Antes que a jovem pudesse ter respondido, o jardineiro interpelou um dos soldados que guardavam a ponte levadiça do castelo.

Sabeis para onde conduzem o homem que está a chegar?

Para o castelo de Loches, talvez... a menos que seja para Plessis... ou então para casa de um notável qualquer!

Para casa de um notável? Para quê?

Ora, para que o guarde! É um sinal particular da benevolência do nosso sire, confiar um prisioneiro a alguém que ele estima respondeu o homem, divertido com a cara pasmada do jovem, que, aliás, não se deu por satisfeito e parecia querer ir ao fundo da questão:

Será preciso que ele tenha uma grande porta, o vosso notável, para meter por ela uma jaula com o respectivo ocupante!

É mais simples do que isso explicou o outro, imperturbável atira-se abaixo um bocado de parede e reconstrói-se depois. Avisam-se os pedreiros com antecedência. Queríeis atravessar a ponte? acrescentou ele lançando um olhar de admiração para Fiora. A jovem dama mora, talvez, em Saint-Symphorien?

Não! Só queríamos ver o cortejo. Moramos em Plessis acrescentou ele com ar negligente.

Nesse caso, ficai perto de mim. Não o perdeis de certeza. Por falar nisso, lá vem a multidão.

Galantemente, depois de, com uma piscadela, ter avisado a outra sentinela, o homem levou as duas mulas para a ponte levadiça do castelo, o que assegurou às duas mulheres um local óptimo, ao abrigo da confusão. Era tempo. Todos aqueles que não tinham podido transpor a porta cuja alta ogiva se destacava no céu fulgurante, foram empurrados para trás por uma força contra a qual nada podiam, ao mesmo tempo que aqueles que estavam na ponte não podiam recuar, já que o cortejo do prisioneiro lhes cortava a retirada. Alguns terão, sem dúvida, caído à água, porque se ouviram uns gritos e uns ”plof” estrondosos. Fiora sentiu apertar-se-lhe o coração, esperando perdidamente que aquele prisioneiro especial não fosse o seu marido. Esse temor tinha a ver com certas palavras que chegavam até ela:

Parece que é um rebelde borgonhês! Bateu-se contra o nosso Rei! Um dos homens daquele maldito Temerário! Palavras vindas não se sabia de onde, gritos lançados por gente que, no fundo, não sabia nada, injúrias estúpidas, gratuitas e demasiado levianas face a um homem reduzido à impotência por fim, sob o arco de ferro forjado, apareceu a jaula, minando a vaga de cabeças. Aos solavancos sobre as pedras do rio que pavimentavam a ala, uma espécie de plataforma grosseira avançava com dificuldade no meio de um grupo de cavaleiros de lança em punho e, sobre essa espécie de plataforma, uma jaula suficientemente alta para que um homem se pudesse manter de pé, uma jaula feita de grossas ripas de madeira com cantos de ferro, na qual um homem, vencido, talvez, pelo calor do Sol contra o qual nada o protegia, estava sentado.

Não se lhe podia ver o rosto, porque a sua cabeça estava escondida nos braços pousados sobre os joelhos, talvez para se proteger dos projécteis de toda a espécie que a populaça lhe lançava com gritos de morte. Aquele homem era um daqueles borgonheses contra os quais fora preciso combater mais de um século e mesmo naquela região, onde a vida era doce, o rancor era tenaz. À medida que a carroça avançava, a multidão urrava cada vez mais e os guardas tiveram que fazer uso das suas lanças para a manter à distância. Sem essa precaução talvez ela tivesse, sem saber nada do cativo, tomado a carroça de assalto.

Um suspiro de alívio saiu do peito de Fiora. Philippe era moreno e os cabelos daquele, se bem que muito sujos, eram da cor do trigo. O desgosto apertou-lhe a garganta. Detestava, com todas as suas forças, aquela gente, tão amável e tranquila em tempos normais, mas que, à vista de um desconhecido do qual se dizia ser um inimigo, se transformava numa horda de lobos. A jovem olhava para aquela cena cruel sem conseguir desviar o olhar e sentiu uma imensa piedade por aquele infeliz que devia sofrer o martírio de mil mortes com aquele dia de Verão e sem uma gota de água. O seu olhar perfurou Florent:

Vai-me buscar um jarro de vinho fresco ao albergue!

O tom era daqueles que não admitiam réplica. Compreendendo que, se não obedecesse, arriscava-se a ser despedido naquele mesmo momento, Florent não discutiu, esquivou-se rapidamente e regressou alguns minutos depois com um pichel que entregou, tremendo, à jovem.

Que pretendeis fazer? murmurou Léonarde que, entretanto, tinha compreendido.

No entanto, Fiora consentiu em explicar:

Talvez tenhamos conhecido este homem no ano passado, no campo do duque Carlos. Quero dar-lhe algum socorro.

E, sem esperar mais, forçou a mula através da multidão na direcção da jaula.

Minha senhora! Onde ides? gritou o soldado que lhe oferecera o refúgio da ponte levadiça.

Onde devo ir! Aquele homem é um prisioneiro. Não é um condenado!

Perante o avanço do animal, a multidão abriu-se quase sem protestar. Aquela mulher tão bela e visivelmente perto do fim da gravidez impunha-se-lhe. Mas um dos lanceiros quis opor-se:

Que fazeis? Fora daqui!

Eu sou amiga do Rei Luís, cujo aniversário se celebra hoje, e quero oferecer um pouco de vinho a esse infeliz. Tendes ordens para vos opordes?

N... não, mas...

Tendes ordens que vos impeçam de receberdes isto? Também deveis ter sede, assim como os vossos camaradas. Acabada a vossa tarefa, podeis beber à minha saúde. Só vos peço um instante!

Na sua mão de dedos finos brilhavam algumas moedas de ouro. O soldado avistou-as, maravilhado.

Quem sois? balbuciou ele. Sois bela como a Virgem Maria, Nossa Senhora!

Pouco importa quem sou. A minha tarefa é a de socorrer aqueles que necessitam. Posso aproximar-me?

A multidão, que antes resmungava, acalmou-se, seduzida pela imagem extraordinária daquela jovem vestida de azul, cuja autoridade era a de uma princesa e cujo olhar cinzento, tranquilo, se pousava nela. Aquela cena, no fim de contas, era mais interessante do que a que consistia em lançar gritos e atirar talos de couve a um homem acorrentado que parecia insensível. O sargento afastou-se:

Fazei como desejais, nobre dama... mas só por um instante!

Fiora já estava perto da jaula. A sua mula colocava-a à mesma altura do prisioneiro e, para imobilizar a montada, a jovem agarrou uma das ripas:

Tomai este vinho, meu amigo, e bebei! Precisais muito dele!

O som da sua voz quente conseguiu atravessar a espessa camada de vontade indomável em que o homem estava envolvido para não ouvir nem ver nada. A sua cabeça curvada descolou do círculo dos seus braços e ergueu-se mostrando um rosto macilento, mas, para Fiora, imediatamente reconhecível.

Mathieu! balbuciou ela enquanto as mãos ávidas agarravam no pichel emaciado e o prisioneiro bebia avidamente. Mathieu de Frame! Mas, como é possível estardes aqui? Onde está Philippe?

Ao ouvir o seu nome, o prisioneiro estremeceu e agora olhava para a jovem por cima da borda do pichel com uns olhos cheios de dor.

Morto!... disse ele por fim. Foi apanhado... como rebelde, em Dijon... e executado. Eu quis revoltar a multidão para o arrancar ao cadafalso. Foi por isso que me prenderam.

Por um instante, ficaram ambos num profundo e doloroso silêncio. Com o coração parado, Fiora olhava para o homem acorrentado. A sua voz, curiosamente sem timbre, pareceu-lhe vir de muito longe.

Morto? Quereis dizer... que o mataram?

Os homens do Rei, sim! O governador de Dijon, o senhor de Craon! Eu não o vi morrer porque me levaram antes... mas já estava na base do cadafalso... Perdoai-me! Trouxestes-me socorro e eu martirizo-vos.

Fiora já não ouvia nada. À sua volta tudo oscilava: o céu anil, os reflexos do rio no interior da velha porta, os cata-ventos do castelo, as ripas da jaula e o rosto jovem e patético do prisioneiro que, de olhos arregalados, a via empalidecer sem nada poder fazer para a ajudar. Mas Léonarde não estava longe. Instantaneamente, a sua mula atirou-se contra a de Fiora e a velha solteirona recebeu nos braços a jovem desmaiada.

Ajudai-me! gritou ela. Não vedes que ela desmaiou? Ou tendes corações de pedra, insensíveis a qualquer aflição?

O sargento veio em seu socorro e, na multidão, já algumas mulheres se esforçavam por se aproximar dela.

Não devia ter permitido isto! disse o soldado, arrePendido.

Nunca fizestes nada melhor, meu amigo! Mas é preciso admitir que, no seu estado, o espectáculo deste infeliz não é o que lhe convém. Não podeis ser um pouco mais humanos com os vossos prisioneiros?

Visivelmente aborrecido, o homem lançou em redor um olhar inquieto e depois, inclinando-se para a velha solteirona murmurou-lhe rapidamente:

Ela conhece este homem? É um amigo?

- É, mas que tendes vós com isso?

Não vos preocupeis! Dizei-lhe que tentarei ajudá-lo um pouco. Para que ela se lembre do sargento Martin Venant. E agora, ide ter com ela. Temos de continuar! Transportada por dezenas de braços prestáveis, Fiora fora tirada da sua sela e conduzida para o albergue do Carroi onde ela tinha tomado a sua refeição. Florent, perdido de angústia, segurava numa das suas mãos frias. Enquanto o sargento dava as suas ordens, Léonarde virou-se para ele:

Para onde levais este homem? Sabeis?

Para o castelo de Loches! Deus vos guarde! Léonarde não respondeu à saudação que lhe dirigiam. Já partira na direcção do albergue, em cujo interior tinham estendido Fiora num banco com uma almofada sob a cabeça. A estalajadeira dava-lhe palmadas nas mãos e Florent borrifava-lhe as têmporas com vinagre, mas nada feito: com o nariz contraído, as faces brancas e os olhos fechados, a jovem não reagia. Respirava com dificuldade mas respirava e via-se, por isso, que o golpe não a matara.