No entanto, Demétrios arrastou a sua companheira pelo meio do estaleiro abandonado sem se deixar impressionar pelo temor que ela manifestava.

Uma rapariga cujo espírito foi iluminado pela luz grega não se deixa perturbar por uma lenda idiota! disse-lhe ele à guisa de conforto...

Um arrastando o outro contornaram o palácio, encontraram um esboço de jardim que deveria estender-se sobre uma colina e entraram por uma das portas que nunca tinham recebido batentes. Tacteando na

1 O palácio Pitu foi recuperado e a sua construção terminada um século mais tarde por Cosme de Médias


escuridão, Demétrios viu um fino raio de luz filtrando-se por baixo de um conjunto de pranchas e bateu segundo um código particular. Do interior, uma voz áspera perguntou:

Quem vem lá?

Mendici

Aquilo que fazia de porta abriu-se, descobrindo o que deveria ter sido uma divisão de serviço. A luz provinha de um pequeno fogo aceso no meio, no solo de terra batida. Quanto àquele que acolheu os visitantes, era um homenzinho esquelético, cujo rosto pergaminhado estava ornamentado com uma barba rala e onde se enquadravam uns longos cabelos grisalhos. O homem deitou uma rápida olhadela aos visitantes e voltou a acocorar-se junto do fogo para mexer algo dentro de um pote de argila:

Parece que conseguiste?

Sim. Graças a ti, Bernardino. Mas foi mesmo a tempo. Tive de matar Pietro Pazzi. Tinha sido ele que tinha mandado raptar Fiora e ia estrangulá-la quando cheguei. A esta hora Pippa e o irmão devem estar a atirá-lo ao Arno com algumas pedras, para evitar que volte a subir.

Menos um bandido! aprovou o velhote. Quanto a ti, rapariga, sê bem-vinda! Estás em casa de um amigo... aliás, tu conheces-me, porque me deste esmola várias vezes.

A jovem lembrava-se, com efeito, daquele velhote, que mendigava sempre perto das portas do Duomo, lamuriando sempre a mesma queixa...

Agradeço-te disse ela mas... eu pensava que eras cego e surdo?

Ele riu docemente e depois explicou com orgulho que era preciso uma grande experiência para conseguir não mostrar senão o branco dos olhos e que não era difícil parecer surdo.

E agora podes dormir um bocado, porque deves precisar. A minha cama é esta acrescentou ele apontando para um dos montes de trapos que serviam de móveis à sua casa. Quando o galo cantar, acordo-te...

Tu acolhes-me em tua casa e, portanto, arriscas a vida. Suponho que sabes isso?

1 Mendigos


Arrisco menos do que imaginas, garota. Não ligues ao cenário miserável em que vivo, porque disponho de um poder que faria inveja a muitos príncipes. A confraria dos mendigos, a mais numerosa que há, é reconhecida em todo o Mediterrâneo e para lá dele através da única palavra MendicHe eu reino sobre os de Florença: os estropiados verdadeiros ou falsos, os carteiristas e os mendigos de toda a espécie. É um exército cujos golpes, por serem dados muitas vezes nas trevas, não são menos temíveis. Quando estala um motim, nós estamos sempre no coração da agitação. Mas, vê lá tu, esta vida que me é tão cara devo-a ao homem que te acompanha, porque o seu saber salvou-me. E Bernardino paga sempre as suas dívidas!... E agora dorme e tapa as orelhas, porque nós temos de conversar, o grego e eu...

Estendida sobre o monte de trapos malcheirosos como sobre as almofadas mais suaves, Fiora, esquecendo o seu corpo arranhado e a garganta dorida, caiu quase de imediato no sono mais profundo. A alguns passos dela, acocorados um em frente do outro de cada lado da fogueira como estranhas aves nocturnas, o médico grego e o rei dos mendigos entretiveram-se em voz baixa com os seus negócios subterrâneos até às primeiras luzes da madrugada. Quando o galo fez ouvir o seu canto, Demétrios tirou de sob os seus farrapos um punhado de florins, que pousou na garra do seu companheiro. Em seguida levantou-se e abriu os longos membros:

Achas que consegues? perguntou ele.

O outro encolheu os ombros e passou as moedas de ouro de uma mão para a outra com deleite:

É o bê-á-bá da profissão. Dentro de duas horas, o clamor de que a rapariga não fugiu do convento e foi, em vez disso, raptada correrá por todos os adros e mercados com tanta velocidade como o vento suão.

Tens a certeza que nem tu nem os teus irmãos se arriscam a cair nas mãos do Bargello?

Não se pode parar o vento. Nasce sem que se saiba porquê nem de onde vem e passa, mas nós faremos com que não se extinga demasiado depressa. Não tenhas receio! Nós somos hábeis e as comadres ganharão bem o seu dinheiro.

Demétrios abanou a cabeça, sorriu e foi acordar Fiora. Uma hora mais tarde, depois de terem atravessado toda a cidade no meio de carroças de legumes e de criação a caminho do mercado, transpuseram, perante a indiferença geral e sem que os soldados de guarda lhes concedessem um olhar, a porta Pinti que dava para Fiesole, percorria o muro do convento dos Camáldulos e o do maravilhoso jardim de la Badia, construído outrora para Cosimo de Médícis.

O ar da manhã era leve, puro e transparente, com aquela bela luz irisada que anuncia um dia de sol, mas o coração de Fiora, se bem que livre do medo, permanecia pesado enquanto caminhava junto de Demétrios na poeira do caminho tantas vezes percorrido outrora ao trote do seu cavalo ou no alegre carrilhão das campainhas de uma mula. Lá em cima estava a sua casa, da qual podia ver o grande telhado trigueiro, a doce casa entre os loureiros, onde Philippe lhe tinha dado algumas horas de felicidade maravilhosa e a jovem pestanejou sob a luz, como uma ave nocturna projectada, subitamente, para a luz do Sol. As coisas já não tinham o mesmo rosto nem a mesma cor e Fiora via-se uma estranha, uma rainha deposta transformada numa mendiga no meio daquela bela região que ela amava com todas as fibras do seu corpo, com toda a ternura do seu coração e que não a reconhecia.

Demétrios, que a observava pelo canto do olho, ao vê-la tropeçar numa vala deixada pelas últimas chuvas, segurou-a pelo braço e não a largou mais:

A encosta é rude e o caminho parece-te amargo, Fiora Beltrami, porque caíste do alto e as tuas feridas ainda sangram, mas fica a saber que aquele que quer atingir o topo da montanha não pode abster-se de subir a encosta.

Crês que ainda pode existir um topo para mim? Estou cansada, Demétrios...

Já to disse: ainda sangras, mas as cicatrizes tornam a pele mais dura. Eu vou curar-te e poderás, então, ver de novo o horizonte. Descobrirás que terás vontade de... amar e ser amada.

Nunca! Nunca mais voltarei a amar! Há demasiada amargura no meu coração para que o amor possa entrar de novo nele, um dia. Tudo o que desejo, agora, é vingar o meu pai, a minha mãe e vingar-me a mim mesma. Pensa que me tiraram tudo, que a minha casa foi pilhada, devastada, que talvez tenham matado aquela que velou pela minha infância, a minha querida Léonarde, na qual mal ousava pensar naquela casa de onde tu me tiraste...

Posso assegurar-te que ninguém foi morto quando o palácio Beltrami foi invadido. Os criados que não fugiram, dispersaram-se.

Bernardino, o mendigo, informou-se. A tua Léonarde encontrou um refúgio.

Onde? Todas as portas se lhe devem ter fechado, até as daquela Colomba, a governanta da minha amiga Chiara Albizzi. A menos que... que tenha podido ir para casa da sobrinha dela, a Jeanette, que casou com um fazendeiro do Mugello! Oh! Se eu pudesse ter a certeza?

Eu hei-de encontrá-la, descansa! Quanto à vingança, é natural que penses nela.

Eu só penso nela! Mas já não tenho nada para me ajudar a persegui-la, nada senão estas duas mãos acrescentou ela com amargura, estendendo diante de si os seus dedos esbeltos que, com as unhas quebradas, pareciam incrivelmente frágeis para tão pesada tarefa.

Não és capaz de confiar em mim? As armas que te faltam, encontrá-las-emos juntos. Não percas a esperança! Eu sei que a estrada é longa e que te reserva muitas surpresas. Tenho muito que te ensinar...

Fiora olhou para o seu companheiro com curiosidade:

Tu és um homem estranho e não é a primeira vez que reparo nisso. Eu não esqueci a tua profecia, na noite do baile, no palácio Médicis...

Nem, espero, a promessa que te fiz, de te socorrer se precisasses?

Não a esqueci... mas não acreditava nela. Perdoa-me, porque acabas de me salvar de um destino bem pior do que a morte e nunca te poderei agradecer o suficiente. No entanto, confesso-te, metes-me um certo medo. Onde arranjaste tu esses poderes estranhos? Ontem, com um simples gesto, transformaste o Mulherão numa criada obediente e...

Chhh! Falaremos disso mais tarde. Nunca se sabe para onde o vento leva as palavras... Ficas apenas a saber o seguinte: podemos apoderar-nos facilmente do espírito de um ser quando ele está sob os efeitos de uma emoção...

Os dois prosseguiram o caminho em silêncio. Abandonando a estrada, Demétrios escolheu uma vereda íngreme entre muretes de pedra seca, que retinham a terra sob as vinhas e as oliveiras. O Sol subia no céu. Espalhava o seu calor primaveril pelas colinas salpicadas aqui e ali de grandes ciprestes negros. Empoleirado na folhagem prateada de uma velha oliveira, um melro começou a cantar. Fiora parou por um instante para o escutar e também para repousar. O suor perlava-lhe a fronte, o lábio superior e os pés, cobertos de poeira nas suas sandálias de corda, doíam-lhe:

Por que viemos por aqui? perguntou ela. Este caminho não é mais longo?

Pelo contrário, é mais curto para quem vai para minha casa. E depois... evita que passemos perto de uma casa que te deve ser duplamente querida? Não foi lá que te tornaste a esposa do conde de Selongey, o enviado do Temerário?