A despeito das recomendações de Demétrios, Fiora teve de perguntar em voz muito baixa:
Quem é aquele homem?
Um monge despadrado. É preciso ter sido padre para poder celebrar a missa negra...
Ele vai...
Vai, mas cala-te e, por mais que vejas, não digas mais nada! Desenrolou-se uma nova fase da cerimónia: primeiro os feiticeiros
e depois os assistentes, todos avançaram dois a dois, um homem e uma mulher, para saudar o demónio. Prostraram-se diante do altar e da estátua e regressaram depois aos seus lugares como fiéis numa igreja. Uma mulher ficou sozinha, a última, uma das três que deviam pertencer à alta sociedade. Transportava entre as mãos uma espécie de patena de prata, sobre a qual havia qualquer coisa indistinta. Ajoelhando-se, a mulher estendeu o pequeno prato ao padre, que o ergueu para o ídolo:
Aceita, oh pai da mentira e do crime, estes corações arrancados a um mentiroso e a um assassino e que a tua serva te oferece, para que a cubras com as tuas mercês! Ela também se oferece, para que o sacrifício que vamos celebrar seja realizado sobre o seu corpo.
Demétrios, sentindo Fiora tremer, rodeou-a com um braço e fechou-lhe, de novo, a boca com a mão, temendo uma manifestação involuntária.
Eu disse-te sussurrou-lhe ele ao ouvido que isto era uma descida aos Infernos... Coragem!
Entretanto, à luz das fogueiras, a mulher despiu-se por completo e, nua, foi estender-se sobre o altar. A despeito da máscara, Fiora, horrorizada, já tinha reconhecido Hieronyma. O cálice foi pousado sobre o seu ventre branco. Apesar de já não ter 20 anos, tinha um corpo copioso mas firme, que devia atrair o desejo de muitos homens e explicava a influência que tivera sobre Marino Betti.
A missa, se assim se podia chamar àquela sucessão de imprecações e sacrilégios, começou. Fiora, com os ouvidos a zumbir, não ouviu grande coisa. Estava hipnotizada por aquela mulher nua, cujos cabelos artificialmente louros tocavam no solo.
Subitamente passou-se uma coisa tão odiosa que Fiora, sob a mão de Demétrios, mordeu os lábios até sangrarem. Das primeiras filas da assistência acabava de sair uma mulher com um êxtase imbecil no olhar. Nas mãos estendidas transportava um recém-nascido, que estendeu ao oficiante. Este pegou nele, pousou-o sobre o corpo de Hieronyma e, com um golpe rápido de faca, abriu-lhe a garganta. Ouviu-se apenas um pequeno grito, mas uma espécie de arrepio percorreu toda aquela gente. Fiora pensou que era de horror, mas só viu em todos aqueles rostos uma alegria estúpida, uma crueldade bestial, um prazer perturbador. O sangue trazia àquela monstruosidade o elemento que lhe faltava.
O padre recolheu-o no cálice. Molhou nele os lábios, marcou os seios de Hieronyma e passou-o a uma das suas acólitas, para que ela o fizesse circular pela primeira fila da assistência. Ao mesmo tempo, a outra rapariga trouxe um jarro cheio de um vinho no qual tinham misturado uma decocção que lhe duplicava a acção. Todos beberam e comeram uns bolos que foram distribuídos. Em seguida puseram-se a dançar ao som da flauta tocada pelo grande negro. Dançavam costas com costas, de mãos unidas e as cabeças viradas, de modo a juntarem as faces.
O ofício sacrílego estava a acabar. O oficiante, desembaraçando-se da sua casula sob a qual estava nu, deitou-se em cima de Hieronyma. Foi o sinal para uma inverosímil cena de deboche à luz vermelha dos braseiros que enfraqueciam. Os casais rolavam um pouco por toda a parte, ao acaso, sem distinção de idades ou de estatuto social, velhos com jovens, a grande dama com um criado de quinta. Fiora, que se sentia enlouquecer, fechou os olhos. Então, Demétrios largou-a:
Sobretudo, não te mexas! sussurrou ele. Deixo-te com Esteban. Eu já venho ter convosco...
Onde vais?
Como resposta ele pousou-lhe um dedo na boca e desapareceu na sombra sem sequer fazer mexer um ramo. Já não se ouvia, nem o canto, nem a flauta; apenas suspiros, gemidos e sons de tecido rasgado. Fiora nem sequer ousou virar os olhos para Esteban, do qual ouvia, perto de si, a respiração entrecortada. E, subitamente, ouviu-se um grande grito:
A milícia! Salve-se quem puder!
Foi o pânico. Cada um, esquecendo o seu companheiro, ou companheira de momento, só pensou em fugir. O padre maldito arrancou-se de Hieronyma e desapareceu na noite, ao mesmo tempo que o seu acólito e as duas raparigas levavam o diabo de madeira pintada. Fiora viu Hieronyma, que tirara a máscara que a sufocava, tentar levantar-se, mas uma silhueta alta e negra apareceu na sua frente com um braço estendido e três dedos apontados para os seus olhos transtornados...
Ela tentou, em vão, lutar contra o poder invisível daquele homem e voltou a cair sobre o altar, inanimada...
Demétrios inclinou-se, agarrou no pequeno corpo do bebé sacrificado que tinha sido atirado por terra, pousou-o sobre o da mulher já suja do seu sangue e afastou-se a correr. A luminosidade de numerosos archotes e o eco de passos ferrados fazia-se ouvir...
Um instante mais tarde, Demétrios juntava-se a Fiora e Esteban:
Vinde! ordenou ele. Depressa! Ainda temos tempo de fugir...
É mesmo a milícia que está a chegar? perguntou Fiora.
É. Mesmo à hora que eu indiquei. O senhor Lourenço seguiu bem as minhas explicações.
Quem deu o alerta?
Eu, claro. Não queria que todos estes infelizes, que procuram uma compensação para a sua miséria, fossem atirados para a prisão, para a tortura e para o fogo... A dama Hieronyma acabará a noite numa masmorra, enquanto espera que a entreguem ao carrasco...
Mas, como sabias que ela estaria aqui esta noite?
Eu disse-te que sabia sempre aquilo que preciso de saber... E agora apressemo-nos um pouco. Não convém nada que venham atrás de nós...
Uma hora mais tarde estavam de regresso ao castelo onde Léonarde, que mandara Samia deitar-se, os esperava. Ignorando ao certo o que era aquela expedição em que se tinham lançado, acolheu-os sem uma palavra, mas serviu-lhes logo vinho quente com canela, que cozia lentamente nas cinzas da chaminé. A governanta olhou para Fiora, cujo rosto pálido e expressão tensa lhe diziam que não tinha vivido momentos muito agradáveis, mas a jovem, agarrando com os dedos gelados a taça cheia do líquido fumegante, sorriu-lhe com tanta ternura que ela, vexada por não ter sido posta ao corrente, não aguentou mais:
Pareceis muito cansada, meu cordeirinho, mas há muito tempo que não vos via um sorriso assim. Sentis-vos feliz, esta noite?
Sinto... e pela primeira vez desde há muito tempo! A morte do meu pai foi vingada, minha querida Léonarde, assim como tudo o que sofri por culpa de Hieronyma. Amanhã conto-vos tudo. Por agora, morro de sono...
Sendo assim ser-vos-á feita justiça e podereis, então, regressar a casa?
Não sei... Talvez, porque agora os meus inimigos já não existem...
Continuam a existir disse Demétrios severamente, que aquecia as longas mãos pálidas nas chamas reanimadas. Mas é isso o que tu queres: voltar para casa, reencontrar a tua fortuna e não pensar em mais nada? Já te esqueceste que... Que concluímos um pacto? Esqueci-o tanto que agora quero reencontrar o homem que me abandonou no dia seguinte ao do nosso casamento e vingar-me daqueles que levaram os meus pais ao cadafalso. Mas confesso que gostaria, por algum tempo, de reencontrar a paz da minha casa, rever a minha amiga Chiara, poder, como antigamente, passear pelas ruas de Florença sem ouvir gritos de morte ou levar com pedras, ir pôr flores na tumba daquele que será sempre o meu pai, deixar acalmar este furor que vive em mim há«tantos dias, ser uma florentina como as outras e adquirir a certeza de que no regresso das viagens que vou empreender me sentirei em minha casa... Isso é pedir muito?
Demétrios desviou os olhos daquele olhar que implorava uma resposta e saiu da cozinha. Ouviram os seus passos na escadaria da torre, para o topo da qual ele gostava de se retirar para observar as estrelas e prestar atenção à sua linguagem. Mas naquele fim de noite, porque a alvorada iria em breve aparecer, o médico desviou o olhar do céu para olhar para a cidade adormecida. Sabia que Florença já não queria saber de Fiora Beltrami, mas não tinha coragem de lho dizer...
CAPÍTULO XI
«ANTES DE EU ALCANÇAR A MARGEM DESEJADA...»
O rumor, partido do rio onde os marinheiros se afadigavam, correu pelas ruas e praças, atingiu primeiro a milícia que tinham chamado de imediato, o Bargello e a Senhoria e depois o resto da cidade, como se fosse um tição lançado para uma meda de palha: um pescador tirara do Arno o corpo de Pietro Pazzi, apunhalado entre as duas espáduas...
Esteban, que tinha ido às compras ao Mercato Vecchio como sempre fazia três vezes por semana, ouviu-o enquanto comprava queijo, voltou a ouvi-lo na vendedeira de criação e ficou com as orelhas cheias quando chegou ao balcão do talhante, mas com variantes, porque a festa do «diz-se» estava lançada. Cada um pretendia saber mais do que o seu vizinho e as versões mais fantásticas começavam a circular...
Esteban não gostava de tagarelice. Em Castela tinha causado a morte da sua mãe, acusada por um vizinho de lhe ter envenenado a água do poço e de ter feito um feitiço ao seu filho. Apesar de ser uma boa cristã, a anciã fora parar à fogueira e o seu filho, desesperado, dera tudo o que tinha em dinheiro ao carrasco para que ele a estrangulasse antes de as chamas a atingirem. Em seguida matara o vizinho, o filho e lançara fogo à sua quinta. Demétrios Lascaris, que acabava de chegar ao país, levara-o consigo pouco antes de o prenderem, salvando-lhe assim a vida e ganhando para sempre a sua dedicação e reconhecimento...
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