Chegou o momento em que Khatoun, quase desaparecendo nas profundezas da arca, saiu com um último véu e, deixando-se cair numa almofada, disse languidamente com um suspiro magoado:
É tudo, patroa. Já não há mais nada. Fiora abriu uns grandes olhos incrédulos.
Tens a certeza?
- Vê tu mesma, se não me acreditas. Nesse caso, isto é tudo o que eu possuo?
E parece-me que já é muito. Certamente há princesas que não têm tanto... |
Simonetta Vespucci tem mais do que eu. Ela sai sempre com uma toilette nova. É verdade que toda a Florença só tem olhos para ela e que não cessam de lhe oferecer presentes... Sentindo umas lágrimas de cólera subirem-lhe aos olhos, Fiora girou nos calcanhares e foi, com um ar acabrunhado, apoiar-se à graciosa janela de colunas, de onde se podia ver o curso tranquilo do Arno, brilhant^ sob o sol claro de Janeiro. Sem virar a cabeça, ordenou: Arruma esses trastes todos! Não vou sair. -Não queres ir ao torneio? gemeu Khatoun, desiludida porque acompanhava Fiora a toda a parte onde ela ia e queria ver a festa guerreira. |
Nem ao torneio nem a parte nenhuma. Fico aqui. Espero que, pelo menos, vos digneis vestir-vos? Que Maneiras são essas, exibindo-vos em camisa à janela? Procurais apanhar frio, ou quereis que os marinheiros do rio vos vejam? Dame Léonarde acabava de entrar, trazendo num tabuleiro leite quente e fatias de pão com mel. Os 17 anos passados sobre a dramática partida de Dijon não tinham mudado muito a prima de Bertille Huguet. Estava apenas um pouco menos angulosa e graças à existência generosa e confortável que havia no palácio Beltrami, adquirira umas formas mais macias e uns traços do rosto menos pronunciados. No entanto, a sua voz conservava a mesma entoação inflexível de comando, mesmo e sobretudo quando se dirigia a Fiora, a quem adorava, mas a quem não deixava passar nada.
No seguimento de uma viagem por mar, no decurso da qual acreditara ter entregado a alma ao Criador, a borgonhesa descobrira Florença, estendida ao sol no seu quadro de doces colinas, com um espanto que: nunca mais a abandonara. A cidade da Flor-de-lis Vermelha transbordava de cor e vida e Léonarde adoptara-a tão espontaneamente como se pusera ao serviço de Francesco Beltrami, cujo calor e generosidade a tinham conquistado. Amara a elegância severa do palácio que o negociante habitava nas margens do Arno e depois fora de surpresa em surpresa. Assim, aprendera que as escalas de valores usadas na Borgonha e em França não eram as mesmas na grande cidade mercantil, onde o que se chamava Artes maiores: Calimala, ala, a Seda e a Banca estavam na mó de cima. A nobreza, tão preponderante noutros sítios, não o era ali, salvo se conseguisse fazer-se admitir no «privilégio» do comércio. Florença era uma república, ou, pelo menos, pretendia sê-lo, se bem que aceitasse obedecer a uma rainha sem coroa, uma dinastia de banqueiros poderosamente ricos, mas sem a mínima gota de sangue aristocrático: os Médicis. E Léonarde descobrira com prazer que o seu novo patrão pertencia à fina flor da cidade, da qual tinha todas as hipóteses de vir a ser, um dia, um dos priores, ou até o magistrado municipal, quando atingisse os 45 anos.
Na casa Beltrami, a recém-chegada fora adoptada com a mesma facilidade com que aprendera a língua toscana, com uma rapidez incrível. Fizera da façanha de falar duas línguas um ponto de honra - e até três, se se contar com o latim da Igreja - parecendo-lhe um símbolo de dignidade e intelectualidade extremamente lisonjeiro. Mas, com Fiora, de quem unicamente se ocupara nos primeiros tempos, falava apenas em francês, aliás com o acordo de Beltrami, para que a criança conservasse, pelo menos nesse aspecto, as suas raízes. O que lhe permitira nunca a tratar pelo tu habitual florentino, porque, para ela, a pequenita, para todos Fiora Beltrami, filha «natural de Francesco Beltrami e de uma nobre dama que morrera do parto», não deixava de ser filha de Jean e Marie de Brévailles, quer dizer, um puro produto da nobreza borgonhesa. Fiora assimilara as duas línguas com igual facilidade e até lhes acrescentara o latim e o grego.
Cinco anos depois da chegada de Léonarde, a velha governanta de Francesco, Nanina, adormecera no seio do Senhor e a borgonhesa fora chamada a substitui-la. Desde então exercia, sem a partilhar, a sua autoridade sobre as diversas casas do negociante, para plena satisfação de ambos. Apenas Marino Betti, o antigo recoveiro, transformado em intendente de uma propriedade, escapava à sua autoridade para seu alívio, adivinhando nele, senão um inimigo, pelo menos um adversário. Com efeito, juntamente com o seu patrão e a governanta, Marino era o único a conhecer a origem de Fiora, coisa que ele nunca admitira com sinceridade. Assim, Beltrami julgara por bem atar-lhe a língua por meio de um juramento solene prestado diante do primeiro altar da Virgem encontrado na estrada, acrescentando-lhe algumas vantagens financeiras muito convincentes.
Quanto a Jeanette, a jovem ama-de-leite, a sua frescura loura conquistara um fazendeiro de Mugello. Tornara-se alegremente na signora Crespi e passara a dispensar o seu leite apenas às crianças que todos os anos, pontualmente, dava ao marido.
Evidentemente, as pessoas de Florença tinham sabido, não sem surpresa, a súbita paternidade de um dos celibatários mais ricos da cidade, mas, herdeiras do pensamento e filosofia gregos, não se apegavam muito à severa moral cristã e a bastardia não era considerada um defeito redibitório, sobretudo se era acompanhada pela beleza. A criança revelou-se rapidamente encantadora e os numerosos amigos do seu suposto pai acolheram-na unanimemente de braços abertos. As mulheres tinham-se mostrado mais difíceis, sobretudo aquelas que tinham filhas para casar, mas muitas esperavam levar Beltrami ao altar, proclamando que era indispensável que a pequenita tivesse uma mãe.
Francesco fizera orelhas moucas, sem que, por isso, as mais tenazes perdessem a esperança. Mas havia um pequeno clube de opositoras irredutíveis, cuja chefe de fila oculta era a prima direita de Francesco, Hieronyma, que tinha contraído matrimónio com a nobreza ao casar com um Pazzi. As suas razões eram transparentes, porque, enquanto Beltrami não se casasse e não tivesse filhos, ela e o seu filho Pietro eram os seus únicos herdeiros e a herança, na ocorrência, não era daquelas a que se renuncia com facilidade.
Beltrami não se deixava enganar pelos seus encantos aparentes e os seus estados de alma não o deixavam muito preocupado. À medida que os anos iam passando, ela foi-se persuadindo que a pequena Fiora era realmente filha dele. O amor que numa terrível manhã de Inverno ele votara espontaneamente a uma jovem desconhecida cuja beleza o deslumbrara, transferira-o para aquela criança, encontrando uma alegria profunda ao vê-la crescer e desabrochar no ninho que lhe oferecera. Fiora era suficiente para a sua felicidade, enquanto esperava o dia em que Deus, fazendo-o passar para o outro lado do espelho, o faria reencontrar a bela mulher dos seus amores...
Léonarde pousou o tabuleiro sobre o leito, segurou Fiora por um braço e puxou-a para trás, fechando, com a mão livre, a janela composta de pequenos vidros redondos, acoplados uns aos outros por meio de lamelas de chumbo.
Ides, enfim, ser razoável? resmungou ela.
Não me apetece ser razoável protestou a jovem, torcendo-se como um verme para escapar à mão da governanta. Aliás, isso quer dizer exactamente o quê, ser razoável?
Quer dizer que vos deveis comportar como uma jovem dama digna desse nome disse Léonarde, habituada há muito ao character insubordinado daquela que, no seu foro interior, considerava como sua filha. Quer dizer que deveis comer o que vos trouxe.
Não quero. Não tenho fome.
Ora, fazei de conta! E depois, deixai que vos vistam! O vosso pai
mandou chamar-vos. Não tencionais apresentar-vos a ele em camisa?
Como por milagre, a rebelde acalmou-se. Amava Francesco com um amor profundo, alegre e confiante. A ideia de lhe causar qualquer dor mesmo ligeira, provocava-lhe grandes acessos de cólera e Léonarde sabia-o muito bem. Docilmente, Fiora comeu uma fatia de pão e bebeu um pouco de leite, enquanto Khatoun, a um sinal da governanta, apanhava um dos vestidos desdenhados, preparando-se para vestir a sua patroa. Um instante mais tarde Fiora aparecia vestida com uma túnica de cetim branco e com o vestido propriamente dito, feito de um belo veludo cor de folhas de Outono, que apertava por baixo dos seios para deixar ver o cetim da túnica. As pesadas pregas, que rematavam numa curta cauda, eram cingidas bem alto, mesmo sob o peito, por uma fita dourada que rodeava os ombros e apertava as mangas estreitas, tão longas que cobriam a parte de cima da mão.
Enquanto Khatoun dava um laço nas mangas, cujas aberturas deixavam passar no pescoço e nos ombros o tecido de cetim branco ligeiramente tufado, Léonarde, armada com uma escova, esforçava-se por pôr em ordem a abundante cabeleira de um negro profundo, que caía em desordem pelas costas da jovem.
Estou horrível! declarou ela em tom dramático.
É o que eu digo todos os dias quando entro aqui troçou Léonarde. Como é que messer Francesco, que é um homem de bom gosto, pode suportar a presença de uma rapariga tão feia sem ficar cego?... Não digais asneiras!
Fiora era sincera. Educada numa cidade onde as mulheres só sonhavam em ser louras e se davam a trabalhos infinitos para clarear os cabelos por meio de enormes quantidades de unguentos e intermináveis banhos de sol com as cabeleiras metidas em chapéus de cartão sem fundo, era incapaz de dar o devido valor a uma cabeleira flexível e brilhante, sem dúvida, mas demasiado escura.
- O meu pai ama-me murmurou ela com lágrimas nos olhos.
"Fiora e Lourenço O Magnífico" отзывы
Отзывы читателей о книге "Fiora e Lourenço O Magnífico". Читайте комментарии и мнения людей о произведении.
Понравилась книга? Поделитесь впечатлениями - оставьте Ваш отзыв и расскажите о книге "Fiora e Lourenço O Magnífico" друзьям в соцсетях.