Ao deixar a igreja, a jovem sentia-se mais serena. O bebé já podia vir ao mundo. Fora confiado a São Martinho e ela agora estava certa de que seria belo, forte e puro de todo o mal. Assim, distribuiu esmolas pelos mendigos que solicitavam a sua caridade, feliz por ouvir as bênçãos com que eles a cobriam e os votos que formulavam pela sua maternidade.
Pelo braço de Léonarde, demorou-se um instante a seguir as evoluções de um saltimbanco que rodopiava numa corda estendida entre duas estacas. O rapaz era jovem, ligeiro, sorridente e no seu fato matizado, parecia uma chama volteando no ar pela vontade de um mágico invisível.
Se quereis fazer compras, temos de nos apressar aconselhou-a Léonarde. Vamos ter com Florent.
Ao aproximarem-se do local onde tinham deixado as mulas, as duas mulheres viram que o jovem estava a conversar com um estrangeiro. Estes não eram raros em Tours, tal como nos outros lugares santos, mas o interlocutor de Florent apresentava um aspecto suficientemente particular para chamar a atenção. Alto, magro e até ossudo, o seu rosto em forma de lâmina de faca mostrava uma tez bronzeada e uns olhos negros de mediterrânico. O seu fato era o de um mercador abastado, mas tinha uma certa maneira de levar maquinalmente a mão à cintura, como se procurasse o punho de uma espada, e isso despertou Fiora.
Ao vê-las aproximarem-se, o homem saudou profundamente as duas mulheres, endereçou a Florent uma despedida desenvolta com a ponta dos dedos e perdeu-se na multidão.
Quem era aquele homem? perguntou a jovem.
Um mercador. Veio comprar sedas, mas o que é engraçado é que é vosso compatriota, dona Fiora.
Florentino? Parece-me que, se já o tivesse visto, lembrar-me-ia!
Não. Não é de Florença. É de uma outra cidade cujo nome esqueci. E não me pergunteis o seu, porque compreendi-o mal e seria incapaz de vo-lo repetir...
Interessante disse Léonarde, zombeteira. Podeis, ao menos, dizer-nos o que queria?
Posso. Ele reparou na beleza das nossas mulas e queria comprar uma para substituir a que morreu de doença. É claro que recusei sem lhe dar a mínima esperança. Foi por isso que se afastou ao ver-vos aproximar, sem dúvida para não parecer importuno.
O que supõe uma grande delicadeza disse Léonarde. É curioso, mas não me parece que seja homem para tais escrúpulos. Fiora, essa, não disse nada. Não gostara do olhar que o desconhecido lhe dirigira. Não se parecia, de todo, com os olhares masculinos a que estava habituada. Não tinha qualquer admiração, qualquer doçura, antes uma crueldade fria juntamente com uma expressão de triunfo, que lhe provocara um arrepio na espinha. Fora como se, saindo de um local iluminado, se visse subitamente em frente de um abismo, no fundo do qual rastejassem animais imprecisos. Estais tão pálida! notou Léonarde de súbito inquieta, Quereis regressar? Não, não, estou bem! Não quero regressar sem ter feito as minhas compras. A má impressão desapareceu imediatamente face à luz quente do Sol e à alegria geral. Os sinos despejavam na cidade um carrilhão pleno de alegria e Fiora adorava o som dos sinos: atribuiu rapidamente o que acabava de sentir a um aumento de nervosismo devido à gravidez e foi alegremente que subiram todos para as mulas para percorrer a Grand Rue que atravessava a cidade de leste para oeste, desde a porta Billault, ou da porta de Orleães à porta de La Riche. O espectáculo da rua, apesar de não ser um dia de festa, era recreativo. Um pouco por toda a parte demoliam-se os edifícios mais velhos para construir outros novos e não era raro ver uma bela casa de madeira nova, de empenas flamejantes, com a loja aberta no rés-do-chão e um jardim nas traseiras, vizinho de um terreno ainda vago ou de um casebre que ainda não recebera o golpe de picareta dos demolidores. O Rei Luís, que gostava mais daquela cidade do que da sua capital, não cessava de se preocupar com ela: queria-a rica, poderosa, soberba e mais bem construída do que qualquer outra. Fora ele que decidira estabelecer em Tours fábricas de tecidos de seda, de ouro e de prata, cuja reputação começava a estender-se para lá das fronteiras e os diversos portos estabelecidos no Loire, na base das altas muralhas que cercavam a cidade, tinham uma actividade incessante. Porque a seda bruta, cujo único fornecedor era até há pouco Florença, era trazida do Oriente pelos navios franceses. E os burgueses de Tours, que no princípio se tinham insurgido contra a presença de operários vindos do lado de lá dos Alpes, tinham acabado por compreender que, uma vez mais, o seu Rei tivera razão e que a sua visão, a longo prazo, lhe permitia, sempre, ultrapassar os acontecimentos e produzir riqueza.
Por sua parte, Fiora, esquecendo que aquele comércio fazia concorrência à cidade da sua infância, gostava da loja de mestre Guin de Bordes, que passava por fornecer os mais belos tafetás, sobretudo aquela seda espessa a que começavam a chamar o ”gros”NI de Tours. A loja, com as suas madeiras escuras admiravelmente enceradas e os armários a abarrotar de maravilhas, agradava-lhe pela sua elegância e Fiora encontrava nela a boa companhia e a cortesia que lhe lembravam as lojas de outros tempos.
Queria um vestido novo, como acontece muitas vezes quando se vive durante muitos meses com a cintura deformada, comprou alguns de tafetá de um belo vermelho-coral e depois escolheu um tecido de veludo cor de ameixa para Léonarde e um belo pano de um azul quente que destinava a Péronnelle. Florent carregou tudo na sua mula e dirigiram-se para Carroi-aux-Herbes, perto do castelo, que dominava a imensa ponte sobre o Loire e as suas ilhas até ao bairro de Saint-Symphorien. Havia lá um certo albergue, célebre pelos seus patês de lúcio e Fiora, como lhe acontecia frequentemente desde que estava grávida, morria de fome. Instalaram-se, portanto, sob uma ramada contígua ao albergue para ali restaurar as forças da futura mãe.
O local era encantador, um pouco afastado da rua que, no prolongamento da ponte de vinte e cinco arcos, estava sempre muito animada. Através da parra já moribunda das vinhas apercebiam-se as pimenteiras azuis, os cata-ventos do castelo e a
Símbolo dos tecidos de Tours, como a renda de Bruxelas
flechá da capela onde Luís XI tinha casado com Carlota de Sabóia e onde os seus pais, Carlos VII e Maria de Anjou, tinham feito o mesmo. Esses acontecimentos não tinham sido suficientes para ligar o Rei àquela fortaleza elegante, tendo preferido Plessis.
Depois de terem provado o patê, regado com um excelente vinho de Vouvray, os três companheiros concederam a si próprios um momento de descontracção mastigando umas ameixas de conserva. A verdura onde estavam abrigados protegia-os do sol que aquecia os telhados das casas e iluminava o Carroi, mas o seu calor era normal para a época, não era a canícula que tinham tido de sofrer. Fiora e Léonarde sentiam-se fundir numa sensação de bem-estar que, geralmente, prenuncia o sono.
Não seria melhor regressarmos? perguntou esta. Não é propriamente um local onde devamos fazer uma sesta.
Está-se aqui tão bem! replicou Fiora. Só mais um bocadinho.
Nem por todo o ouro do mundo seria capaz de dizer porque lhe apetecia demorar-se ali. Talvez por causa daquela profunda paz, total, que a banhava, uma paz tanto mais preciosa quando se adivinha obscuramente que não vai durar, que se vai passar qualquer coisa e que o combate vai recomeçar. Evidentemente, não imaginava que esse combate pudesse ser outro que não o parto próximo e no entanto...
A quietude em que a cidade inteira parecia estar mergulhada voou subitamente em estilhaços. Ouviram-se gritos que ninguém compreendeu, sons diversos e o pisar de centenas de pés que corriam sobre o pavimento da rua. O estalajadeiro apareceu à porta para perguntar o que se passava e viu que toda aquela gente corria para a ponte. Alguém berrou:
Um prisioneiro! Trazem um prisioneiro numa jaula! Na ponte!
Fiora pôs-se imediatamente de pé, movida por uma força interior que não podia controlar.
Vamos ver!
Sois louca? protestou Léonarde. Para que ides contemplar um desgraçado?
. Não sei, mas tenho de ir. Para o terem metido numa jaula
é porque deve ser um prisioneiro importante.
É insensato! Isso não é bom para vós nem para a criança.
Ajudai-me, vós! acrescentou ela na direcção de Florent, que também se levantara e olhava para a jovem com inquietação.
Mas este abanou a cabeça sem responder. Conhecia suficientemente bem Fiora para saber que quando ela franzia a testa e cerrava os dentes, era impossível fazê-la desistir de uma decisão. Desta vez, a jovem contentou-se em virar o olhar para o seu jardineiro.
Vinde comigo, Florent! disse ela. Deveis ser suficiente para me proteger da multidão. A dama Léonarde espera-nos aqui!
Não faltava mais nada! protestou esta. Começo a estar farta de vos repetir que onde fordes, também eu vou. No entanto, exijo que levemos as mulas. Ir a pé seria uma loucura. Mas continuo a dizer que um tal espectáculo não foi feito para uma jovem perto do fim... aliás, para mulher nenhuma!
Um instante mais tarde, empoleirada na sua mula guiada por Florent o jovem achara mais prudente deixar a sua no albergue com as compras Fiora avançava com dificuldade no meio da multidão que se formara aos primeiros gritos e se amontoava para transpor a porta de Saint-Genest, que dava directamente para a ponte. A corrente passava lentamente, porque naquele local o Carroi-aux-Herbes, separado do castelo por um profundo fosso alimentado pelo Loire, estreitava. Em breve não correria de todo. Desencorajado, Florent virou-se para Fiora, que dava ares de impaciência.
Faríamos bem se esperássemos aqui! O prisioneiro não vai ficar na ponte. Vai, certamente, entrar na cidade. Vê-lo-emos ao passar.
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