Deus seja louvado! Eu não suportava a ideia de que vós, meu anjo, pudésseis...
Léonarde! Léonarde! Peço-vos... tendes de compreender que já nada é como era e nunca mais será. Agora já sabeis o que aconteceu depois de nos afastarmos uma da outra. Eu já não sou a Fiora inocente que vós embalastes e vistes crescer. Agora sou outra... outra que, a bem dizer, ainda não conheço muito bem e que talvez um dia destes vos cause um desgosto.
Nunca! Nunca, façais o que fizerdes! Vós sois a pequenina do meu coração e nada nem ninguém... nem sequer vós mesma, poderá mudar seja o que for. Pensai apenas que a vingança, se bem que tenha sempre alguma coisa de exaltante, deixa sempre um gosto amargo e Deus..
Não me faleis de Deus! Não me faleis d’Ele nunca mais! exclamou Fiora. Não cessa de deixar cair em cima de mim cada vez mais golpes e sem eu ter cometido qualquer mal. Trata-me como uma inimiga, uma rejeitada! Que crimes são estes, que abominações são estas, que não cessam de me cair em cima? A vontade de Deus? Pensava que Ele era bom e misericordioso...
Ele próprio não aceitou o sofrimento ao permitir que o seu filho suportasse o suplício da cruz? perguntou Léonarde com uma grande tristeza.
O sofrimento de um deus é o mesmo de um homem, ou de uma mulher? Só podemos chegar a Ele pela dor, a Ele que é tão grande? Não, Léonarde: peço-vos, deixai-me com a tarefa a que me propus e não me faleis mais de Deus!
Se assim o quereis! Mas não me impedireis de Lhe falar de vós... Dois dias depois, quando Demétrios, depois do jantar, se preparou para ir ter com os feiticeiros, Fiora declarou-lhe que tencionava acompanhá-lo. Ele lançou-lhe um olhar oblíquo:
Não estou certo de que seja um espectáculo para ti. Passam-se lá coisas desagradáveis e, além disso, é perigoso.
Não te preocupes com os meus olhos! E deixa-te de dúvidas. Quando falaste dessa reunião sabias muito bem que eu iria contigo.
Sim... sim, sabia, mas estou arrependido de te ter falado nela. Não seria melhor parares por um momento e não ires até ao fundo desta descida aos Infernos que começaste? Gostaria que tu própria te poupasses...
O primeiro passo é que custa. Pelo menos, verei se Dante tem razão no seu inferno, ao mostrar os feiticeiros com a cabeça virada ao contrário, de maneira que as lágrimas lhes caem pelas costas abaixo...
Fontelucente gozava de uma detestável reputação. Era, em notoriedade e terror público, o mais famoso covil de feiticeiros de toda a Toscânia. Tinha alinhamentos rochosos, uma gruta e cabanas onde viviam criaturas que de humano só tinham a aparência exterior. Na sua maior parte eram infelizes reduzidos pela miséria, pela doença, ou pela loucura, a uma condição quase larvar e que tinham tirado da sua nudez e da natureza envolvente receitas bizarras. Perseguidos e acossados por toda a parte, tinham-se afastado do céu e de uma misericórdia em que já não acreditavam, para tentarem manter com as forças infernais um comércio que os vingava e lhes permitia semear um medo que os protegia. Tinham-no conseguido na perfeição e o medo que inspiravam com os seus encantamentos e magia era tal que o deserto se fizera em redor daquele local risonho e fértil, mas que diziam maldito. No entanto, uma nascente pura, uma nascente esplendorosa brotava naquele local, sustentando uma vegetação espessa naquele lugar rejeitado, de onde as pessoas se afastavam com medo de sortilégios. Apesar disso, em certas noites escuras, figuras mascaradas e envoltas em mantos sombrios deslizavam até Fontelucente. Uma rapariga procurando esconder o fruto de amores proibidos, uma mulher ciumenta encarniçada contra a sua rival, um rapaz apaixonado desdenhado pela sua bela e até uma dama nobre, reduzida pelas suas paixões a procurar um socorro infame, pago com resgate de reis. Esses conseguiam do seu medo, do seu ódio ou do seu amor a coragem para irem ter com os feiticeiros, dos quais alguns eram mais ricos do que pareciam.
A viver assim, no seio da natureza, aquela gente descobrira muitos segredos. Para não falar das receitas assombrosas, nas composições terríveis ou repugnantes, nos filtros e nos encantos que vendiam à sua clientela. Por vezes, as suas receitas revelavam-se eficazes e o doente curava-se. Então, o reconhecimento servia-lhes de salvaguarda, quase tanto como o medo.
Em datas precisas, mas mais frequentemente em noites de lua cheia, os feiticeiros reuniam-se com os confrades disseminados pela região e até com outros, vindos de muito mais longe, para festejar e venerar o seu protector, o deus das trevas, o seu príncipe do mal, aquele cujo nome os humildes não ousavam pronunciar e a quem os da Igreja chamavam Satã enquanto se benziam. Mas, por prudência, o local de reunião mudava sempre e a palavra era passada por meio de mensagens de aparência inocente, que percorriam os caminhos e os mercados. Assim, Demétrios, tendo ido nessa manhã à cidade, recebera-a de Bernardino, que mendigava, como habitualmente, em frente do Duomo e lha sussurrara em troca de uma bela moeda de prata.
Desta vez tratava-se de um campo no flanco do monte Ceceri, encostado a um pequeno bosque e fechado, longe de qualquer habitação, dentro dos velhos muros arruinados de um antigo priorado abandonado. Era quase meia-noite quando Demétrios, Fiora e Esteban chegaram à vizinhança do campo. Por prudência, tinham vindo a pé e por caminhos difíceis, que serpenteavam por silvados e alinhamentos rochosos.; O grego caminhava com passo seguro, como homem que sabe aonde vai. E parou, por fim, por trás de um dos muros arruinados que formava, naquele local, uma pequena concavidade coroada por espessa vegetação.
Daqui veremos tudo sem nos arriscarmos a ser vistos. Eu conheço bem este local, onde já vim meditar algumas vezes...
Mandou Fiora sentar-se sobre uma grande pedra e mostrou-lhe como, afastando ligeiramente os ramos de um espesso comiso protegido por um matagal, teria uma vista satisfatória. Para melhor protecção, a jovem, tal como os seus companheiros, trazia uma máscara negra e as luvas espessas preconizadas por Demétrios. Estavam, assim, invisíveis e suficientemente protegidos contra os espinhos do matagal. Em frente da jovem o campo formava um largo espaço descoberto no meio das ruínas de antigas construções conventuais, uma grande toalha sombria entre formas incertas. Não se ouvia qualquer som, salvo, vindo do bosque vizinho, a voz triste de uma coruja que soou por três vezes, provocando no campo como que uma espécie de grande suspiro.
Subitamente, um homem saiu das ruínas transportando um archote, com a ajuda do qual acendeu rapidamente duas fogueiras preparadas à direita e à esquerda do prado e essa parte iluminou-se de um só golpe, como uma cena de teatro descobrindo um cenário aterrador. Entre as duas fogueiras estava uma mesa grosseira feita de duas pedras e uma laje, disposta diante de um pequeno montículo coberto de hera, que suportava uma estátua de madeira pintada, tão realista, que Fiora sentiu as têmporas apertarem-se-lhe e os cabelos eriçaram-se-lhe na cabeça.
Era, sobre umas patas de bode inclinadas, o corpo de um homem nu com uma cabeça hedionda. As orelhas pontiagudas, os longos cornos enrolados e a barba fibrosa eram de um bode, mas o longo nariz adunco, a boca vermelha e desdenhosa e os olhos reluzentes brancos e vermelhos eram quase humanos. Entre os cornos estavam pousadas três velas que o homem acendeu, enquanto numa das suas mãos em forma de garra a estátua tinha uma foice e na outra uma taça dourada...
O diabo! sussurrou Fiora que, maquinalmente, se benzeu. Mas já Demétrios lhe apoiava sobre a boca uma mão peremptória:
Nem mais uma palavra! cochichou ele ao seu ouvido. Arriscas-te a que nos prendam...
Com efeito, o acender das fogueiras revelara, em redor do hediondo simulacro, uma fileira de fantasmas envoltos em tecidos escuros, que, num mesmo movimento, tiraram os seus mantos e fizeram aparecer, vestida de ouropel matizado, a mais estranha colecção de figuras de pesadelo que um cérebro febril poderia imaginar: velhas desdentadas de lábios retraídos, homens disformes de olhos reluzentes e cabeleiras sujas, mulheres ainda jovens mas já secas pelo deboche, os de Fontelucente e mais alguns seus iguais estavam ali, imóveis e silenciosos como gárgulas de catedral, pouco menos repulsivos do que o mestre a quem se tinham entregado.
Entretanto, o homem do archote espetou este no solo, afastou-se e reapareceu com um pano negro; estendeu-o por cima da mesa e colocou-lhe em cima dois candelabros de ferro com grossas velas de cera negra, que acendeu. Um fumo espesso e acre desprendeu-se e subiu na direcção da cabeça do ídolo. Então, ouviu-se uma melopeia emitida pelas bocas fechadas dos feiticeiros, a princípio surda, mas que se foi ampliando e, num ritmo lento, homens e mulheres começaram a balançar em conjunto, da esquerda para a direita, sempre de olhares fixos na sua frente e as mãos cruzadas em cima dos joelhos. Aquilo adquiriu um som vagamente musical, que se estendeu pela pradaria com as pesadas volutas de fumo. Pouco a pouco, o campo começou a animar...
Às duas, às três, ou isoladamente, silhuetas mascaradas saíram dos bosques e das muralhas arruinadas. Quando abriram os mantos, Fiora, cujos olhos dilatados não perdiam um pormenor, viu que havia ali camponeses, homens e mulheres, velhos em trajes negros e usados cujas frontes desguarnecidas e olhos fatigados traíam longas vigílias em busca de segredos impossíveis de encontrar, mendigos, entre os quais ela pensou reconhecer Bernardino, rapazes robustos e algumas raparigas bonitas. Estupefacta, a jovem notou também a presença de três mulheres mascaradas, cujo vestuário luxuoso traía uma alta condição e de alguns homens, também eles mascarados e de trajes bordados. Mas o mais extraordinário era a espécie de fraternidade que unia toda aquela gente, uma dama entre um mendigo esfarrapado e um camponês, todos eles com a mesma expectativa no fundo dos olhos. As chamas das fogueiras, para as quais tinham atirado resina, emitia uma luz amarela que uniformizava os rostos. Impassíveis, os feiticeiros continuavam a balançar cantando a sua melopeia lenta e lúgubre que parecia não ter fim e que os recém-chegados imitavam. Fiora, fascinada, teve de se agarrar aos ramos que a escondiam para não fazer como eles, mas o espinho de uma silva, ao atravessar-lhe a luva, sacudiu aquela espécie de feitiço... Subitamente, um som grave e profundo fez-se ouvir, parecido com o de um gongo e instantaneamente fez-se silêncio. Das ruínas saiu um cortejo... À cabeça, transportando uma cruz na qual estava pregado o cadáver de um cão, vinha um negro atlético vestido com uma casula escarlate, cujas rachas deixavam entrever o seu corpo reluzente, como bronze. Atrás dele vinham duas raparigas quase nuas, com túnicas brancas transparentes. Traziam coroas de hera e uma transportava um incensório, enquanto a outra erguia entre as mãos uma taça cheia de grãos de trigo e azeitonas negras. Um homem, que parecia um padre, fechava a marcha. Este vestia a réplica exacta de uma casula de celebrante cristão, mas branca, debruada a escarlate e bordada com grandes chamas negras. A cruz era substituída por uma cabeça fazendo uma careta hedionda. Uma espécie de elmo negro, apertado e ornamentado com dois cornos, cobria-lhe a cabeça barbuda e transportava na mão um cálice coberto com um véu vermelho. À sua passagem, os feiticeiros levantavam-se e inclinavam-se. Estes afastaram-se do altar, pois de um altar se tratava, para fazerem duas filas, formando duas alas de assistentes. O padre pousou o cálice no altar, caiu de joelhos, ergueu os dois braços para a estátua demoníaca e exclamou com voz forte: Pai do mal e do pecado, pai do vício e do crime, Satã, deus do prazer e da riqueza, fonte eterna da virilidade e das paixões proibidas, senhor da luxúria e da fornicação, vem até nós esta noite, a este lugar onde nos reunimos para te honrar e adorar!...
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