Para Roma, mas não sabe o nome dele. Sabe apenas que é um médico, a quem chamava serSebastiano... Também disse... que a rapariga parecia feliz por partir com aquele homem, que era jovem... e não era feio!

Fiora não disse mais nada. Sentia-se desorientada... Teria Khatoun encontrado a felicidade numa casa como a de Pippa? Ou então, acreditando-se abandonada por Fiora, teria escolhido deliberadamente a primeira tábua de salvação que se lhe oferecia?

De qualquer maneira suspirou Demétrios, que tinha seguido o curso dos seus pensamentos é-nos impossível lançarmo-nos em sua perseguição. Além disso, se ela estava contente, por que não dar-lhe uma hipótese de ser feliz?

Podemos confiar numa mulher como Pippa? perguntou Fiora.

Por que não? Ela não tinha razão para mentir, a partir do momento em que lhe ofereciam ouro. E agora vamos jantar! Eu estou muito... cansado.

Demasiado cansado para contar a Fiora, nessa noite, o que se passara entre Marino Betti e Esteban. Aquilo podia esperar... Há muito tempo que não se sentia tão cansado... Pela primeira vez pensou que já não era novo...

Fiora, essa, ficou muito tempo no jardim. Tendo dormido uma parte do dia, não tinha sono e a noite estava magnífica. Olhou longamente para as estrelas cuja linguagem Demétrios conhecia, mas que, devido à sua ignorância, não passavam de um espectáculo maravilhoso. Teria gostado, no entanto, de saber qual era a sua... e se se juntaria, um dia, à da pequena Khatoun, sua última amiga e que, por a ter perdido, sentia como lhe era querida.

CAPÍTULO X

DESCIDA AOS INFERNOS

Que vais fazer de mim? perguntou Fiora.

Sentado a escrever a uma grande mesa cheia de livros mais ou menos poeirentos e papéis cheios de algarismos e desenhos estranhos, Demétrios ergueu os olhos e olhou para a jovem.

Aborreces-te?

Não. E não quero parecer-te ingrata, mas não posso ficar indefinidamente sentada no teu jardim a olhar para os pássaros, ou na tua cozinha a olhar para Samia enquanto ela prepara as refeições. Eu preciso de fazer qualquer coisa. Nem que seja para esquecer que, de todos aqueles que amava, não me resta nenhum.

 Ontem disse Demétrios com um suspiro fiz ao senhor Lourenço essa mesma pergunta.

E que respondeu ele?

Que não saias daqui sob nenhum pretexto e que não te deixes ver por ninguém da região.

Fiora encolheu os ombros com irritação. Não fazer nada... esperar! Ao mesmo tempo que ardia de desejo de se lançar no encalço dos seus inimigos, de atacar por sua vez...

Lembra-te das tuas palavras! Não me prometeste dar-me as armas de que preciso para vingar os meus?

Prometi-te e mantenho a minha palavra. Mas tens de saber o seguinte: a primeira das armas é a paciência. Receio que tenhas dificuldade em aprendê-lo e é normal: és jovem, impulsiva. Pareces uma ave que acabam de meter numa gaiola para a manterem afastada do gato que a espreita. Não compreende e voa em todas as direcções, conseguindo apenas ferir-se. Tu sabes que estás em perigo. Deixa que os espíritos se acalmem!

E que Hieronyma triunfe?

Por que não? Não há nada mais perigoso do que o triunfo! Torna as pessoas cegas, embota as faculdades, baixa as defesas, adormece-as, dando-lhes uma segurança enganadora... Deixa essa mulher acreditar que é vitoriosa e impune! Só chegarás a ela com mais facilidade. Ela já está ferida, mesmo se o ignora ainda, porque perdeu o filho... Mas a paciência é isso: esperar! Saber esperar na sombra, na noite, na ruela. Eu, há 20 anos que espero! O quê?

A mesma coisa que tu: uma vingança! Perguntaste-me por que razão me interesso por ti desde que te conheço e por que razão te propus, logo, a minha ajuda! Talvez tenhas imaginado que tinha intenções equívocas, que a tua beleza me atraía?

Nunca imaginei tal coisa! disse Fiora encolhendo os ombros.

E fizeste bem! Não sinto nada por ti: nem desejo, nem amor. Talvez, agora, um pouco de amizade, porque és corajosa. Não, ofereci-te a minha ajuda porque sabia que ias necessitar dela, mas com o segundo pensamento de obter, em seguida, a tua ajuda para os meus próprios projectos. Os astros disseram-me que isso era possível.

Os astros? Eles preocupam-se a esse ponto com os humanos?

Eles não se preocupam, mas as suas posições e evoluções, no momento do nascimento, permitem aos iniciados ler muitas coisas neste grande livro que é o céu. Repara!

Demétrios vasculhou num armário por trás do espaldar da sua cadeira e tirou dele uns rolos de pergaminho. Desenrolou dois e fixou-os sobre a mesa com a ajuda de diversos objectos:

Este é o meu horóscopo e este é o teu. Tive muita dificuldade para obter a data do teu nascimento e foi-me impossível descobrir a data, bem entendido. É por isso que o teu horóscopo está incompleto e um pouco vago, mas as linhas essenciais estão aí. E encontro muitas concordâncias com o meu. Os nossos destinos unem-se durante um certo lapso de tempo...

E este? perguntou Fiora, apontando para o terceiro pergaminho ainda enrolado e atado com uma fita vermelha:

Mais tarde veremos esse, se quiseres. Mas agora... sempre se quiseres e como não tens nada para fazer acrescentou o grego com um dos seus raros sorrisos quero contar-te uma história; a minha história! Depois, dir-me-ás se aceitas subscrever o pacto que te vou oferecer.

E se eu não aceitar?

Demétrios olhou por um instante para a jovem e depois voltou a sorrir:

Pelo simples prazer de recusar, não é verdade? Espantar-me-ia muito, mas, se assim for, ficarás aqui o tempo que quiseres, eu dou-te depois um pouco de dinheiro, um cavalo e abrirei a porta diante de ti, para que vás para onde muito bem te apetecer.

Fiora desembaraçou um escabelo dos livros que se acumulavam em cima dele e sentou-se:

Sempre gostei de histórias disse ela simplesmente. Sou toda ouvidos!

Demétrios retomou o lugar na sua cadeira, apoiou-se nos cotovelos e fechou os olhos:

Eu nem sempre fui esta ave nocturna em que me tornei e que mete medo às criancinhas... e às outras pessoas. Já fui jovem, rico e príncipe, porque os Lascaris reinaram em Bizâncio. Tinha um palácio, como tu, e tinha um irmão mais novo...

E perante os olhos, primeiro frios e indiferentes e depois cada vez mais atentos da jovem, Demétrios desenrolou a sua vida como se fosse uma grande tapeçaria de personagens. A sua voz profunda possuía uma força espantosa de evocação e a sua jovem ouvinte em breve esqueceu o cenário que a rodeava, a grande sala de paredes caiadas de branco com os seus armários de madeira escura, o fogão de tijolos refractários que ocupava um canto sob uma espécie de chaminé invertida de chapa enegrecida, o grande fole de pele de cabra e as prateleiras, onde se alinhavam potes de boticário, ramos de ervas secas e toda uma miscelânea de retortas, frascos e almofarizes. No seu lugar viu Bizâncio, azul e dourada, pousada como uma jóia em cima do Bósforo e do Corno de Ouro, alfinete precioso entre a Europa e a Ásia, viu os véus vermelhos do sultão infiel e depois a guerra, o sangue e o massacre. Viu Teodósio, que lhe pareceu um herói pelo seu coração, coragem e loucura. Viu o fausto delirante da festa do Faisão e, de pé sobre aquele pano de fundo cintilante, os rostos dos dois homens que ela já aprendera a detestar: o duque Filipe e o seu filho Carlos, esse homem que ignorava a piedade, esse cavaleiro que não cumpria os seus votos, esse príncipe, enfim, por cujas lágrimas Philippe a tinha colhido e depois rejeitado...

Mas se o contador pusera chama e cor na sua história até à morte de Teodósio, mostrou-se conciso quanto aos acontecimentos da sua própria vida, que resumiu em algumas frases. Do que tinham sido os seus estudos, as suas descobertas e daqueles a quem as devia, não falou. Pertenciam ao seu domínio privado e não pretendia deixar que Fiora entrasse nele. Aliás, esta não fez qualquer pergunta. Quando Demétrios se calou, contentou-se em apontar com o dedo para o rolo de pergaminho que ele não tinha aberto.

Esse horóscopo é o do duque da Borgonha, não é verdade?

És inteligente. Nunca duvidei.

E esse pacto de que falaste há pouco?

Creio que já compreendeste: ajudar-te-ei na tua vingança se tu me ajudares na minha.

De boa vontade, já que também eu tenho contas â ajustar com esse a quem chamam o Temerário. Mas, confesso-te que não vejo muito bem como será isso possível?

No entanto, terá de ser! Tive a certeza quando vi o enviado da Borgonha dirigir-se a ti, voltar a procurar-te e, por fim, desposar-te...

Não me fales dele! exclamou Fiora, presa de súbita cólera.

No entanto, é preciso falar. Tu és, na realidade, a senhora de Selongey, sua mulher ele terá de te acolher. Mas, deixemos isso, por agora. Aceitas o tratado que te ofereço?

De boa vontade, já que já cumpriste uma parte. Não mataste Pietro? Devo escrever o meu compromisso sob o teu ditado?

Não. O laço de sangue parece-me mais sólido do que uma folha de papel. Fará de ti minha irmã, uma irmã que eu saberei tornar terrível, juro-te.

Os olhos negros e os olhos cinzentos cruzaram-se como duas mãos que se apertam.

Aceito! disse Fiora.

Demétrios tirou o estilete preso à sua cintura numa bainha de couro.

Dá-me a tua mão esquerda!

A jovem obedeceu. Com um golpe leve, o médico fez-lhe, no punho, um pequeno corte, de onde o sangue brotou. Em seguida fez o mesmo no seu braço direito e juntou os dois golpes.

Os nossos sangues estão misturados disse ele. Doravante estamos unidos, tanto no bem, como no mal!

Procurando um frasco, fez correr umas gotas do seu conteúdo sobre o punho de Fiora. O sangue estancou. O médico fez o mesmo a si próprio. Fiora olhou, fascinada: