O teu dote?
- Sim. Na noite que precedeu a sua partida, aqui mesmo, na capela do convento vizinho, casei com o enviado da Borgonha. Ele sabia a verdade acerca do meu nascimento e exigiu o casamento, porque tu te tinhas recusado a ajudar o senhor dele. Eu sou a condessa de Selongey.
Provas! Tu tens provas disso? exclamou Lourenço, cujo rosto, depois de empalidecer, estava a ficar púrpura. Fiora ia responder que não sabia onde estavam as provas quando uma outra voz se fez ouvir:
Ei-las aqui, senhor! disse tranquilamente Léonarde, que avançou com um rolo na mão, de onde pendia uma fita verde. Encontrarás aí a certidão de adopção de donna Fiora, o seu contrato de casamento assinado e selado pelo seu marido, a cópia da carta de câmbio e até um atestado com a assinatura e o selo do padre António, o prior do convento. Ser Francesco Beltrami, na véspera da sua morte e porque se sabia vigiado por inimigos, entregou-me tudo isso...
O Magnífico pegou no rolo e estendeu-o a Poliziano, que perdeu de imediato a sua imobilidade de estátua e, com passo pesado, foi sentar-se na cadeira alta de braços de Demétrios.
Lê! disse ele apenas.
O poeta desfez o laço da fita, percorreu os documentos com um olhar habituado e voltou a enrolá-los de novo:
Está tudo em ordem, senhor!
Existe outra prova disse Léonarde. E, tirando do corpete o anel de ouro com as armas dos Selongey, mostrou-o a Lourenço e depois, com um tudo nada de solenidade, meteu-o no dedo de Fiora, que fechou a mão sobre ele sem poder evitar um arrepio.
Portanto murmurou Lourenço tu és a mulher de um dos homens mais importantes da Borgonha? O Magnífico deu uma pequena risada sem alegria e acrescentou: Nesse caso, por que razão o teu marido não veio, quando ainda era tempo, reclamar-te diante dos que te acusavam? Por que não exigiu ele uma reparação pelas armas da ofensa involuntária feita ao seu nome?
Porque a esta hora disse Fiora com amargura eu sou, certamente, uma viúva. Messire de Selongey estava decidido a morrer para se punir por ter, ao casar comigo, desonrado o seu nome... Ele vendeu-se para ajudar o Temerário!
Lourenço levantou-se, deu alguns passos para reencontrar um pouco de calma e depois, parando diante de Fiora, cujas lágrimas caíam em silêncio pelo rosto imóvel:
Pobre criança! disse ele com infinita doçura. Conseguirás tu, um dia, voltar a acreditar na lealdade e no amor de um homem?
Incapaz de articular uma palavra e sentindo-se de súbito infinitamente cansada, ela abanou a cabeça, negativamente.
Em todo o caso continuou Lourenço se o teu marido morreu, foi há muito pouco tempo. No dia em que o teu palácio foi pilhado ele estava lá!
De repente, o sangue subiu às faces de Fiora:
É impossível! disse ela com voz fraca...
Não disse Poliziano é verdade. Eu vi-o e a princípio hesitei em reconhecê-lo, porque estava vestido como um homem qualquer de baixa condição. Estava na multidão; olhava. E vi que falava a alguém. Sem dúvida perguntava o que queria aquilo dizer. Como não sabia o que o atraía ali, hesitei por um momento em abordá-lo. Quando me decidi, a multidão impediu-me de me aproximar e ele desapareceu sem que lhe pudesse seguir o rasto...
Eu pensei que ele tinha vindo espiar continuou Lourenço. Mandei vasculhar os albergues e as tabernas, mas ninguém o tinha visto, ninguém pôde dizer o que lhe tinha acontecido...
Fiora, de olhos brilhantes, escutava aquelas palavras como se estivesse a ouvir os anjos a cantar:
Ele voltou! suspirou ela. Ele voltou, quando tinha jurado não me voltar a ver...
Perdoa-me o que te vou dizer, Fiora disse Lourenço mas tens a certeza que ele andava à tua procura?
E de quem havia de ser?
Do teu pai!... A cidade de Neuss continua a resistir ao borgonhês e antes de ontem, primeiro de Maio, a trégua assinada há três anos entre a França e a Borgonha, e prorrogada por duas vezes, chegou ao fim... definitivamente!
Ousas insinuar que ele vinha em busca de mais dinheiro?
Que outra coisa havia de ser? Ele deve ter sabido o que te aconteceu, se perguntou às pessoas que estavam na rua... e, no entanto, voltou a partir, sem sequer te procurar...
Ao ver Fiora oscilar nas pernas como uma grande flor sacudida pelo vento, Demétrios interveio e, oferecendo à jovem o apoio do seu braço:
Não podemos, ao menos, conceder-lhe o benefício da dúvida? reprovou ele. É mesmo necessário que ela parta desesperada? Recordo-te respeitosamente que, ao chegar aqui, tu insististe que era urgente que nós fugíssemos desta cidade. É grave, parece-me e já que nos expulsam...
Eu não vos expulso disse Lourenço, aborrecido tento, antes, salvar-vos, porque, apesar de não acreditardes, sois-me muito queridos, um e outro. E a prova está aqui!
O Magnífico tirou do traje uma carta selada com as suas armas, que estendeu a Demétrios:
Esta carta é para o rei Luís de França, a quem te envio. Ele acolherá o hábil médico que tu és, porque ele sofre, sem se poder curar... de umas hemorróidas bem incomodativas. Além disso, digo-lhe que tu és meu amigo.
Agradeço-te. E... ela? perguntou Demétrios apontando com a cabeça para Fiora, que Léonarde estava a ajudar a sentar.
Pensei que pudesses conduzi-la a Paris, onde ela... onde Beltrami tinha um primo, que lhe geria o balcão local. Ali não lhe faltaria nada, pois Donati, que gere actualmente os negócios do seu pai, velaria por ela. Mas o que acabo de saber muda muitas coisas. Arranja-me com que escrever, enquanto vos preparais para a partida...
No que me diz respeito, está tudo pronto disse Demétrios.
Nós também! disse Léonarde.
O médico tinha disposto em cima da mesa o necessário para escrever e Lourenço já pegava na pena quando Fiora o deteve:
Que vais fazer?
Recomendar-te ao rei Luís, para que...
... a mulher de Philippe de Selongey possa servir-lhe de refém? Tu próprio acabas de dizer que não conto nada para o homem a quem fui unida.
Não disse Lourenço gravemente. Para lhe dizer que lhe envio a filha... infeliz de Francesco Beltrami, o amigo que perdi. O seu nome é conhecido na corte de França.
Ele ia começar a escrever, mas ela agarrou na folha de papel ainda virgem e rasgou-a:
Deixa nas minhas mãos o meu destino! Enquanto não for reconhecida inocente de tudo o que me imputaram e os meus direitos restaurados aos olhos de todos... e por ti, não quero saber das tuas recomendações.
Fiora, suplico-te.- deixa passar o tempo!
O tempo? Em que poema é que Petrarca diz: «Antes de eu alcançar a margem desejada, o loureiro perderá as folhas verdes...»? Tu nunca ousarás ir contra a vontade do povo, Lourenço... mas toma cuidado, que um dia ele pode deixar-se atrair por um novo ídolo! E toma cuidado com o Papa!
Direita e orgulhosa, a cabeça erguida como se caminhasse para a glória em vez de dar os primeiros passos numa direcção cujo destino final ignorava, Fiora virou as costas ao Magnífico, ao homem em quem estava encarnada toda a graça e esplendor da sua juventude... e saiu da sala.
Um quarto de hora mais tarde, entretanto, vestida com o gibão verde que lhe fora dado por Chiara, pousava o pé no estribo que Lourenço lhe segurava. Era o seu próprio cavalo que ele lhe dava, tal como Demétrios e Léonarde recebiam os cavalos que tinham trazido Poliziano e Savaglio. Os três homens regressariam a Badia a pé. Esteban tinha a sua montada habitual e a mula, que o servia a ele e ao seu patrão indistintamente, levava as poucas bagagens.
Demétrios, antes de o deixar, olhou para o pequeno castelo que lhe oferecera a sua primeira paragem tranquila e doce, após tantos anos de vagabundagem. Ia ser fechado a menos que a multidão furiosa lhe pegasse fogo no dia seguinte! e a bela Samia regressaria a Badia ou ao palácio da Via Larga. O grego sabia que, apesar de tudo, deixava algumas amizades: Poliziano abraçara-o chorando e o próprio Lourenço o apertara nos braços... murmurando-lhe que havia ouro nas sacolas do seu cavalo, assim como nas da montada de Fiora... Mas o médico não estava triste: pensava na sua vingança, que ia, por fim, ser possível graças àquela bela mulher que o céu... ou o diabo fizera sua companheira e talvez sua cúmplice...
Além disso, estava demasiado habituado às partidas frequentes para que uma tal coisa lhe fosse penosa.
Sem o querer confessar, Léonarde sentia-se feliz. Reencontrara a sua pequenina e ia rever a sua terra natal, aquela Borgonha que a beleza de Florença nunca conseguira fazê-la esquecer. Pelo menos, era um país realmente cristão, onde não se cantava a missa depois de se louvarem divindades pagãs!
Esteban não pensava em nada. Iria para onde fosse o homem ao qual se ligara, mas, ao mesmo tempo, estava contente por partir. Amava de mais a aventura e a zaragata para se satisfazer com os prazeres do mercado e com uma vida tranquila no seio de uma natureza agradável. Era verdade que as coisas se tinham tornado mais apaixonantes com a entrada nessa vida daquela que ele chamava para si próprio «a madona dos olhos cinzentos», mas ainda bem que iam para outros horizontes... Horizontes onde havia guerra.
Fiora escutava a noite. O vento levantara-se, trazendo com ele os ruídos da cidade que não acalmaria tão cedo. Conseguia ver as luzes instáveis e os fumos leves que, apertados na cintura da muralha, evocavam a cratera de um vulcão que desperta... Era a sua morte que pediam lá em baixo e ela bem podia perder qualquer esperança de regresso. No entanto, a despeito do que sofrera, as raízes do seu coração permaneceriam mergulhadas na cidadela da Flor-de-lis Vermelha. A voz de Lourenço, que segurava ainda as rédeas do cavalo, chegou-lhe como que num sonho...
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