Não! Por piedade, não me digais nada! Não me faleis dele nunca mais. Philippe está morto e longe de mim... e a culpa é toda minha!
Então, a jovem abandonou a sala como se fugisse e desceu ao jardim para se ir sentar sob um pequeno berço de rosas musgosas, obra-prima de Florent. Este não andava longe, aliás, ocupado a limpar um maciço de goivos que os gatos tinham danificado numa noite de lua cheia. O seu primeiro movimento foi de ir ter com a jovem, mas apercebeu-se do seu rosto imóvel, do seu olhar sem vida e não ousou, temendo uma resposta que o ferisse. A sua bela dama parecia ter perdido a alma.
Em certo sentido era verdade. Fiora ligava o seu desespero e a sua mágoa àquele instante demente, insensato, em que se arrancara aos braços de Philippe para se afastar dele, decepcionada e ferida no seu orgulho. No entanto, esperara-as tanto, procurara-as tanto, aquelas horas de felicidade que acabava de interromper. E tudo porque Philippe, em vez de se consagrar a ela, pretendia continuar a levar a sua vida habitual, dedicado por inteiro ao serviço do suserano, depois de a ter relegado para o seu castelo borgonhês. No momento, a ideia parecera-lhe absurda e quando ele pronunciara a palavra obediência, todo o seu ser se revoltara. A vida que ele lhe oferecia, não a queria. Não lhe cabia a ele, que lhe provocara tanto mal, provar, enfim, que a amava mais do que tudo no mundo e tentar fazê-la feliz? Sim, pensava ela e pensara-o durante cada um dos momentos que se tinham seguido até àquele minuto terrível em que Mathieu de Frame lhe contara o que acontecera em Dijon, num dia daquele mês de Julho em que, na doçura daquele mesmo jardim, ela se abandonava à felicidade de transportar o ”seu” filho, acariciando a esperança de o ver, um dia, regressar.
Os pensamentos torturantes continuaram a sua ronda. Se ela tivesse aceitado deixar-se conduzir a Selongey, viver a existência que ele lhe oferecia, teriam as coisas sido diferentes? Teria ele ficado com ela? A razão murmurava-lhe que não, que tudo se teria desenrolado na vida de Philippe como ele tinha decidido, que teria continuado aquela luta insensata por uma Borgonha independente que não passava de um logro e que não teria evitado o cadafalso.
O cadafalso! Que maldição arrastava ele, aquele velho montão de pedras e madeira, que, após beber o sangue dos seus pais, bebera o do homem que ela amava? Tudo o que fazia parte da sua vida ia, obrigatoriamente, acabar naquele local de justiça? Talvez, se tivesse mantido os braços com força em redor de Philippe, tivesse conseguido mantê-lo junto de si, impedindo-o de ir para aquele destino atroz e inútil!
Por mais afastada que a Casa das Pervincas estivesse dos barulhos do mundo, algumas notícias chegavam de tempos a tempos, notícias essas que Péronnelle trazia do mercado, ou que Florent apanhava na cidade. Assim, souberam que no dia 18 de Agosto, em Gand, Maria de Borgonha casara com Maximiliano. Seria, um dia, Imperatriz da Alemanha e já não precisava da Borgonha que a conduta perigosa do defunto duque, aliás, afastara de si. Philippe morrera por nada, por nada, nem sequer por uma ideia. Não se luta contra a História, mas ele não quisera saber: o que ele quisera fora conservar para a ”sua” princesa a herança ancestral e Fiora, agora, já não sabia muito bem o que odiava mais, se aquela Maria que levara Philippe à perdição ou o governador de Dijon como se chamava ele? O senhor de Craon? que assinara a ordem da execução.
Os únicos instantes em que o turbilhão dos seus pensamentos lhe dava algum descanso, Fiora passava-os junto do filho. O bebé era soberbo. O leite de Marceline parecia convir-lhe às mil maravilhas e o bebé prometia ser grande, forte e talvez feliz na vida: se palrava muito, chorava pouco e às vezes nem isso, porque quando ficava colérico, os seus olhos, ainda quase sem tonalidade, permaneciam secos. Diante dele, Fiora era toda adoração e quando o tinha nos braços e acariciava com a ponta do dedo a ligeira penugem castanha da sua pequena cabeça, envolvia-a uma tal vaga de amor que esquecia, por um momento, o sofrimento. Então, demorava-se junto do berço, uma barca frágil à qual, como se estivesse em vias de se afogar, se agarrava para não enlouquecer. Quando se afastava, os pensamentos amargos regressavam.
Aproximava-se a época das vindimas quando, de repente, a província se animou. O castelo de Plessis, que parecia um pouco adormecido na ausência do seu senhor, acordou. Limpou-se a fundo e encheram-se as cozinhas de provisões, ao mesmo tempo que começavam a chegar correios com ordens e algumas carroças com móveis: numa palavra, Luís XI estava de regresso.
Soube-se que não estava longe quando chegaram os objectos da sua capela, que nunca o abandonavam. De facto, estava em Amboise para ali visitar a Rainha Carlota, sua mulher. Esta preferia de longe o seu belo castelo, erguido na colina diante da qual corria o Loire, ao castelo de Plessis. Mas o Rei nunca ficava muito tempo e dois dias depois da chegada da capela, ouviram-se soar as trombetas de prata que anunciavam a sua aproximação.
Nessa noite, pela primeira vez desde o nascimento do seu filho, Fiora saiu do seu mutismo e, em vez de subir para o seu quarto depois do jantar, como se tornara seu hábito, ficou na sala e pediu a Léonarde que ficasse com ela. Como a noite estava um pouco fresca, Florent tinha acendido a lareira com troncos de pinheiro cuja resina estalava alegremente e perfumava a grande sala silenciosa. A jovem sonhou por um instante enquanto olhava para as chamas e depois virou para Léonarde um olhar cansado.
Peço-vos, desde já, perdão pelo que vou fazer, minha querida Léonarde. Acreditai que, antes de me ter decidido, reflecti muito. A ausência do Rei deu-me algum tempo, mas, já que regressou, não posso adiar mais.
Ignoro o que pretendeis dizer-me, Fiora, mas sabei que a única coisa que conta para mim, neste momento, é justamente que, finalmente, faleis comigo. Esse longo silêncio desesperava-me. Parecia-me... que já não contava para vós, que já não era a confidente das vossas penas e...
A voz resvalou para um soluço que a velha solteirona engoliu corajosamente, mas uma lágrima brilhou-lhe, mesmo assim, nos seus olhos azuis que pareciam conservar uma juventude eterna. A mão da jovem pousou na da sua fiel companheira.
Que posso eu dizer que vós não saibais já? Pelo contrário estou-vos reconhecida por me deixardes com o meu silêncio. Não era capaz de ouvir outras vozes que não as da minha dor e dos meus remorsos.
Aquelas palavras fizeram Léonarde pular e a sua tristeza varreu-se-lhe:
Eu sabia que era isso! Remorsos? Porquê? Porque não permitistes que messire Philippe vos fechasse em Selongey onde ele não ficaria muito tempo, apressado como estava por voltar ao combate? Quereis dizer-me que isso teria mudado o abominável seguimento dos acontecimentos e que seríeis menos infeliz no seu castelo do que sois aqui?
Sem dúvida que sim, mas estaria em Selongey, como ele queria e a diferença é essa. Léonarde, o homem que mandou matar o meu marido é governador de Dijon ”pelo Rei”... e eu não me reconheço o direito de educar o seu filho numa casa dada pelo Rei.
Doce Jesus! gemeu a velha solteirona, que mudou de cor não me ides dizer que vos ides lançar, de novo, na perseguição de não sei que vingança insensata? Não me ides dizer que vai recomeçar tudo de novo como durante aqueles dois anos terríveis que passámos, vós e eu? Diante de Deus que me escuta, juro que não o poderei suportar. Não, não conseguirei!
Desta vez, ela desatou aos soluços e escondeu o rosto nas mãos, que tremiam.
Acalmai-vos, minha querida disse a jovem docemente juro-vos por tudo o que há de mais sagrado que a ideia de vingança nunca me passou pela cabeça e que a questão não é essa. Eu sei muito bem o que sofrestes e até tive alguns remorsos. Aliás, não atingi a meta do meu último projecto. Tal como Demétrios! As mós do Senhor moem lenta mas seguramente e os grãos de areia que nós somos davam provas de uma grande presunção! Mais vingança não, minha Léonarde, nunca mais!
A sério?
-Já não confiais em mim? Se ainda há pouco vos pedi perdão pelo que vou fazer, foi unicamente porque sei que sois feliz aqui e que vos sentis ligada a esta casa, aliás tal como eu. Vai ser duro separarmo-nos, mas tendes de me compreender: mesmo que não guarde rancor ao Rei por uma condenação da qual, provavelmente, não teve conhecimento, esse senhor de Craon agiu em seu nome. Ficar aqui seria aprovar tacitamente o que foi feito. O meu filho reprovar-me-ia mais tarde.
Fiora tinha-se levantado e caminhava lentamente ao longo da chaminé com as mãos no fundo das suas largas mangas. Léonarde seguia-a com os olhos numa espécie de desânimo. Depois, o seu olhar deslizou pela decoração que as rodeava e, sentindo que o seu coração se apertava, compreendeu que se lhe tornara querida e que esperara terminar ali os seus dias. Por fim, falou:
Pensais, portanto, criar esta criança no amor exclusivo pela Borgonha e no ódio pela França?
Não. É claro que não, mas...
Quando ele tiver vinte anos, há muito que a Borgonha terá passado a ser uma província francesa. O Rei Luís já não fará parte, talvez, deste mundo, mas o seu filho reinará e o vosso será um dos seus súbditos. Quereis, desde já, colocá-lo num campo rebelde que, ainda por cima, praticamente já não existe, porque se trata, para os antigos súbditos do duque Carlos, de escolher entre a França e a Alemanha? Tendes de pensar no seu futuro. Onde está esse futuro, se ofendeis o Rei devolvendo-lhe o que ele vos deu?
O Rei é um homem sábio. Compreender-me-á, certamente. É mais normal que eu leve o meu filho para Selongey.
Estais certa de que continua a existir um castelo de Selongey?
Fiora tinha-se imobilizado e fixava Léonarde com um olhar estupefacto:
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