A do assassino!
Sim, mas a dele tinha um cabo de madeira, em vez de corno. Bebemos mais e eu fingi que estava bêbedo.
E ele?
Ele é um antigo recoveiro: aguenta bem, mas, mesmo assim, começou a vacilar um pouco e eu pensei que tinha chegado o momento. Pus-me a fazer grandes gestos e a faca caiu da mesa abaixo. Baixei-me para a apanhar e troquei-a pela outra. Ele não pareceu ter-se apercebido, de imediato, da troca. E depois, subitamente, viu-a. Ficou muito pálido e eu até pensei que os olhos lhe iam sair da cabeça. Levantou-se bruscamente e pegou na arma para me esfaquear, mas eu estava prevenido e evitei o golpe. A mesa virou-se e vimo-nos frente-a-frente, armados. Ele olhou para mim com olhos de louco, mas eu esperei por ele. Pus-me a rir e disse-lhe: «Disseram-me que as pessoas daqui têm muito medo dos fantasmas. Qualquer coisa me diz que não voltarás a dormir tão bem como antes! Um patrão traído e assassinado deve ser um espectro bem desejoso de vingança!» Não pensei que provocasse um tal efeito. Se alguma vez vi o terror no rosto de um homem, foi dessa vez. O homem recuou como se o fantasma em questão se erguesse entre ele e eu e desatou a fugir, como se todos os diabos do inferno lhe fossem no encalço.
E tu, que fizeste?
Deixei-o ir... e paguei os estragos concluiu Esteban com filosofia. Ainda pensei correr atrás dele para o matar, mas, em plena rua...
Fizeste bem. A vida desse miserável pertence àquela que dorme lá em cima...
Sem dúvida, mas ela é uma dama e não a vejo com uma faca na mão. Anota que eu estou pronto a fazer esse serviço no seu lugar!
- Ela não recuará, porque está desejosa de vingança. O seu horóscopo, que eu fiz, disse-me que nesta bela mulher, feita para o amor e para a felicidade tranquila que uma bela fortuna proporciona juntamente com todos os seus atractivos, existe uma impiedosa Nemesis. Repara que bastou pouco mais de uma semana de ódio e cupidez para uma mulher lhe arrancar tudo o que ela amava, a começar pelo seu pai e pela sua fortuna... e a terminar no seu orgulho de mulher e na sua honra. Foi em casa de Pippa, a alcoviteira do bairro de San Spirito que a encontrei, no momento em que Pietro Pazzi, o corcunda, ia estrangulá-la, depois de a ter violado. Matei aquela coisa podre... A propósito de Pippa, tu vais selar o teu cavalo e vais a casa dela para lhe comprar uma pequena escrava tártara chamada Khatoun, que pertence a donna Fiora e que foi apanhada ao tentar libertar a dona. Leva este ouro!
Para quê? Eu tenho uma espada e um punhal. Deve chegar como instrumento de negociação... ”
Prefiro o ouro. O Mulherão é capaz de ser mais forte do que tu! É perigosa e tem protectores. Além disso, deve andar morta de medo, desde que um Pazzi foi morto em sua casa. Se ela atira a sua gente e os clientes contra ti, não te safas. Antes de partires, sela a minha mula. O Magnífico já esperou o suficiente por mim... Já agora, sabes onde ele está?
Ele estava na Badia, mas deve ter regressado ao Palácio para receber um emissário do rei Eduardo de Inglaterra.
Como sempre que o tempo o permitia, Lourenço de Médicis ia para o seu jardim. Tão bom poeta como homem de Estado, gostava de repousar os olhos e o espírito na verdura abundante, ouvir o canto dos pássaros e sentir por cima da cabeça apenas o azul do céu infinito. No espaço forçosamente restrito de um palácio urbano, os seus jardineiros, preferindo o buxo a todas as outras plantas, tinham-no esculpido sob a forma de cães, cervos e elefantes. Havia até uma galera com as velas desfraldadas, tudo aquilo em redor de uma obra-prima: a Judite de Donatello, que se erguia em cima de uma grande taça de granito. Sob as colunas que davam acesso ao jardim, podiam ver-se três sarcófagos romanos, um antigo Marsyas habilmente restaurado e o admirável David de Donatello.
Quando Demétrios chegou, parou sob aquelas colunas e procurou, até, abrigo à sombra de Marsyas. O Magnífico, com efeito, não estava só: na sua frente e na de Judite, à qual se apoiava, estava o hábito branco e o escapulário negro de frei Inácio. Mas não se tratava de uma reunião secreta, porque a voz do monge soava como a trombeta do juízo final, na intenção de se fazer ouvir pelo maior número de pessoas possível. Demétrios, por trás do seu sátiro, não precisou de apurar o ouvido:
Não tens conhecimento do rumor, vindo não se sabe de onde e que corre pela cidade desde esta manhã? trombeteou o espanhol. A rapariga que devia ser submetida ao juízo de Deus e que desapareceu do convento de Santa Lúcia, não fugiu, o que, não to escondo, não me surpreende: foi raptada.
Eu sei. Madonna Lucrézia, a minha mãe, ao regressar esta manhã da missa, contou-me. Mas dizes bem: não se sabe de onde vem o rumor. Portanto, é difícil acreditar nele.
Entre nós, diz-se que não há fumo sem fogo...
Também entre nós, mas o que tu ignoras, porque não és deste país, é que não há nenhum povo com mais imaginação do que o de Florença. Ele gosta do maravilhoso, do fantástico e sabe tão bem contar as velhas histórias como inventar outras...
No seu hábito branco, o corpo magro do monge ficou ainda mais hirto.
Parece-me que tu enfrentas este problema de ânimo bem leve! Não achas que se impõem buscas?
Já mandei procurar Fiora Beltrami sem resultado. A Senhoria também e também sem sucesso. A pobre criança deve ter deixado a cidade...
Chamas pobre criança àquilo que eu chamo feiticeira! Essa criatura do diabo tem aqui mesmo, na tua cidade e talvez até no teu palácio, apoios que a conseguiram subtrair à justiça de Deus, assim como à dos homens.
Um clarão atravessou os olhos escuros do Magnífico-.
No meu palácio? Estás a insinuar que sou o autor do rapto e que a escondo aqui?
Perante a cólera que vibrava na voz rouca de Lourenço, frei Inácio bateu em retirada:
Perdoa-me se me exprimi mal e pensa que é apenas o zelo que me inspira o serviço de Deus que me anima. Eu não falei de ti. Há muita gente no teu palácio e tu não podes saber o que fazem todos os teus numerosos amigos... amigos esses que, se calhar, não são os que seria conveniente ver em redor de um grande príncipe...
Eu não sou um príncipe, apenas o primeiro dos cidadãos desta cidade. Aqui, estamos numa república, frei Inácio! Portanto, tenho o direito de escolher os amigos que me agradam!
Não jogues com as palavras. Se não és um príncipe, é-o a tua esposa, os teus filhos sê-lo-ão e não convém que crianças de alto nascimento, votadas a grandes destinos, sejam educadas fora da religião cristã. Ora, tu deste-lhes um indigente como mestre, saído não sei de onde, que fala grego e que lhes serve como modelo os demónios a quem os antigos chamavam deuses...
Não podemos limitar-nos a um assunto? perguntou Lourenço com voz cortante. De que vieste falar-me, afinal, monge? Do rapto eventual de uma infeliz, que eu pergunto a mim mesmo, em vão, por que razão a odeias tanto... ou da educação dos meus filhos?
Vim falar-te da tua cidade disse frei Inácio com ênfase da tua cidade, que esquece Cristo e que é menos ardente quando escuta a Sua palavra do que quando escuta canções da tua cidade que tu arrastas para o caminho da perdição. É essa a maior preocupação de Sua Santidade...
Pára aí, monge! Sua Santidade, como tu dizes, está sobretudo preocupado em fazer cair Florença e a sua região nas mãos do seu sobrinho Riario, o antigo alfandegário. Daí o seu grande interesse.
Vergonha e infelicidade para ti, Lourenço de Medícis, se não te decides a escutar o apelo de Deus que eu te trago! O Papa Sisto IV envia-me...
O Papa dispõe de 40 cardeais, um exército de bispos e abades e envia-te a ti, um espanhol, para me trazeres a sua palavra?
Para avaliar o que vale a minha coragem e o meu ardor no serviço de Deus face a uma cidade de perdição, antes de me mandar de volta para o meu país, onde a tarefa que me espera é imensa. Pelo menos, é o que eu penso. A rainha Isabel de Castela anda preocupada, com efeito, com as desordens que os judeus e os conversos andam a fazer no seu reino e pediu, através da minha voz, a ajuda de Sua Santidade, que lhe quer bem.
Um sorriso sarcástico enrugou a grande boca de Lourenço e aproximou o seu grande nariz do queixo:
Pensava que a rainha Isabel tinha problemas mais graves do que o estado da Igreja? Coroada rainha de Castela em Dezembro último em Segóvia, contra a vontade da maioria dos seus grandes e sem ter associado a essa sagração o seu esposo, o príncipe Fernando de Aragão, está hoje em guerra com o rei Afonso V de Portugal, que casou com a filha bastarda, dizem? do defunto rei de Castela Henrique IV, do qual Isabel é apenas irmã. Como vês, estou ao corrente... como, aliás, de tudo o que se passa na Europa.
Imagino que tens espiões por toda a parte, mas eles andam mal informados. A rainha Isabel coloca Deus acima de tudo. Ela tenciona, em Seu nome, reconquistar tudo o que o mouro tem ainda nas garras negras e espera poder estabelecer, enfim, nos seus reinos, a Santa Inquisição...
Da qual tu gostarias de ser o chefe! Reconheço que pareces feito para isso... mas Florença não precisa de um Grande Inquisidor. Frei Inácio, peço-te que deixes de te meter nos meus assuntos... e, melhor ainda, peço-te que regresses a Roma. Entregar-te-ei, para o Papa, uma carta, atestando, tanto o teu zelo, como as tuas capacidades.
Partirei quando a filha da iniquidade se sujeitar, tal como aceitou, ao juízo de Deus. Manda vasculhar a cidade rua por rua, casa por casa... sem esquecer as dos teus amigos... e o teu próprio palácio! Encontra-a e eu ficarei satisfeito... por agora. Só a Igreja sabe como tratar os seres desta espécie.
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