assim para tão longe?

Bastante. Foi para a floresta de Loches. Passará a noite no castelo dessa cidade. Talvez, até, lá fique vários dias, se os batedores fizeram bom trabalho.

Loches! Aquele nome soou sinistramente na memória de Fiora. Fora para essa fortaleza que tinham levado, metido numa jaula, Mathieu de Frame e talvez o Rei, a propósito da caça, fosse lá para o interrogar? Havia lá outros prisioneiros, sabia-o, a começar por frei Inácio Ortega, o monge castelhano que a perseguira com ódio e que ela impedira, mesmo à justa, de matar Luís XI em Senlis. Tinham-no mandado para Loches, também ele numa jaula, para expiar o seu falhanço. Estava lá, também, um cardeal cujo nome Fiora esquecera, mas parecia que o Rei tinha feito de Loches o lugar predilecto das suas terríveis justiças. Os homens eram ali tratados como feras, talvez pior ainda, e se Fiora não se preocupava com o destino do monge espanhol, o seu coração apertava-se ao recordar o jovem escudeiro acorrentado miseravelmente sob os risos e as injúrias de uma multidão tornada ainda mais cruel pelas libações de um dia de festa.

Tenho de falar com o Rei! disse ela, por fim. O melhor seria, talvez ir a Loches?

A jovem viu os olhos redondos do camareiro ficarem quase ovais devido ao estupor. O homem gaguejou:

Ir... a Loches?

Mas não teve tempo de continuar e dobrou-se em dois para uma profunda saudação, ao mesmo tempo que uma voz jovem e doce dizia:

Seria uma loucura, Madame, se me permitis a observação. O Rei nunca recebe ninguém quando lá vai, porque é a prisão dos prisioneiros políticos e quem ousa infringir as suas ordens incorre na sua cólera. Conheceis a sua cólera?

A voz pertencia a uma criança, uma rapariguinha que talvez tivesse treze ou catorze anos, por trás da qual uma mulher alta, vestida como uma dama da corte, se mantinha com as mãos no regaço numa atitude plena de dignidade. Quanto à pequena, Fiora, apiedada, pensou que nunca tinha visto uma adolescente mais desgraciosa... nem mais imponente. Sob o veludo azul-pavão do vestido bordado com pequenas flores de lis prateadas, os ombros pareciam desiguais e o corpo contrafeito. O rosto, de nariz muito grande, boca triste e olhos ligeiramente globulosos, parecia ter-se enganado de corpo e pertencer a uma mulher bastante mais velha. Mas quanta doçura e luz parecia ter aquele olhar castanho, quase doloroso. Não sabendo dizer quanto a impressionava aquela rapariguita, Fiora hesitava na conduta a seguir quando a dama que a acompanhava a informou, não sem uma certa severidade.