Não, Esteban não gostava de bisbilhotices. Odiava-as quase tanto como os padres, que a meias com o alcaide da sua terra tinham condenado a sua mãe, porque o acusador era rico e ela pobre... A sua vida ao serviço do médico grego, filósofo, astrólogo e mágico convinha-lhe às mil maravilhas, porque, para além de pequenas tarefas domésticas quotidianas, tinha uma certa liberdade: nunca Demétrios lhe reprovara o seu gosto pelo vinho e pelas mulheres e ele amava ambas as coisas quase tanto como o combate, as armas e a guerra, que eram a sua vida desde os 12 anos de idade...

Decidido a obter informações tão claras quanto possível, o castelhano confiou a sua mula já carregada ao albergue da Croce di Malta onde o conheciam e dirigiu-se ao palácio da Senhoria e seu complemento, a loggia del Priori, onde era quase sempre certo encontrar três ou quatro notáveis a conversar. Aquilo permitiu-lhe ver chegar o velho Jacopo Pazzi, que ocupava então a sua casa florentina e que entrou de rompante, carregando como um touro furioso, no velho palácio. Saiu de lá um momento mais tarde escoltado pelo Bargello e por um esquadrão de guardas. Um arrepio percorreu, então a praça: o patriarca fora preso? Mas durou apenas um instante. A tropa dirigiu-se para a Ponte Vecchio. Esteban seguiu a pequena multidão que se formara instantaneamente, o que lhe permitiu assistir à prisão do Mulherão e do seu irmão. Pippa resistiu de tal modo que foram necessários cinco homens para a segurar. Levaram-na finalmente para a Stinche, a prisão da cidade, vociferando e berrando imprecações e injúrias, às quais os assistentes se apressaram a responder, porque, apesar de ignorarem o que se passava, os Florentinos não perdiam uma ocasião para se fazerem ouvir e manifestar. Quando alguém era levado para a prisão, ouvia-se sempre gritar «À morte!» ao acaso, com boas hipóteses de errar apenas uma em duas vezes.

Bastante mais frio, Esteban achou que já tinha visto o suficiente e que já era tempo de ir prevenir o seu patrão do que se passava, tanto mais que o cortejo de Pippa, ao voltar a transpor a ponte, tinha mais uma unidade: frei Inácio, que se juntara ao velho Pazzi, regulando o seu passo pelo do velho e falando-lhe com loquacidade. Ora, o castelhano detestara instintivamente o seu compatriota, que achava falso, cruel e pérfido, e não se enganava muito. A aproximação entre aqueles dois homens pareceu-lhe extremamente inquietante...

Servindo-se dos cotovelos para afastar a multidão, o castelhano foi buscar a sua mula, ao carregamento da qual acrescentou uma pequena bilha de azeite, foi beber a sua taça de vinho habitual para não despertar a curiosidade e deixou a cidade rapidamente, não sem reparar no ajuntamento que já se formava defronte do palácio dos Médicis fazendo um barulho terrível, porque toda a gente falava ao mesmo tempo e com grandes gestos.

Ao regressar a Fiesole encontrou Demétrios no seu gabinete, ocupado a embalar cuidadosamente alguns livros em pedaços de tecido e a guardá-los numa pequena arca pousada em cima de um escabelo. A um canto da mesa, sobre uma pele de gamo, estavam alinhados, brilhantes de uma limpeza recente e numa ordem perfeita, os instrumentos de cirurgia: lancetas, escalpelos, trépanos, agulhas direitas ou curvas, pinças e outros, que tinham seguido o médico desde Bizâncio e que ele tinha conseguido conservar apesar das vicissitudes das suas longas peregrinações. O velho saco de couro, que os continha habitualmente, estava pousado ao lado e aberto.

Esteban abraçou com um olhar rápido aqueles preparativos:

Mestre disse ele vais partir?

É preciso estar sempre pronto para partir, meu rapaz. Mas, tu, diz-me porque regressaste mais depressa do que habitualmente? Vejo pela tua cara que tens qualquer coisa para me dizer.

É verdade e também é verdade que estou preocupado.

O castelhano não era homem de grandes narrativas. Em meia dúzia de frases contou o que tinha visto, espreitando no rosto do grego o efeito das suas palavras. Mas Demétrios, que acabara de encher a arca, contentou-se em fechá-la e dizer:

Ah!

Em seguida, aproximando-se dos seus instrumentos, enxugou-os cuidadosamente um a seguir ao outro e depois enrolou-os na pele de gamo, que introduziu no saco. Esteban observou-o em silêncio, percebendo que o médico reflectia. Ao cabo de um momento, Demétrios ergueu para ele os olhos:

Vai chamar donna Fiora! Ela está no jardim a dar de comer aos pombos...

Fiora entrou um momento mais tarde, uma silhueta delgada de negro e branco, asseada e convencional. A evadida do convento num hábito branco e sandálias de corda, a jovem grega de túnica púrpura e o pajem de gibão verde tinham desaparecido para dar lugar àquela jovem de luto, de cabelos sensatamente entrançados e Demétrios surpreendeu-se a si próprio ao lamentá-lo, mas os grandes olhos cinzentos continuavam os mesmos e o grego sabia que eles podiam reflectir todas as tempestades do céu e que aquela aparência elegante e serena escondia as chamas de um coração ardente e de um carácter orgulhoso e corajoso. Como se viesse em visita, Léonarde acompanhara-a e mantinha-se perto da porta com as mãos cruzadas no regaço, como convinha à acompanhante de uma dama nobre. Demétrios teve a tentação de lhe pedir para os deixar a sós, mas pensou que, agindo assim, aproximava-se das convenções sociais que tanto o irritavam. Por outro lado, Léonarde já tinha embarcado no mesmo barco batido pelos ventos e incessantemente ameaçado da sua aluna. Era inútil esconder-lhe fosse o que fosse, tanto mais que seria posta ao corrente logo depois, i O castelhano entrara atrás dela... Esteban acaba de regressar com notícias que eu acho inquietantes disse Demétrios. Deves ouvi-las. Ela ouviu-as e não pareceu ficar muito perturbada. Apenas a menção ao monge espanhol a fez franzir as sobrancelhas.

Ainda esse homem! suspirou ela. Como é possível ele ligar-se assim à causa dos Pazzi? Parece querer defendê-los contra tudo e contra todos... Se ele é na verdade o enviado secreto do Papa Sisto IV, fica tudo explicado, porque também é, certamente, o mandatário do seu favorito, Francesco Pazzi... Pensava que tinhas compreendido isso?

Sem dúvida! Mas ele é um desses padres fanáticos obcecados | pelo diabo e que vêem feiticeiros em toda a parte. Ora, a milícia, na | outra noite, deve ter encontrado Hieronyma no estado em que nós a deixámos: nua, estendida em cima de um altar satânico, marcada com o sangue do sacrifício e com o corpo do bebé degolado em cima do peito. Parece-me que isso deveria interessar frei Inácio em primeiro lugar? No entanto, Esteban viu-o a falar com Jacopo Pazzi como se fossem amigos!,|

Como se fossem amigos! aprovou Esteban como se fosse o eco. Tens razão, é estranho! disse Demétrios, que se virou para o seu criado: De facto, tu não desempenhaste completamente a tua ’ missão. Ouviste falar na dama Hieronyma, que a milícia deve ter atirado para a prisão?

O castelhano abanou a cabeça de cabelos hirsutos:

Não. Não ouvi dizer nada. Tinha acabado de chegar ao mercado quando soube que o corpo do seu filho acabava de ser retirado da água. Só se falava disso...

Estranho! A cidade devia estar em sobressalto. Quanto ao monge, era o suficiente para pedir a cabeça da família toda... e fala amigávelmente com o patriarca? É difícil de compreender!... Mas é preciso saber! Sela a mula, Esteban!

Onde vais? perguntou Fiora.

Ver o senhor Lourenço. Foi com ele que combinei a intervenção da milícia no monte Ceceri. Ele deve saber o que se passou a seguir!

Não vás! Qualquer coisa me diz que corres perigo pediu a jovem, angustiada. Estás a ver, sou eu que, hoje, estou com um pressentimento. Eles prenderam Pippa. Sabe Deus o que essa mulher vai dizer!

Ela não pode dizer nada. Só viu um mendigo...

Dotado de poderes pouco comuns. Tens a certeza que não subsiste qualquer recordação depois de se acordar do sono que tu provocas? O Mulherão é hábil, astuto; para salvar a vida, dirá seja o que for e acusará seja quem for...

Ou dirá que não sabe nada. Que o jovem Pazzi saiu de casa dela tal como entrou...

Talvez, mas uma coisa é certa: o velho Jacopo sabia tudo e por que razão o seu neto foi a casa de Pippa naquela noite. Fica aqui, peço-te! Esperemos um pouco! Lourenço, certamente, dar-te-á notícias...

A jovem tremia e a sua emoção atingiu Demétrios. Aliás, Esteban veio em seu socorro:

Ela tem razão, patrão. Não há pressa. Deixemos passar o dia e a noite. Amanhã, se quiseres, irei saber notícias assim que as portas se abrirem. Poderás dar-me uma carta para eu entregar ao senhor Lourenço... Não te reconheço, tu que nunca te deixas apanhar pela impaciência.

O médico encolheu os ombros e passou pelo rosto uma mão um pouco febril. Foi até ao saco de couro que fechara há pouco e apoiou-se nele como se procurasse nele a energia que lhe faltava. Em seguida, virando-se, olhou para Léonarde, que continuava junto da porta tão muda e imóvel como uma estátua:

E vós, dame Léonarde disse ele em francês qual é o vosso conselho?

Não sabia que a minha opinião tinha alguma importância aos vossos olhos, mas suponho que esperais um acontecimento qualquer desde esta manhã... um acontecimento que vos pode obrigar a partir. Se não, por que essa arca, esse saco, essas arrumações que ainda não cessastes de fazer?

Eu devia saber que nenhum pormenor deste género escapa ao olhar de uma boa governanta disse ele com um sorriso. É verdade: desde a noite passada que espero uma coisa qualquer sem saber dizer o quê. Sinto que se aproxima a hora de deixar esta casa. Nesse caso, que seja de livre vontade! Segui o conselho de Esteban! Umas horas a mais ou a menos não mudarão nada... Demétrios acenou com a cabeça e sem acrescentar mais nada, abandonou a sala. Fiora seguiu-o. Um atrás do outro e sem trocarem uma palavra, subiram ao alto da torre. A jovem procurava compreender por que razão, ainda há pouco, se opusera tão frontalmente à partida do grego, mas uma coisa era certa: naquele instante soubera, tão claramente como se uma voz secreta lho tivesse gritado, que, se Demétrios fosse a Florença, não voltaria a sair de lá vivo. E a ideia de perder aquele último amigo que, para a ajudar chegara ao ponto de matar, tornara-se-lhe insuportável. Aquele homem estranho e curioso, do qual ela tivera medo em tempos, tinha um lugar no seu coração, agora. Não era a profunda ternura sentida por seu pai nem o amor ardente que Philippe lhe inspirara e que ela suspeitava estar ainda vivo sob as cinzas, nem a afeição que votava à sua velha Léonarde e da qual Khatoun levara um pouco, nem a alegre amizade que a ligava a Chiara Albizzi, era antes um sentimento feito de reconhecimento, amizade e também de respeito um pouco receoso, parecido com aquele que votava antigamente aos mestres que lhe tinham aberto o espírito para a cultura ’ e para a beleza. Era, em resumo, uma coisa sólida e forte. Aliás, não estavam ambos ligados por aquele pacto que tinham concluído e pelo qual os seus sangues se tinham misturado?... Quando chegaram ao alto da torre, Fiora chegou-se a Demétrios, que se aproximara com um gesto familiar da velha seteira e pousou a sua mão na dele. |