Nós dois já não temos família disse ela docemente. (
Tu tens um marido... Não. Isso foi um sonho que eu tive e que se transformou numa coisa ridícula. Se o quero encontrar é para o fazer pagar o meu sofrimento e o seu desprezo. Ele levou-me tudo sem nada me dar, senão um nome que eu nunca usarei. Ao passo que tu salvaste-me e até, com | risco da tua própria segurança, assumiste a minha vingança. E como misturámos os nossos sangues, gostaria que visses em mim... uma filha. Uma filha! Eu podia ser teu avô, Fiora. Além disso, não sabemos | o que o futuro nos reserva...
Nem tu?
Nem eu! O véu do destino nem sempre se ergue e o curso das estrelas omite muitos pormenores. Talvez seja melhor não nos deixarmos apanhar na armadilha da afeição! Podemos vir a sofrer. Unimo-nos, os dois, para sermos companheiros de combate: tentemos ficar por aí, mas velarei por ti... como um avô. E não esquecerei nunca o que acabas de me oferecer: o meu primeiro instante de alegria depois da morte de Teodósio...
Por sua vez, o médico pegou na mão de Fiora, pousou nela um beijo ligeiro e depois tomou-lhe o braço:
É hora de comermos. Desçamos para evitar que Esteban suba cá acima para nos vir chamar.
Ao fim do dia voltaram ambos a subir à torre. Da cidade vinha um rumor juntamente com nuvens de poeira. Passava-se lá qualquer coisa que desencadeava a agitação popular, sempre à flor da pele entre os Florentinos. Não era um tumulto, porque a Vacca, o grande sino da Senhoria, que servia apenas para tocar a rebate, continuava mudo. Subitamente, fizeram-se ouvir toques de trombeta e Demétrios inclinou-se, pondo’ a mão em pala diante dos olhos:
Repara! O Sol ainda não se pôs e já estão a fechar as portas... Era verdade. Mesmo àquela distância podia ouvir-se o barulho das grades que caíam e o ranger da ponte levadiça que subia. O olhar agudo de Demétrios, ajudado pelo ar puro das colinas, conseguira aperceber aqueles movimentos. A cidade fechava-se mais cedo do que habitualmente. Parecia, até, que havia mais soldados nas muralhas...
Estará um inimigo em marcha contra nós? perguntou Fiora.
Se assim fosse, a Vacca teria tocado para chamar às armas. Não, é no interior que se passa qualquer coisa e querem evitar que a agitação se espalhe ao campo... Mas, repara! Há qualquer coisa que arde lá em baixo...
Com efeito, num ponto da cidade, perto do rio, uma espessa fumarada negra, atravessada por chamas vermelhas, subia...
Meu Deus! gemeu Fiora. É uma loucura acender uma fogueira numa cidade onde há tantas casas de madeira! E, dir-se-ia que é perto de nossa casa...
Demétrios não respondeu. Os dois ficaram ali um momento, vendo aquele fumo subir a sul e o Sol a mergulhar no mar. Os campos tornaram-se violetas e a calma da tarde permitiu distinguir melhor o alarido que reinava no interior da cidade fechada... Fascinados, o grego e a jovem não conseguiam desviar os olhares daquela espécie de caldeirão fervilhante, onde até os telhados, sob a poeira e à luz incerta, pareciam mover-se, como vagas. A voz ofegante de Esteban, que eles não tinham ouvido chegar, estalou de súbito:
Patrão! O senhor Lourenço acaba de chegar! Quer ver-te, a ti e a donna Fiora! Depressa!
Desceram os três à pressa, mal acreditando no que estava a acontecer. Mas Lourenço tinha mesmo chegado. Metido no traje verde de que tanto gostava, estava de pé perto da janela do gabinete de Demétrios na companhia do seu amigo Poliziano, que brincava com as suas luvas, encostado a um dos armários. A preocupação marcava-lhe o rosto magro, mas pareceu a Fiora maior do que da última vez que o vira, sob as abóbadas da Senhoria. Ao ouvi-los entrar, o Magnífico saiu da janela e virou-se para eles:
Tu aqui, Senhor? perguntou Demétrios inclinando-se, ao mesmo tempo que a sua companheira dobrava ligeiramente um joelho numa saudação rígida. Que grande honra.
Era necessário que viesse, porque o tempo urge. Há pouco saí da cidade pela Badia, onde decorre uma reunião da nossa Academia platónica, mas tendo dado ordem para que fechassem as portas logo a seguir. Elas só se voltarão a abrir à hora habitual, amanhã. É preciso que esta noite vos afasteis o mais possível daqueles que querem a vossa morte!
Podeis dizer-nos o que se passa, senhor? perguntou Fiora com a voz gelada. Sabemos que o corpo de Pietro Pazzi foi pescado do Arno e que Pippa foi presa, mas não vejo por que razão nos querem matar, a nós!
Porque essa mulher falou. Ela acusa-te de teres apunhalado o corcunda com a ajuda de um feiticeiro vestido de mendigo...
Eu? E como é que entrei em casa dela?
Ela diz que te conhece há muito tempo, que tu... ias a casa dela para te encontrares com homens e que, naturalmente, foi a casa dela que foste buscar refúgio quando fugiste do convento... Pietro era... um dos que ias encontrar lá, porque ele estava apaixonado por ti...
E que mais? exclamou a jovem. Nesta cidade, na tua cidade, pode-se dizer seja o que for? E acreditaram nela, claro?
Acredita-se sempre no que diz a populaça.
A sério? Nesse caso, diz-me como é que a populaça recebeu a notícia da prisão de Hieronyma? Como é possível que o seu sogro tenha pintado a manta na Senhoria?
O povo não soube nada dessa prisão.
Lourenço desviou os olhos daquele rosto jovem resplandecente de cólera e a sua voz rouca pareceu ensurdecer ainda mais quando disse:
Hieronyma fugiu da Stinche antes de a notícia se saber. Está em fuga e ninguém sabe por onde anda...
O quê? gritaram ao mesmo tempo Fiora e Demétrios, mas foi o grego que retomou a palavra:
Como foi isso possível?
Na milícia havia dois sujeitos dos Pazzi, que preveniram imediatamente o velho Jacopo. Ele foi com a sua gente e com o monge espanhol buscar a nora, que estava inconsciente, aliás. O que lhes permitiu dizer que ela fora vítima de uma terrível maquinação e de um sortilégio... A repescagem do corpo de Pietro e as declarações do Mulherão só serviram para deitar mais achas para a fogueira. Aquele frei Inácio pregou durante todo o dia, nas praças e nos mercados, para que te apanhem, Fiora, e a ti, Demétrios...
E tu? lançou Fiora que fazias tu enquanto tudo isso acontecia? Tu, o senhor de Florença, o todo-poderoso, o Magnífico? Que fazias tu enquanto assassinavam o teu amigo, o meu pai, que fazias tu enquanto me punham em Santa Lúcia, enquanto me arrancavam do conVento para me atirarem para o Mulherão, para ser entregue a um qualquer e, sobretudo, a esse miserável Pietro, que até já tinha começado a estrangular-me? Eu estaria morta sem Demétrios, porque tu não fizeste nada. Tu deixaste que me despojassem de tudo, deixaste...
Que pusessem fogo ao palácio Beltrami disse docemente o grego. É o palácio Beltrami que está a arder, não é?
Fiora virou-se e olhou para ele com horror:
É... a minha casa?
É, Fiora disse Lourenço é a tua casa. Quando compreenderás tu que nós vivemos numa república e que eu não tenho poder, apesar de fazer esta mesma república rica, feliz e poderosa?
Estou a ver. Preferes deixar um monge estrangeiro manipular a população enquanto discutes com os reis e os grandes deste mundo! Mas, sabias que esse homem, esse enviado oculto de um Papa que te odeia, ainda é mais teu inimigo do que meu? Eu sou um peão no xadrez dele, um pretexto, apenas.
Que sabes tu? Sei mais do que tu... E rapidamente, a jovem contou o que se passara na sala capitular de Santa Lúcia. Deixa o monge acabar a sua obra! acrescentou ela com desprezo e em breve o sobrinho de Sisto IV será o senhor de Florença, um senhor que, esse, saberá impor a sua vontade! À medida que ela falava, o rosto simiesco se bem que sedutor de ’ | Lourenço ia ficando esverdeado, como se o seu traje de veludo tivesse, subitamente, desbotado para a sua pele.
O monge dorme em San Marco. Esta noite mesmo será preso e conduzido sob escolta à fronteira de Florença. Agradeço-te por me teres dado a prova do que eu já suspeitava. Demétrios pode confirmá-lo...
Sem dúvida! disse este com ironia mas nós continuamos sujeitos à vingança pública... ao passo que a dama Pazzi corre pela estrada fora.
Prometo-te que a mandarei procurar, mas é verdade que não posso fazer nada por vós, senão dizer-vos que partais e que arranjeis um lugar seguro...
Eu hei-de procurá-la sozinha lançou Fiora furiosamente. Não te preocupes comigo, já que nem sequer foste capaz de vingar o meu pai, assassinado e vilipendiado...
Marino Betti está morto. E fui eu que mandei Savaglio matá-lo.
De noite e em casa dele, não em pleno dia e na praça pública! O que faz com que, aos olhos de todos, o meu pai continue a ser um miserável, um mentiroso e por que não um traidor?
Por que não, com efeito? perguntou Lourenço, cuja cólera subia. Tenho todas as razões para suspeitar que ele traiu a república, favorecendo com o seu ouro as armas do duque da Borgonha. Os Fugger reclamaram o reembolso de uma letra de cem mil florins, pagáveis ao tesouro da Borgonha através da conta de messer Philippe de Selongey. Que tens a dizer a isto?
Nada... a não ser uma pergunta: a soma foi paga?
Ao banco Fugger? Certamente que não. O teu pai morreu e os seus bens estão sob o controlo...
Sob o teu controlo! E sem qualquer direito!
Era a única maneira de evitar que caíssem nas mãos dos Pazzi, porque a tua adopção está cheia de equívocos! Quanto aos Fugger, tanto pior! Eles que se arranjem com o duque da Borgonha...
E assim disse Fiora lentamente o meu pai passa, não só por miserável e mentiroso, mas também por desonesto, ele, cuja palavra nunca foi posta em dúvida? Esse dinheiro era o meu dote!
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