Não, obrigada! disse Fiora que, agora, olhava com um certo desgosto para o corpo inerte de Khatoun, que passara sem transição da voluptuosidade para o sono. A jovem tinha a impressão de que a sua pequena escrava acabava de ser emporcalhada... Pippa desatou a rir, baixou-se, pegou em Khatoun sem esforço aparente e atirou com ela para cima do leito:

Não faças essa cara! O que acaba d’acontecer é natural, especialmente com uma rapariga da Ásia. Fica com ela esta noite! Amanhã vou pô-la a trabalhar. Por agora, está de tal modo arrebentada que nem se lembrará do qu’acaba d’acontecer...

A mulher já ia a sair quando se virou:

Já agora! Amanhã à noite, tu também terás de trabalhar! E pode não ter graça nenhuma. Mas eu ajudo-te!

Nessa noite, Fiora não conseguiu conciliar o sono. A casa, entregue à orgia, ressoava como um tambor, ressoando também na cabeça da jovem. Ela ouvia as canções dos bêbedos, os gritos, os risos e os estertores e tudo aquilo lhe metia nojo. Por volta das duas horas, grandes pancadas de pés foram dadas na sua porta, mas a fechadura era sólida e ninguém entrou. A jovem também ouviu injúrias e gemidos dolorosos e compreendeu o que Pippa quisera dizer quando falara na brutalidade dos homens... Virando-se para o outro lado, viu Khatoun a dormir profundamente e sentiu invadi-la uma grande piedade. Ao mesmo tempo, recriminou-se por tê-la desprezado por alguns instantes. Pobre pequeno ser, que acabava de lhe demonstrar uma grande devoção, que se entregara voluntariamente ao frio, à chuva, à fadiga, ao medo, à rua, à noite e ao perigo de maus encontros para tentar, ela que era tão fraca e tão pobre, arrancar a sua patroa a um destino terrível! A ideia de que a partir do dia seguinte o Mulherão iria fazê-la entrar no seu inferno, a entregaria aos brutos que ouvia rir e injuriar-se, aterrorizava-a. Temia mais aquilo do que o seu próprio destino, porque se sentia agora com uma força que nunca suspeitara possuir. O ódio e a cupidez de Hieronyma tinham-na arrancado ao seu mundo fácil e elegante para a atirarem às feras e agora sabia que, se queria viver, teria de combater com as armas que lhe viessem parar às mãos. Mais ainda, se queria saborear um dia o sabor da vingança que lhe apertava o coração como algumas plantas más, cujas espiras mortais sufocam lentamente as suas irmãs, sem outra defesa que não as mãos do jardineiro. Mas nenhum jardineiro benfazejo viria libertar o seu coração, feito para o amor e que, pouco a pouco, estava a secar... a menos que a água da ternura viesse em seu socorro. Mas o único capaz de fazer esse milagre não queria saber e nunca quereria...

O canto do galo trouxe o silêncio à casa de Pippa. Fiora ouviu afastar-se o último bêbedo. O homem massacrava com uma voz atrozmente falsa uma canção de que Fiora gostava:

Eu andava à procura de uma flor

E vós tendes tantas no vosso branco rosto...

Ao passar por aquela voz soluçante, o romance era praticamente irreconhecível. Era a imagem daquilo em que se transformara a vida de Fiora: uma caricatura, um pesadelo, um escárnio do qual não via, do fundo da cloaca em que caíra, como poderia sair... e em que estado! Pelo menos tinha, agora, na pessoa de Khatoun, uma companheira de miséria. De uma vez só, as distâncias tinham desaparecido admitindo que as houvesse! entre ela e a jovem escrava, que se transformara numa irmã mais frágil, talvez, e que iria ser necessário proteger, mas com a qual seria possível estabelecer um plano de fuga, visto que Khatoun, pelo menos, sabia onde era a casa de Pippa.

Fiora só adormeceu com as primeiras luzes da madrugada, ao mesmo tempo que a casa ressoava com os roncos dos seus habitantes...

Um som de portas a bater e de água a correr acordou-a. Pippa, negligentemente vestida com uma espécie de roupão de seda azul-vivo, estava ocupada a deitar, na tina, o conteúdo das selhas de água que estavam diante da porta. Aparentemente, o lado estufa da estranha casa ia ter utilidade: Pippa preparava um banho.

Por entre as pálpebras semicerradas, Fiora observou-a. Descobriu que aquela mulher tinha a estrutura de um homem, à excepção dos dois seios de mármore branco que o traje descobria por instantes. Tinha uma musculatura nodosa, que lhe inchava os braços e os ombros, mas sem um grama de gordura e a pele, muito branca, parecia tão lisa como a de um bebé, salvo num dos ombros, onde uma feia cicatriz, vestígio de uma antiga facada, falava de uma existência onde o perigo tinha o seu lugar.

Quando achou que já tinha água suficiente, Pippa mergulhou nela o braço para controlar a temperatura, desapareceu por um instante e regressou com uma caixa, da qual tirou um punhado de qualquer coisa e atirou-a para dentro da tina. O odor familiar da resina de pinheiro e das flores do loureiro Léonarde, rendida aos hábitos florentinos, punha sempre aqueles perfumes nas lavagens para perfumar a roupa encheu o quarto. Mas não se tratava de uma barrela...

Sem mesmo se preocupar em ver se ela estava acordada, Pippa tirou Fiora da cama e mergulhou-a na água até aos ombros, não sem que esta protestasse:

Não era mais simples dizeres-me que me levantasse e entrasse no banho? perguntou ela.

Não é bem assim. Há pessoas que na gostam de se lavar. Assim, evito discussões.

Mas eu gosto de me lavar e Khatoun também. Em nossa casa há uma grande estufa. Eu tomava lá banho todos os dias!

Pippa fungou com um ar desconfiado:

Isso não é de mais? Um banho todos os dias deve gastar a pele!

Vês muito bem que não. E ouvi dizer que Zafolina, a famosa cortesã que é disputada pelos homens mais ricos da cidade, tomava, às vezes, dois!

Desta vez, Pippa ficou completamente siderada. Segundo a sua ética pessoal, era impensável que a filha de Francesco Beltrami pudesse saber que existiam cortesãs. Fiora explicou-lhe, então, que Zafolina era tão bem-educada, tão discreta, tão piedosa e tão generosa, que não era raro ser recebida nas melhores casas. Admiravam-lhe as toilettes, as jóias e gostavam de a ouvir falar, ou cantar. Não tinha nada a ver...

Com o que se passa aqui? completou Pippa enquanto ensaboava vigorosamente a jovem: Bem, sabes, é essa vida qu’hás-de ter se fizeres o qu’eu te digo. Simplesmente, há-de ser ’inda melhor, porque será em Roma e tu hás-de cantar p’ro Papa! Havemos de ser ricas com’a rainha do Sabat...

Do Sabá! rectificou maquinalmente Fiora, mas o Mulherão não a ouvia. Enquanto lavava meticulosamente os cabelos da sua nova pensionista, sonhava acordada, vendo-se já a dominar os negócios de uma Fiora coberta de ouro e jóias e com todo o Sacro Colégio a seus pés. Mas, para dizer a verdade, a jovem não a escutava.

Fiora reflectia enquanto saboreava aquele banho quente e perfumado, do qual tinha grande necessidade. Um prazer de que não desfrutava há muitos dias, porque era costume não ir aos banhos quando a morte passava por uma casa...

Depois do banho, no qual Khatoun a substituiu depois de ter recebido ordem para se desenvencilhar sozinha, Pippa envolveu Fiora num lençol e instalou-a de costas para o braseiro para que secasse os cabelos:

Vou mandar massajar-te e perfumar-te daqui a pouco! declarou ela abandonando o quarto para grande satisfação de Fiora, que se aproximou de imediato de Khatoun, ocupada a ensaboar-se com um cuidado maníaco.

Nunca te agradecerei o suficiente pelo que fizeste disse-lhe ela. Podes dizer-me, agora, onde estamos?

No bairro San Spirito, na outra margem do Arno. A casa fica por trás da de um mercador de velas, a meio de uma pequena ala que desemboca em frente do grande palácio inacabado...

O palácio dos Pitti? Aquele cuja construção foi abandonada?

É isso. Entra-se aqui por um corredor e não há nenhuma janela para a rua. Há é uma lanterna vermelha por cima da porta.

Por outras palavras, vai ser difícil sair daqui, senão impossível. Quem nos virá procurar aqui?

De qualquer maneira, há uma pessoa que sabe... Khatoun baixou a voz vários tons e agitou a água do banho para melhor a encobrir. Um velho mendigo que conheci perto do convento. Ele foi muito bom, muito generoso. A mulher tinha razão: é proibido mendigar sem autorização dos outros, mas ele deixou-me. Deu-me um pouco de protecção e estava comigo quando os homens te trouxeram para aqui...

Disseste-lhe porque te tinhas instalado junto de Santa Lúcia?

Disse.

E ele ajudou-te, mesmo assim?

Ajudou, mas depois aconselhou-me a voltar para casa. Mas eu não quis. Então, ele foi-se embora, dizendo-me que, se ficasse ali, ainda me prendiam... ”

Tristemente, Fiora voltou para o seu lugar junto do fogo. A ténue esperança que concebera evaporara-se como o mendigo na noite. Ele tivera piedade de Khatoun, mais nada! Basear uma esperança no interesse de um ser tão desprovido como um mendigo era pura loucura. Teria de tentar encontrar outra coisa. Mas o quê?

Quando Pippa regressou, lavou os cabelos de Khatoun, mandou-a sair da água, tirou a rolha da tina para a esvaziar e depois, virando-se para Fiora, fê-la estender-se em cima do leito para lhe untar o corpo com um óleo perfumado, enquanto, por sua vez, Khatoun se secava. Com o nariz franzido, Fiora cheirou o odor que se escapava das mãos do Mulherão.

Que perfume é esse? O que eu usava era feito de lírio-silvestre, verbena e um pouco de jasmim.

Isso deve cheirar bem, mas na deve valer grande coisa no amor. Isto é nardo e custa muito caro, p’ra qu’estejas p’rai a fazer caretas. Se souberes usá-lo, os homens ficam malucos...

Bruscamente, Fiora agarrou na mão de Pippa, que se aproximava do seu ventre.

Continua a ser... esta noite?