Vendo que ele se aproximava, Fiora fechou os olhos com força e apertou nervosamente as pernas, mas o monstro abriu-lhas com um violento golpe de joelhos e depois, à-vontade, entrou nela brutalmente... mas retirou-se de imediato arranhando os seios e o ventre da jovem, que não conseguiu reter um gemido:
Ela não é virgem! urrou ele.
Ela não é virgem? repetiu Pippa, aturdida. Deves’tar enganado, senhor! Entraste com muita força!
Eu não sou estúpido, Pippa e sempre soube quando uma rapariga é nova, ou não! Esta já serviu... mas ela vai-me dizer a quem! Ouves, putazinha porca? Com os teus grandes ares, não és melhor do que as que se arrastam pelas tabernas do rio! Mas, agora, vais falar!
E atirou-se a ela de novo, apertando-lhe a garganta e começando a apertar, a apertar. Pippa lançou um grito:
Como queres tu qu’ela fale s’a estrangulas? Deixa-a... Estou-te a dizer p’ra deixares!
E o Mulherão já segurava no monstro pelos punhos quando, subitamente, surgiu um homem sem que ela pudesse adivinhar de onde, um homem vestido com uns trapos que lhe davam o ar de um rato careca, tão grande e tão negro que ela pensou ver o diabo em pessoa. E mal teve tempo de aperceber o brilho do punhal com que, por duas vezes, ele feriu Piero no dorso...
O corcunda lançou um grito e abateu-se. As suas mãos largaram a presa mesmo a tempo para Fiora, que sufocava. Pippa, que estava de joelhos no outro lado da cama para melhor imobilizar a jovem, ergueu-se penosamente. Os seus olhos espantados iam do corpo inerte para o homem vestido de farrapos, que, com uma mão e sem esforço aparente, agarrou no morto pela gola do gibão e afastou-o de Fiora, sobre a qual estava estendido pesadamente, para o atirar por terra com nojo, como uma coisa imunda. O corpo da jovem apareceu coberto de pequenas arranhadelas, de onde corria sangue; o homem não se perturbou. Com as asas do nariz meio fechadas, Fiora respirava com dificuldade...
Fizeste-a linda! murmurou Pippa, que olhava com horror para a mancha de sangue a aumentar nas costas de Pietro. E, já’gora, quem és tu?
Alguém que poderia mandar-te enforcar... ou, até, queimar, se este monstro tivesse matado madonna Beltrami em tua casa. Já é suficientemente grave ter prisioneira uma mulher raptada do asilo de um convento disse tranquilamente Demétrios, que apalpava com suavidade o pescoço dorido, para se assegurar de que não havia nada quebrado. Tu és cúmplice. Seguravas-lhe os braços enquanto ele a estrangulava.
Não o teria deixad’ir até ao fim! Juro por...
Não jures, Pippa! É tempo perdido. Farias melhor se tratasses dela. Ele pô-la num lindo estado!
O médico grego tirou de sob o seu vestuário imundo um pequeno frasco, que aproximou dos lábios brancos de Fiora; umas gotas deslizaram-lhe para a boca e nos segundos que se seguiram todo o corpo da jovem foi percorrido por um longo arrepio. Por fim, Fiora abriu os olhos e olhou com imensa surpresa para o rosto barbudo inclinado para si. Reteve a tempo uma exclamação, porque Demétrios lhe pousou rapidamente um dedo sobre a boca:
Isso vai melhor?
Sim sussurrou ela. Sim... obrigada!
Entretanto, Pippa mexia-se. Acabou de arrancar o que restava da túnica de musselina, lavou o corpo com água de laranjeira e foi buscar um pequeno púcaro, do qual tirou uma noz de pomada que espalhou por todos os ferimentos, prodigalizando à vítima palavras tranquilizadoras, sem por isso deixar de espreitar, pelo canto do olho, o seu estranho visitante:
Pronto, minha pomba! Não é nada! Uma boa noite de sono em cima disto e desaparece logo!
Estou de acordo com a boa noite de sono disse Demétrios mas não aqui! Veste-a com o que encontrares à mão. Eu vou levá-la!
Subitamente, Pippa reencontrou toda a sua combatividade. Pondo-se nos bicos dos pés, fez frente ao grego, de mãos nas ancas, formidável e ameaçadora:
Levas mas é nada! Já me fizeste muito mal ao matar assim um bom cliente. Mas ela, sou eu que fico com ela! ’tás a perceber? No fim de contas, quem és tu? Na passas d’um mendigo e eu tenho aqui um tipo ou dois que me podem muito bem ajudar. Sem contar que posso gritar oh-da-guarda. E hei-de dizer a verdade: que mataste um nobre e é a ti qu’hão-de enforcar! E pensando bem... por que não hei-de eu gritar já?
E ia gritar, mas Demétrios estendeu um braço, os dedos separados dirigidos aos olhos da mulher, que ficou de boca aberta. Sem mudar de posição, o grego avançou um passo e Pippa recuou um passo e assim sucessivamente até que ela ficou encostada à parede, tão hirta como uma prancha. Os olhos negros que Demétrios dardejava sobre ela flamejavam como velas.
Tu não vais chamar ninguém, Pippa disse ele com uma voz calma e sem deixar de olhar para ela. Pelo contrário, vais obedecer-me... Ouves a minha voz?
Sim... sim, ouço a tua voz! Fala! Obedecerei! A voz da mulher estava diferente, longínqua...
Então, ouve: vais vestir esta jovem e depois vais acompanhar-nos até à porta. De seguida, chamarás o teu irmão e quando a tua casa estiver vazia, levareis este corpo até ao rio, para onde o atirareis depois de o terdes lastrado com uma ou duas pedras grandes. Depois, regressareis. Só então acordarás, mas terás esquecido tudo do que acaba de se passar aqui. Quanto à tua prisioneira, conseguiu fugir enquanto os bêbedos que entraram aqui lutavam uns com os outros...
Toda a sua força parecia concentrada no olhar e na mão que pregava Pippa à parede. O médico destacava claramente cada sílaba, como para melhor as fazer entrar no espírito da mulher. Esta tinha os olhos muito abertos e estava absolutamente imóvel. Parecia uma grande estátua, para a qual Fiora olhava com estupor. Entretanto, Demétrios, após um curto silêncio, perguntou:
- Compreendeste as minhas ordens?
Sim.
Executá-las-ás? Sem faltar nada?
Sem faltar nada...
Então vai, obedece! acrescentou ele com uma voz forte, deixando cair lentamente o braço. Pippa vacilou, como se lhe faltasse subitamente um apoio e meteu mãos à obra com gestos bizarros de autómato. Vestiu Fiora que não ousava mexer-se, vestiu-lhe a roupa que a jovem trazia à chegada e que tirou de uma arca: a sua camisa, o hábito branco de noviça e as sandálias de corda entrançada. Demétrios pegou então no manto negro que Pietro abandonara, entregou-lho para que ela envolvesse a jovem e estendeu a mão a esta.
Vem! disse ele. E não temas! Ela vai, tal como lhe ordenei, acompanhar-nos até à porta...
Pippa, com efeito, tão indiferente como se estivesse só, acendeu uma vela no candelabro e dirigiu-se para a porta. Mas Fiora resistiu à mão que a levava:
E Khatoun? Eu não posso partir sem ela!
A pequena tártara que te é tão devotada? Onde está ela? Fiora fez um gesto vago:
Não sei. Algures nesta casa, com um homem... um estranho. Pippa disse que ia dá-la a alguém que a apreciaria... É preciso encontrá-la!
Demétrios franziu as sobrancelhas:
Esta noite é impossível! Esta casa é grande e não podemos vasculhar tudo. Além disso, não posso adormecer uma multidão como adormeci esta mulher. Temos de partir sem ela.
Não! disse Fiora. Recuso-me a abandoná-la. Deus sabe o que lhe pode acontecer, entregue a esses demónios!
Não vejo que possas fazer grande coisa para a proteger. Mas, descansa: ela não arrisca nada. Pippa sabe muito bem o valor de uma rapariga bonita. Aliás, amanhã mandarei buscá-la. O Mulherão não resiste muito tempo ao ouro e vai tê-lo. E agora vem, temos pouco tempo!
Pippa esperava na soleira da porta como uma criada bem ensinada. Quando Demétrios e Fiora se aproximaram, pôs-se em marcha precedendo-os e levando na mão a vela para iluminar o caminho. Percorreram um corredor mergulhado na noite e que desembocava num pátio interior, o mesmo para onde dava o quarto-estufa de Fiora. Ouviram-se gritos e risos quando passaram sob uma abóbada onde desembocava uma escadaria. Estavam tão próximos que a fugitiva sentiu uma angústia ao pensar que podia abrir-se uma porta, deixando sair alguns dos que, lá dentro, faziam uma verdadeira bacanal.
Não tenhas medo sussurrou Demétrios. Com ela não temos nada a temer. Aliás, ela evitou a grande sala... E já estamos quase lá fora...
No fim de um último corredor, Pippa abriu uma porta e afastou-se para deixar passar os seus companheiros. Em seguida, voltou a fechá-la. Com uma alegria infinita, Fiora olhou para o grande céu azul-escuro, ponteado de estrelas, no qual o intervalo das silhuetas das casas encostadas umas às outras da ruela formava fitas cintilantes. A jovem respirou a plenos pulmões o ar húmido que arrastava odores de peixe, azeite e madeira queimada e apertou com mais força a mão de Demétrios:
Como agradecer-te... começou ela, mas ele fê-la calar-se.
Mais tarde teremos todo o tempo para conversar. Por agora, temos de nos abrigar até ao fim da noite. Ao nascer do dia, quando as portas forem abertas, levar-te-ei para minha casa, em Fiesole...
Onde vamos?...
A casa do amigo a quem devo este espólio... e outras coisas...
Os dois saíram da ruela com infinitas precauções e só quando tiveram a certeza de que o passo da milícia se afastava, em lugar de se aproximar. Na sua frente estendia-se o que parecia um amontoado de ruínas e que, de facto, era um estaleiro inacabado: o de um grande palácio que só tinha o rés-do-chão e uma parte do primeiro andar, mas que não deixava de ser impressionante pelas pedras enormes, meio desbastadas, rugosas e bárbaras da sua construção. As pessoas do bairro não se aproximavam dele porque tinha má fama. O homem que o quisera construir, Luca Pitti, um dos homens mais ricos de Florença, pedira os planos a Brunelleschi, o arquitecto genial que tinha erigido o Baptistério e coroado o Duomo com a sua enorme bolha cor de coral. Queria-o como o maior, o mais rico da cidade, à altura da sua ambição desenfreada. Após a morte de Cosimo, o avô de Lourenço, Pitti conspirara com Soderini, o administrador municipal de então, para arrancar o poder das mãos mais fracas de Piero o Gotoso, filho de Cosimo, mas a conspiração fracassara e Pitti, arruinado e exilado, morrera longe da cidade amada. A imaginação popular, que não se satisfazia com um fim simples, pretendia, em voz baixa, claro, que os restos mortais de Luca Pitti, assassinado pela gente dos Médicis, estavam enterrados sob o seu palácio inacabado e como as lendas têm vida longa, as mulheres benziam-se ao passar pelos muros enormes e pelas grandes arcadas vazias, para onde abriam os olhos cegos das grandes janelas rectangulares. Ninguém se atrevia a ir buscar uma daquelas pedras abandonadas, que diziam malditas. Aquilo durava há 35 anos...
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